Ano: VI Número: 57
ISSN: 1983-005X
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Tipo um problema dos Correios

Marina Chaccur

A Agitprop republica “Tipo um problema dos Correios”, de Marina Chaccur, pois nele são levantadas questões muito sérias principalmente em relação à (in)competência tipográfica. A calígrafa e tipógrafa Marina Chaccur demonstra com grande clareza a falta de cuidado, e podemos mesmo dizer de conhecimento, em relação ao tratamento da tipografia do novo logo. O texto não se propõe a entrar no mérito de questões de base da mudança da identidade visual, como a real necessidade de modificar uma imagem consolidada para os brasileiros e também a mudança de função dos correios que têm ocorrido nos últimos anos (de mero entregador de correspondências para entregador de encomendas). A primeira marca (1970) foi fruto de concurso vencido por Eduardo de Jesus Rodrigues. O novo redesenho (2014) como informa o próprio site dos Correios (http://www.correios.com.br/sobre-correios/a-empresa/central-de-marcas) é “resultado de um estudo de branding realizado por consultoria especializada”, o que denota grande mudança no campo do design.

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No dia 6 de maio de 2014 foi lançada a nova marca dos Correios. Uma das maiores empresas brasileiras resolveu investir milhões de reais para “modernizar” sua identidade visual.

Parte do processo consistiu em uma licitação através da qual contrataram a CDA Branding & Design for People, que foi responsável pelo posicionamento estratégico e redesenho da marca, por R$390.000,00. Como qualquer redesign, o projeto recebeu elogios e críticas nos dias que se seguiram e a discussão continua.

Um dos temas recorrentes em comentários é o plágio. Teve até reportagem fazendo alarde sobre uma possível cópia. Surgiram vários links e imagens de marcas que são “similares”.

Plágio? Claro que não! A questão é que a atual marca dos Correios é tão genérica, que se parece com várias outras, incluindo até mesmo template do Shutterstock. Uma seta para cada lado, com efeito tridimensional, um tipo sem serifa geométrico e pronto!

A verdade é que a nova marca está sendo questionada em vários níveis, como por exemplo “ a quem essa mudança serve?" e perguntas como esta são absolutamente fundamentais, mas apesar de gastarem muito o verbo em textos e vídeos para justificar o que foi feito, não temos muitas respostas convincentes.

Segundo Jessé Gusmão de Abreu, designer gráfico dos Correios: “Tínhamos uma noção que o redesign da marca tinha como princípio a evolução da identidade atual, preservando os elementos de maior identificação da marca e acrescentando o conceito de modernidade, mas sabíamos o que teríamos de buscar para garantir a excelência na identidade visual”. Que conceito de modernidade é este capaz de despir a marca antiga dos principais elementos que a caracterizavam?

Postado no canal oficial dos Correios no YouTube no dia 15 de abril, menos de um mês antes do lançamento da nova marca, o vídeo “Conexão” traz como o principal elemento gráfico uma linha que conecta tudo e todos, que percorre a tela e desenha o grafismo contido no símbolo (as setas) da marca anterior. Neste vídeo ouvimos a seguinte afirmação: “Somos os Correios e temos planos para os seus próximos planos”. Mas como assim? Se é uma empresa que se planeja de forma correta e está prestes a lançar uma nova identidade visual, por que se apresentar através de um elemento que foi completamente deixado de lado dias depois? E por que deixaram de lado? Já que de acordo com o designer sênior da CDA Branding, Richard Koubik: “Percebemos que o símbolo já possuia um grande reconhecimento por parte do público, então com isso em mente passamos a buscar cores, formas e traços que melhor representassem a evolução desse símbolo.”

Apesar de que muito ainda pode ser dito sobre as setas, prefiro me concentrar no lettering, ou seja, no desenho das letras que formam a palavra “Correios”, especificamente para esta marca, que é apresentado pela CDA da seguinte maneira: “A construção do logotipo atual mantém o raciocínio construtivo do logotipo anterior, e adiciona características contemporâneas. Desta forma, o lettering foi construído de maneira modular, tomando a letra “o” como referência para a construção dos tipos. O redesenho em caixa baixa apenas com a inicial maiúscula, simboliza uma assinatura pessoal, menos impositiva, tornando-a mais próxima e amigável.”

