Ano: VI Número: 57
ISSN: 1983-005X
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Sem modelos, com história
Ethel Leon

O processo criativo não é alcançado pela mão habilidosa sozinha, mas deve ser um processo unificado no qual a cabeça, o coração e a mão desempenham um papel simultâneo.

Herbert Bayer

 

O ruído do torno elétrico, acionado com o pé, é leve e contínuo. Os ceramistas acompanham o movimento do giro da nova peça com a cabeça. Há um ritmo, cântico monótono, a argila vai tomando forma, sempre redonda, cilíndrica. É dela que derivam outras formas.

O rumor constante, o movimento circular induzem a uma espécie de transe. A concentração é total. As mãos, molhadas de argila, trabalham com precisão. O cilindro sobe retilíneo ou se abre em formato de tigela.

Antes disso, é preciso preparar a matéria-prima. A porcelana é dura, deve ser sovada como massa de pão densa, cortada com fio e reamassada. Ela é menos plástica que outras matérias, mas seu tato é mais suave.

Depois de anos dedicados à porcelana, Gilberto e Elizabeth gostam dessa matéria prima recalcitrante e acham difícil trabalhar outras argilas mais dóceis. Invenções de artesãos – a porcelana costumeiramente vai para moldes e não para o torno – livres para modificar costumes e formular seus meios e métodos de trabalho.

O ruído se interrompe. Os ceramistas precisam verificar o diâmetro das peças, medir o fundo com ponteiro, observar se a espessura é boa. O cilindro vai subindo, suas paredes se afinam. Os artesãos mantêm um pé no torno, uma mão dentro do cilindro e outra do lado de fora, com esponja molhada. Milímetros precisam ser acertados a olho nu, desbastados com espátula. Finalmente, a base de gesso é retirada do torno e a nova peça é posta para secar.

Os vasos mais compridos são feitos por montagem de dois cilindros, colados com a  própria porcelana. Esta operação acontece algumas horas depois de prontas as peças. Quando? Quando estão no ponto. A secagem vai até o que eles chamam de ponto de couro, a peça firme, mas úmida para aplicar as cores, os engobes, que é o próprio material terroso misturado com pigmento.

Em seguida as superfícies são trabalhadas. Pintura, entalhe, criação de rasgos superficiais em algumas peças, os chamados sgrafitos. Certo acaso pode determinar o resultado final. Alguns dos vasos de Gilberto apresentam desenhos de enigmáticos cristais flutuantes. Eles resultam de recorte do traçado de uma malha, teia contínua em outros vasos que, ao se fragmentar, torna-se outra coisa.

No processo de cozimento, a porcelana chega a encolher centímetros. A primeira queima se dá a 800 graus. A abertura do forno tem sempre surpresas. Muitas vezes a que parecia mais sugestiva se mostra falha, as cores não atingem a saturação que se esperava ou, o contrário disso, peças menos especiais antes da secagem ganham nova vida. Gilberto e Elizabeth se acostumaram a essas errâncias do forno. Já tratam as peças, nesse momento, como seres afastados deles próprios.

E o processo recomeça. Torno, medição, molhe com água, ponteira, corte, retirada de fatias de argila, de novo o desbaste. Os vasos e potes são, nesse momento, esmaltados por dentro e ganham em seu interior textura e aparência um pouco mais lisa, vítrea, mas, mesmo assim, sem assemelhar-se à perfeição de pintura automotiva, aquelas cores chapadas e brilhantes que parecem ter horror à passagem do tempo, manifesta na pele dos objetos.

Segunda fase do forno, desta vez a 1250 graus, durante 9 horas. E mais 36 horas de espera para que a temperatura se reduza lentamente. 

***

No livro A Caverna, o escritor português José Saramago descreve a labuta desesperada de oleiros que devem adequar-se às normas impiedosas do mercado. Ao fim, os artesãos decidem abandonar aquele mundo, que não comporta mais seu ofício, seu esmero, sua paciência.

Para nossa sorte, esta utopia negativa não conseguiu se impor totalmente. Modos de fazer artesanais persistem, como atos de resistência, como labor criativo das indústrias, na fase de modelação; no artesanato tecnológico e científico. Ofícios também permanecem e, entre eles, está a cerâmica artesanal de Gilberto Paim e Elizabeth Fonseca.

Em vez de abdicarem da especificidade artesanal, como fizeram os personagens de A Caverna, que tentam criar figurinhas iguais para vender em grande loja, Gilberto e Elizabeth se opõem com tenacidade à lógica mecânica da seriação indiferente. Mesmo as peças que se assemelham trazem rasgos firmes de personalidade e só são verdadeiramente apreciadas por quem as toca, manuseia, vira de cabeça para baixo e para os lados.

