Ano: V Número: 51
ISSN: 1983-005X
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Rede Manchete: a marca da TV do ano 2000
Fernando Morgado

Resumo: este artigo visa apresentar o papel exercido pela Rede Manchete na evolução do design na televisão brasileira, especialmente nos anos 1980. Busca revelar as influências sofridas pelo projeto original de identidade visual da emissora e os desafios enfrentados na sua implantação e uso durante os anos seguintes. Como contraponto ao aspecto tecnológico tão presente no início da Rede Manchete, o artigo fala da série de vinhetas produzida em 1997, protagonizada por pintores brasileiros.

Palavras-chave: broadcast design, identidade visual, TV Manchete.

 

Abstract: this article intends to present the role played by Manchete TV Network in the evolution of Brazilian broadcast design, especially in the 1980s. Tries to reveal the influences of the channel's original visual identity and the challenges faced during its implementation and in the following years. As a counterpoint to the technological aspect so present in Manchete's early days, the article talks about the IDs produced in 1997 starring Brazilian painters.

Keywords: broadcast design, visual identity, TV Manchete.

 

Nos anos 1980, a televisão sofreu inúmeras transformações. Na Europa, o capital privado vivia os seus primeiros tempos, ampliando a oferta de canais num continente até então dominado pelo monopólio estatal.

Nos Estados Unidos, novas tecnologias de distribuição avançavam rapidamente: os satélites, a TV a cabo, o UHF, as estações de baixa potência, o videocassete etc. Seja por questões comerciais, seja por questões tecnológicas, o fato é que o número de opções para o telespectador aumentou rapidamente em todo o mundo.

O Brasil, ainda que num contexto bastante particular, não deixou de acompanhar esse movimento. Em 1981, o governo permitiu o funcionamento de duas novas redes de TV aberta: o SBT, que entrou no ar naquele mesmo ano, e a Manchete, que estreou em 1983.

E, como em qualquer outra atividade, onde há aumento da concorrência, há maior necessidade de design, especialmente relacionado à identidade de marca. A TV do velho continente é um exemplo claro disso. Quando só existiam programações estatais, as estações nem mesmo tinham nome, sendo apenas numeradas: canal 1, canal 2, canal 3 etc.

A chegada de novas opções forçou a criação de identidades próprias. O nome das empresas públicas teve que se fazer mais presente no vídeo para, assim, ganharem maior força como marca e serem capazes de estimular a diferenciação: BBC, Rai, RTP, TVE etc. (1)

Sobre isso, é interessante registrar o ponto de vista de Rubens Furtado, que foi primeiro diretor geral da TV Manchete. Durante palestra proferida em 9 de setembro de 1986, ele, que já estava fora da emissora, expôs a sua opinião sobre o porquê do aspecto estético ser ainda mais relevante nas TVs comerciais.

A falta da excitação da disputa financeira e da disputa econômica nas televisões estatais não tem permitido o crescimento da pesquisa e uma alteração profunda na programação. É bem verdade que, por outro lado, elas [as televisões estatais] também não sofrem de uma degeneração típica das televisões comerciais.

Nessa busca incessante de índices e ratings para poder vender o seu anúncio, a televisão comercial, evidentemente, começa a encontrar algum tipo de restrição na área do conteúdo. Passou a ser uma televisão muito mais voltada para a forma; daí surgirem todas essas vinhetas mirabolantes, bolinhas que rodam, voam, emes que explodem, fazendo com que ela seja uma espécie de hipnotizador (2).

As Empresas Bloch entraram no mundo da TV unindo referências estadunidenses e europeias. Buscavam aliar o modelo comercial do primeiro com o foco informativo e cultural do segundo.

O design evoluía nessas duas escolas de televisão e também no Brasil, permitindo que a nova emissora já estreasse com uma imagem construída por profissionais melhor capacitados, apoiados pelos equipamentos mais modernos disponíveis na época e por métodos de trabalho amadurecidos durante os anos anteriores da TV no Brasil.