Para início de conversa, a concepção de que a simples combinação de caixa alta e baixa (maiúscula e minúscula) remete a algo amigável por ser a forma como escrevemos os nomes próprios é completamente equivocada, pois é tão simplista como dizer que o resultado será um bolo pois um dos ingredientes da receita é farinha.

O logotipo poderia ter mantido a estrutura em caixa alta ou até mesmo ser unicase (quando todas as letras possuem a mesma altura, mas seus desenhos misturam maiúsculas e minúsculas) e ainda assim ter um aspecto amigável. Ou seja, nenhuma decisão isolada vai representar algo por si só; é o conjunto como um todo que tem que falar a mesma língua e a combinação das decisões tomadas é que tem que transmitir os conceitos pré-definidos.

Realmente o novo logo foi construído utilizando o mesmo princípio do anterior, ou seja, como base absolutamente geométrica. O manual da marca antiga não está mais disponível no site dos Correios, mas ainda pode ser encontrado com uma rápida busca, e assim podemos conferir as especificações para o desenho de cada letra e a composição do conjunto.

É necessário dizer que tipos geométricos (bem desenhados e compensados), por mais que pareçam desenhados com régua e compasso, não são geometricamente perfeitos, e portanto, nem o logotipo atual e nem o anterior estão corretos. Por que não? Porque os tipos possuem correções óticas para que pareçam mais equilibrados, mas na realidade, matematicamente, não são.

As correções óticas fazem parte de princípios básicos de design de tipos, pois levam em consideração como vemos e entendemos as formas. Por exemplo, as linhas horizontais geralmente são mais finas que as verticais, pois se elas tivessem a mesma espessura, a horizontal pareceria mais grossa, assim, uma letra “o” não pode ser concebida com dois círculos concêntricos, porque as partes de cima e de baixo têm que ser oticamente compensadas para se parecerem iguais às laterais.

Portanto, não adianta desenhar letras e palavras pela geometria, pois o resultado não fica tão harmônico e natural quanto o desenho feito com as compensações necessárias. Muito complexo? Então vamos exemplificar…

Uma das minhas referências preferidas disponíveis online é o TypeBasics ?—? nele podemos encontrar alguns dos princípios básicos para desenho de tipos, além de sermos apresentados brevemente a terminologias?—?e como podem perceber, a primeira imagem é sobre ajustes óticos, para que as letras pareçam proporcionais umas às outras, compartilhando de uma mesma linha de base e altura-x, visualmente e não matematicamente, o que não acontece no logo dos Correios.

Para piorar a situação, as letras do novo logotipo não compartilham os mesmos alinhamentos visualmente, e nem geometricamente. Cada letra possui um tamanho e uma altura diferente. Pois é, nem uma letra “o” é do mesmo tamanho da outra, e nem a base reta da letra “i” está na mesma linha de base da letra “r”. Como isso é possível? Redimensionando sem querer? Erro na hora de posicionar? Não vejo nenhuma explicação lógica para tantas diferenças.

Para que apresentar uma malha construtiva com algumas linhas genéricas que nem coincidem com os alinhamentos do próprio desenho do logotipo? Muitos criticam as empresas que ainda fazem um grid posterior ao desenho para apresentar ao cliente. Neste caso, honestamente, acredito que ter traçado as linhas de construção e alinhamento do logotipo teria ajudado a conferir e corrigir alguns destes problemas, nem que o logo não estivesse visualmente equilibrado, pelo menos estaria geometricamente construído, tal qual seu antecessor, ainda assim errado tipograficamente, mas pelo menos teria alguma lógica.

“Foram centenas de desenhos. Fomos filtrando as alternativas e o resultado foi se concretizando. Aos poucos a marca foi ganhando corpo, forma, personalidade e originalidade” citou Daniela Lompa Nunes, diretora de estratégia da CDA Branding

Os esboços do logotipo apresentados no vídeo apenas reforçam a ideia que tenho de que os responsáveis pelo desenho da marca não possuem qualquer conhecimento tipográfico.

Podemos ver uma série de tentativas de redesenhar as setas, mas nem tantas do logotipo. Os rascunhos a lápis sobre papel milimetrado não contemplam os espaços entre as letras. Isto não é algo que se corrige depois. O espaço entre uma letra e outra é necessário para que elas sejam reconhecidas, e esta área “branca”, que faz com que as letras “respirem” influencia diretamente nas proporções e pesos das letras ao seu redor, e vice-versa.