Pois é assim, e não como a uma pintura ou mesmo uma escultura, que se fruem os utilitários cerâmicos. Se, num primeiro momento, pensamos a atividade como ofício do tempo, pois as minúcias do torno, as longas esperas do forno elétrico exigem prazos que soam anacrônicos aos olhos de quem vive a intensa aceleração da vida contemporânea, a cerâmica passa a ser também uma espécie de obra não só do espaço, mas do corpo.

As mãos fazem e, segundo Saramago, têm, na ponta de cada dedo, um minúsculo cérebro, capaz de transmitir ao cérebro craniano as informações necessárias para a criação. A vista, o tato, as cadeias musculares são mobilizadas nesse ofício, que está longe de ser puramente cosa mentale.  E é nesse tocar o objeto que se dá a espécie de comunicação entre produtores e posseiros, na medida das mãos sensíveis, capazes de segurar com cuidado uma tigela, um vaso, um bule de chá.

O zelo é uma exigência quase moral da cerâmica de alta temperatura. Ninguém imagina quebrar uma peça dessas sem contrair imediatamente uma carga de luto. Esses não são objetos que entram e saem facilmente de nossas vidas, seu lugar é de permanência, o que traduz a grande herança que contém. Há esse medo de empregá-los na vida cotidiana, o que poderia ser contraditório, pois são tigelas, vasos, pratos, mas são também inutensílios, que é como Manoel de Barros define os poemas.

Gilberto Paim e Elizabeth Fonseca são artistas ceramistas. Estão muito longe dos ‘designers de cerâmicas’, que, à procura de formas exógenas, entregam seus desenhos a oleiros profissionais, que tentam executar o que outros rabiscaram.

Muitos dos ‘designers’ que assim operam nunca modelaram uma peça ou viveram a emoção da abertura de um forno. Movidos pela fantasmagoria do mercado, procuram, no mais das vezes, uma espécie de ‘frankgehrização’ dos artefatos. Não se trata da pesquisa sobre a resistência e as possibilidades das argilas, mas de apresentar o novo, a surpresa, fundada na frivolidade, como enuncia Max Bense. Já nossos ceramistas de Nova Friburgo, Brasil, têm apreço pelo processo que controlam e pelas formas históricas dos utensílios cerâmicos.

Para eles, não há contradição entre empréstimo e inovação. Como diz Pierre Francastel, “a imitação e a invenção são dois produtos complementares da atividade humana. A primeira desemboca nas técnicas, a segunda, nas ciências e nas artes”.

Nessa produção há forte trabalho inventivo. As perguntas que se endereçam às obras de arte geralmente começam por Como. Aqui também. Como obtiveram esse vermelho tão intenso? Como desenharam essas linhas que percorrem com ‘regularidade irregular’ o vaso de porcelana? Como arranharam com o sgrafito, essa superfície e com quem conversa esta peça?

Gilberto e Elizabeth dialogam com os modernos, os construtivos e suas preferências. A frugalidade e honestidade dos objetos japoneses, muitos da tradição mingei; os desenhos geométricos dos índios brasileiros; a essencialidade de muitos dos projetos do design moderno.

Há também o diálogo com alguns artistas, seguramente Josef Albers e Mark Rothko em suas buscas de vibração das cores, sempre em relação. Há ainda a procura do preto luminoso, como em Soulages. Nas superfícies pintadas, vemos o jogo de justaposição de cores que as redefine continuamente. Não se trata de buscar uma espécie de ontologia do azul, do surpreendente vermelho e do amarelo, tão difíceis na atividade da cerâmica tradicional e também da porcelana, mas de estabelecer relações entre elas.

Os ceramistas não entendem o moderno como padrão ou estilo normativo. A busca das formas estruturais não os impede de pesquisar ornamentos, adornos de pele, destinados aos poros dos utensílios. Nos últimos tempos, depois de permanecer em registros severos, a cerâmica feita em Nova Friburgo se abriu para novas cores, possibilitadas pelos pigmentos que a indústria química passou a produzir. Até mesmo um controlado humor passou a fazer parte desse trabalho, como no caso dos vasos pássaros, talvez as únicas peças a ter rasgos metafóricos.

Mudanças e novidades vão se introduzindo lentamente, resultado do processo de trabalho, das referências, dos materiais e da vivência do ateliê. O ofício, longe, muito longe da repetição mecânica, é artesanal, não porque cerâmica, mas devido a seu processo de trabalho (1) como ensina Julio Katinsky.

Em sua defesa do artesanato como “modelo plenamente idealizado de satisfação no trabalho, Wright Mills” (2), observa que os detalhes são significativos porque não estão dissociados do produto do trabalho; e também que o artesão é livre para controlar sua própria ação e para aprender com ela. O trabalho, aí, é o meio de desenvolver-se como ser humano.