 

Anos 1980: normatização, tecnologia e espaço

A televisão brasileira nasceu da iniciativa privada e as identidades eram importantes desde o começo, ainda que não contassem o apoio de normas sistematizadas. Somente em 1960, dez anos após a chegada da TV, é que foi produzido o primeiro manual de identidade visual para uma emissora nacional. Esse pioneirismo coube à Excelsior de São Paulo e ao seu então diretor de arte, Cyro del Nero (3).

Cumpriu-se um curso natural de evolução: tudo começou com mascotes e desenhos animados, como o Tupiniquim criado por Mario Fanucchi para a TV Tupi (4), até chegar ao visual lançado em 1976, pela TV Globo, sob a batuta de Hans Donner (5).

Na década de 1980, esse processo de amadurecimento da cultura de marca nas emissoras se cruzou com a ampliação do mercado e a chegada de novos recursos técnicos, inclusive para a produção de vinhetas. Mais emissoras passaram a ter suas animações produzidas nos Estados Unidos e o Brasil ganhou a sua primeira estrutura específica para esse fim: a Globo Computação Gráfica (CGC), criada em 1984 e que, cinco anos depois, transformou-se numa empresa chamada Globograph (6).

Com tantos investimentos, nada mais natural que a tecnologia aparecesse não apenas na forma, mas também no conteúdo, como conceito, das identidades visuais desenvolvidas naquele período. As formas geométricas surgiam precisas, tridimensionais e em movimento graças ao auxílio de computadores. Os círculos e esferas merecem destaque, pois ganhavam diversos significados: o mundo, o globo ocular, o ponto que forma a imagem da TV analógica.

Deve-se somar a isso um aspecto muito forte no zeitgeist dos anos 1980: o espaço sideral, no melhor estilo Star Wars, que estreou no final da década anterior. Por meio dessa influência, as ideias de futuro e de tecnologia conseguiram ganhar a sua forma de expressão mais próxima do literal e do universalmente compreensível.

Na identidade visual adotada pela Bandeirantes em 1982, por exemplo, o olho, símbolo da emissora, ganhou formas que lembravam uma nave espacial e o logotipo assumiu perspectiva semelhante à adotada no texto de abertura da saga dirigida por George Lucas.

Enquanto isso, na Globo, esferas flutuavam no infinito entre retângulos e cubos multicoloridos. No SBT, um satélite iluminava o Brasil, pontuando as áreas cobertas pela rede. Na Cultura, seu símbolo, marcadamente bidimensional, criado pela Cauduro Martino, multiplicava-se e ganhava profundidade.

Nesse ambiente, nasceu a Rede Manchete. Ela absorveu todas essas influências e acrescentou outras, compondo aquela que seria a imagem da TV do ano 2000 (7).

 

M de Manchete

Conforme foi dito anteriormente, a concessão para operação da Rede Manchete foi outorgada em 1981, mas ela só entrou no ar oficialmente em 5 de junho de 1983. Meses antes do lançamento, Francesc Petit, sócio da agência de propaganda DPZ, recebeu o pedido da família Bloch para fazer a identidade visual da nova televisão.

Segundo Petit,

“a encomenda era simples e clara. O Jaquito [Pedro Jack Kapeller], diretor do grupo, pediu que a marca mostrasse as cinco áreas de atuação: as rádios AM e FM, a editora, a gráfica e a televisão. Tinha que juntar cinco elementos numa só imagem” (8).

Em entrevista, Hugo Kovadloff, então diretor da SAO, divisão de design da DPZ, lembrou que um dos objetivos era representar as emissoras que formaram a Rede Manchete (9). Tratavam-se de cinco estações próprias: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza.

Antes de se definir o formato final, o M com as esferas nas extremidades, chegou a ser desenvolvida outra alternativa: uma estrela estilizada. Adolpho Bloch, judeu, não gostou da solução, pois viu semelhança com a estrela dos palestinos.

Foi depois disso que o símbolo final nasceu. “Era uma ótima solução, a marca passava a ideia do mundo da tecnologia eletrônica. Fiquei entusiasmado com a solução tão genial, e eles aprovaram a marca num piscar de olhos” (10).