Portanto, como bem disse Erik van Blokland na TYPOBerlin alguns dias atrás: “você começa a se preocupar com o espaçamento a partir do momento que desenhou a segunda letra” (tradução livre). Em nenhum momento estes esboços demonstram a preocupação com espaçamento. Com certeza as letras extremamente próximas umas às outras não são por falta de espaço no papel.

As alternativas digitalizadas já demonstram uma pequena preocupação com o espaço entre as letras, até porque se continuassem como nos rascunhos à mão, a marca não teria leitura em tamanhos pequenos. No entanto, ainda vemos problemas na hora de harmonizar o conjunto de caracteres.

Eu sei que esta parte é mais difícil para alguns perceberem, mas o que eu quero dizer é que é recomendável, digo, obrigatório neste caso, que as letras compartilhem o mesmo DNA. Não é porque existe uma malha construtiva genérica dentro da qual as letras se encaixam, que elas serão similares, mas também não adianta simplesmente cortar um “o” e colocar uma barra no centro para fazer um “e”. Claro, uma letra pode derivar da outra, mas cada uma tem a sua particularidade, ainda dentro da mesma linguagem da estrutura proposta, e claro, com seus ajustes óticos. A necessidade de coerência nas decisões também vale para os detalhes no acabamento. Por que todas têm cantos retos e arredondados e o “i” sobrou só com os arredondados?

Como nem as letras mais simples e básicas estão bem resolvidas (nem bem espaçadas), como criticar algo minimamente mais complexo como o “r”? Vê-se claramente a dificuldade em resolver a junção da reta com a curva. E o “s” então? Daí pelo menos eu concordo que esta é uma das letras mais difíceis de serem desenhadas.

De qualquer forma, ele também não está bem resolvido, pois além de ser o mais diferente da turma, a parte de cima está visualmente pesando do lado esquerdo, fazendo com que ele pareça estar caido para trás. Mesmo o “e” tem um ar de capenga, com esta parte de baixo decepada prematuramente. Para contrastar com um exemplo de algo desenhado corretamente, vide imagem da Avenir, desenvolvida pelo Adrian Frutiger. 

No Brasil, o número de publicações e atividades da área aumenta a olhos vistos a cada dia, tornando as informações mais acessíveis e demonstrando um crescimento significativo do interesse em tipografia em geral por parte do público, consequentemente, empresas buscam este tipo de serviço especializado, pois dificilmente tem em sua equipe alguém com estes conhecimentos específicos, ou, acabam se aventurando a produzir algo mesmo sem saber exatamente como, pois subestimam a complexidade por trás de um desenho de letra/ palavra.

Este, infelizmente me parece o caso da CDA, pois considerando os fatores apresentados acima é difícil de acreditar que houvesse na equipe responsável pelo redesenho do logotipo uma única pessoa capacitada para a tarefa.

Portanto, como acreditar no discurso apresentado no material de divulgação da nova marca, se ele não está refletido no resultado gráfico?

Seja como for, se os Correios queriam “garantir a excelência na identidade visual”, não deveriam ter aprovado este resultado. Simples assim!

 

Marina Chaccur é designer de tipos e letrista freelancer, graduada em Desenho Industrial/ Programação Visual pela Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP, com mestrado em Design Gráfico pelo London College of Communication - LCC (MA Graphic Design) e Design de Tipos pela Koninklijke Academie van Beeldende Kunsten -KABK (MA Type and Media). Foi professora em algumas das principais graduações de Design em São Paulo, posteriormente desenvolvendo sua própria oficina de lettering, que tem sido realizada com grande sucesso, além de ter sido consultora do Senac-SP na formulação da sua pós-graduação em Tipografia. Atua como diretora da Association Typographique Internationale - ATypI e está constantemente envolvida em congressos, palestras, workshops e exposições no Brasil e no exterior.

 

Texto publicado originalmente em https://medium.com/@mchaccur/tipo-um-problema-dos-correios-987787388cdc. Agradecemos a autorização cedida por Marina Chaccur para a reprodução texto na Agitprop.

 


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