Sem dúvida, a tecnologia era um dos aspectos mais evidentes dentro do projeto Rede Manchete: foram gastos US$ 35 milhões em equipamentos, mais da metade do orçamento total, estimado em US$ 50 milhões (11).

Nos primeiros tempos da TV Manchete no ar, se viu mais um canal cujo visual fazia muitas referências ao espaço sideral como forma de representar o futuro. Exemplos disso foram a primeira vinheta institucional, com o M explodindo, e o cenário do Jornal da Manchete em aço escovado e tendo o switcher ao fundo.

Tratava-se de uma opção em linha com o que outras emissoras já apresentavam na época, mas, na Manchete, tudo isso acabou ganhando maior qualidade de som e imagem e mais efeitos graças ao avançadíssimo parque técnico de que dispunha.

Logo na abertura do programa de estreia, O Mundo Mágico, um M tridimensional voava pelos céus do Brasil, como uma nave espacial, até pousar no terraço do edifício-sede das Empresas Bloch, no Rio de Janeiro.

Essa vinheta, dirigida por Aldir Ribeiro, tornou-se a abertura e o encerramento de todos os dias de transmissão da emissora e versões do M feitas de aço foram instaladas no topo dos prédios carioca e paulistano da TV Manchete (12).

Uma curiosidade: no Rio, o símbolo da emissora foi instalado na ponta direita da fachada, e não na esquerda como aparece na vinheta. Com isso, foi preservada a visão de um painel de Athos Bulcão que, até hoje, está instalado no terraço do Edifício Manchete.

A equipe da SAO trabalhou em conjunto com os profissionais da emissora apenas no início, durante a criação das primeiras vinhetas. Nos anos seguintes, o que se viu foi um quase abandono das normas originais do sistema de identidade e o nascimento de inúmeras variações da assinatura visual.

As esferas do símbolo, por exemplo, acabaram ganhando mais um significado, especialmente em aplicações impressas: os cinco continentes. De acordo com Kovadloff, “nossa percepção de que eles não estavam utilizando de forma correta o manual era evidente, mas compreensível. Não existia a cultura da marca internamente e, naquela época, não fazíamos a gestão da marca na implantação”.

 

A vinheta como suporte para a pintura brasileira

Por fim, é interessante registrar uma experiência que serve como contraponto a todo o aspecto tecnológico e futurista tão presente no visual inicial da Rede Manchete. Quatorze anos depois da inauguração, a identidade da emissora voltaria a chamar atenção, mas, curiosamente, não seria por conta dos recursos de computação gráfica.

Em março de 1997, foi lançada uma série de vinhetas protagonizadas por alguns dos principais artistas plásticos brasileiros. Eles eram filmados pintando numa tela de dois por três metros com o símbolo da emissora em alto relevo. Ou seja: o suporte da pintura continha uma escultura que, mesmo tomada pelas cores e pinceladas dadas pelo artista, continuava perceptível aos olhos do telespectador.

O projeto foi conduzido por Adolpho Rosenthal, da Noar Filmes, com trilha de Alexandre Ágara. O estudo de programação visual ficou a cargo de Marcos Weinstock. As filmagens foram realizadas na própria TV Manchete e a telecinagem feita pela produtora Casablanca. Utilizando uma técnica de animação, o tempo de pintura dos quadros foi reduzido de algumas horas para apenas 10 segundos.

Manabu Mabe foi o primeiro convidado. Demorou 6 horas para concluir a sua obra. Nela, o M branco ganhou manchas pretas, como as das cadelas, chamadas de Manchetinha, que Adolpho Bloch teve durante a vida. Era como se a Rede Manchete de Televisão fosse, na verdade, mais uma Manchetinha, criada com a mesma estima que Bloch dedicava aos animais, pelos quais tinha verdadeira paixão.

Ao fundo, a marca parecia inserida numa tela vermelha, a cor mais presente na marca da revista Manchete, rasgada pelo verde e amarelo. Tudo isso emoldurado por um grande espaço azul, como o do universo retratado nas vinhetas da emissora.

A intenção dessa série de vinhetas era clara. A Manchete, que, nos seus últimos tempos, vivia um processo de popularização da grade, queria demonstrar que continuava ligada ao universo erudito. Desejava-se resgatar o elo com a cultura que foi construído por Adolpho Bloch, um dos maiores colecionadores de arte brasileira.

Todos os principais prédios das Empresas Bloch eram repletos de pinturas e esculturas e foi este acervo que serviu de referência para a seleção dos artistas que protagonizaram as vinhetas.

Essa série permaneceu no ar até o fim da Rede Manchete, em maio de 1999. Dentre os pintores que participaram, estavam Romanelli, Mario Agostinelli, Domenico Calabrone, Carlos Bracher e Kenji Fukuda. Na época, os quadros foram doados ao acervo da família Bloch (13).

 

Considerações finais

Apesar das crises pelas quais passou e da ironia histórica de ser lançada como “A TV do ano 2000” e ter saído do ar em 1999, a Rede Manchete cumpriu um papel importante dentro do processo de evolução do videografismo: foi pioneira no uso de diversas tecnologias; formou uma geração de profissionais que até hoje atuam em diversas emissoras, com destaque para a TV Globo e a Globosat; e produziu vinhetas que ficaram na memória dos brasileiros.

A Rede Manchete foi a “rotativa sem papel” de Adolpho Bloch e, nela, procurou imprimir a mesma qualidade estética que as suas revistas traziam, ajudando a escrever uma página importante da história da TV e, em especial, do broadcast design no Brasil.

 

Notas

(1) Sobre a construção de identidades visuais na TV europeia, ver: IVARS, Christian H. El diseño gráfico em televisión: técnica, lenguaje y arte. Madri: Cátedra, 2002.

(2) FURTADO, Rubens. Programação I: da Rede Tupi à Rede Manchete. In: ALMEIDA, Candido J. M.; FALCÃO, Angela; MACEDO, Cláudia (Orgs.). TV ao vivo: depoimentos. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 64-65.

(3) Entrevista concedida por Cyro del Nero a Fernando Morgado via e-mail em 06/03/2008. Disponível em: .

(4) Sobre Mario Fanucchi e seu trabalho nos primeiros tempos da TV Tupi, ver: FANUCCHI, Mario. Nossa próxima atração: o interprograma no Canal 3. São Paulo: Edusp, 1996.

(5) Sobre Hans Donner e seu trabalho na TV Globo, ver: DONNER, Hans. Hans Donner e seu universo. São Paulo: Escala, 1996.

(6) Perfis: José Dias. Disponível em: . Acesso em 24 fev. 2013.

(7) “TV do ano 2000” foi um dos slogans adotados pela Rede Manchete durante a sua fase inicial. Outro foi “TV de 1ª classe”.

(8) PETIT, Francesc. Marca e meus personagens. São Paulo: Futura, 2003, p. 231.

(9) Entrevista concedida por Hugo Kovadloff a Fernando Morgado via e-mail em 13 fev. 2013.

(10) PETIT, Francesc. Op. cit., p. 231.

(11) Sobre o projeto inicial da TV Manchete, ler: MORGADO, Fernando. Segmentação na TV aberta: a implantação da Rede Manchete (1983). Cadernos de Televisão, v. 4. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos de Televisão, 2012, p. 42-29.

(12) FRANCFORT, Elmo. Rede Manchete: aconteceu, virou história. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, p. 330.

(13) Manchete destaca vinhetas em sua grade. Meio & Mensagem, São Paulo, 24 mar. 1997.

 

Fernando Morgado

Pesquisador e palestrante. Professor convidado da ESPM-Rio. Autor do livro “Televisionado: artigos sobre os principais nomes da TV” (Multifoco, 2009), um dos autores de “As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro” (Instituto Moreira Salles, 2013) e colaborador do “Av. Paulista, 900: a história da TV Gazeta” (Imprensa Oficial, 2010). Pós-graduado em Gestão Empresarial e Marketing e graduado em Design com Habilitação em Comunicação Visual e Ênfase em Marketing pela ESPM-Rio.

 


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