Também, para Mills, não há ruptura entre trabalho e diversão ou trabalho e cultura. “O modo como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de vida.” E, de fato, a vida na casa-ateliê de Nova Friburgo se move numa espécie de continuum entre a atividade da cerâmica, no ateliê; os vídeos de arte, a leitura.

A atividade nada tem de diletante, é árdua, exige. No momento em que muito da arte e das atividades ditas artesanais se fazem à base da djzzificação, do ready-made, da preferência por combinação de elementos heteróclitos e dispersos, o fazer de Gilberto e Elizabeth tem algo de resistência, um tanto de William Morris, do reencontro da alegria no trabalho, aquele que se faz por escolha, pelo controle sobre o instrumento.

Sua produção é como aquela de um escritor, que produz narrativas, ficção, imagens verbais com base em vocabulário pré-definido. Aliás, a palavra ficção vem do latim fingo, que diz respeito à atividade do oleiro, aquele que fabrica formas.

Por isso, o chamado utópico desta cerâmica não pode se dar no plano do uso ou do consumo. É na produção que ele se constrói. As novas levas de peças geralmente demoram quase dois anos para entrar no gosto dos compradores, Gilberto e Elizabeth sabem disso. E não se importam. Mantém a produção segundo suas escolhas, não deixando de fazer o que já é aceito. Equilibram-se, assim, como artistas que vivem de seu trabalho.

Elizabeth, dedicada a utilitários, tem experimentado a cerâmica de séries, feita em moldes. Pensa, um dia, em encontrar indústria que acolha seus utensílios, muito bem ensaiados. A convivência do laboratório inventivo e artesanal com a escala industrial se realiza em fábricas exemplares, como a conhecida finlandesa Iittala. Quem sabe um dia entre nós...

Gilberto e Elizabeth fazem a diferença entre o trabalho do moldar, que seria o das pequenas séries. E o de modelar, que é o seu fazer cotidiano, peça a peça.  No entanto, a palavra modelar também implica uma repetição de modelo, que não é da sua seara.

Construir a forma, é isso que fazem Gilberto Paim e Elizabeth Fonseca. Como tantos artistas, eles criam seus próprios instrumentos de trabalho, adaptados de ferramentas mecânicas e de cozinha. Em uso permanente perfilam-se espátulas de bolo e liquidificador, ponteiros, réguas aparadoras. A atividade da cerâmica nem de longe lembra arroubos performáticos, o que se evidencia nas peças, que traduzem certo decoro, contenção na forma, nas texturas e nas cores.

Os artistas mantêm o vínculo com o passado da cerâmica, de dez mil anos, mas não têm a ilusão de perpetuar aquilo que a história já roeu. O antigo fogo é hoje um forno elétrico; os pigmentos naturais podem ser empregados tanto quanto os obtidos em laboratórios. Também sua formação como artistas modernos faz que entendam a argila e mesmo os objetos que criam como espécie de tela em branco, suporte tridimensional para as pesquisas da segunda queima.

Se o modelo artesanal se tornou um anacronismo, como ensina Wright Mills, que usamos como ideal explícito, podemos dizer que as cerâmicas de Gilberto Paim e Elizabeth Fonseca são testemunhos dessa auto-formação que não se alcança com facilidade. Seu processo de trabalho se aproxima daquilo que se busca como luta contra a indústria cultural, espécie de Bildung (3), complexa e exigente. 

 

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O presente texto encontra-se publicado no catálogo da exposição Cerâmicas recentes, que contém as obras de Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim. Além do texto de Ethel Leon, o catálogo, com design de Glória Afflalo, apresenta texto do crítico e curador alemão Walter Lokau. As fotos que compõem a obra são principalmente de Eduardo Câmara, com algumas contribuições de Romulo Fialdini, Ivan Dias, Regina Lobianco, Nina Paim e Fernando Lemos. 

 

 

Notas

(1) Existe hoje no Brasil e em muitas partes do mundo a ideia de que o artesanal se refere a determinados ofícios, entre os quais está a cerâmica. No entanto, o que define o caráter artesanal de um trabalho é o processo como ele se dá, e não a matéria prima ou a tradicionalidade do fazer. Para uma reflexão sobre o tema ver: KATINSKY, Julio.“Artesanato moderno”. In Agitprop, Ano I, número 1. Disponível em http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=repertorio_det&id=5&Titulo=repertorio, acesso em 3 de agosto de 2013.

(2) MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 59.

(3) A palavra Bildung está sendo empregada de forma quase maliciosa. As palavras terminadas em ung guardam uma espécie de memória do verbo. Bilden seria formar, mas também, curiosamente, moldar e modelar. Bild é quadro. Bildung seria um processo tenso e continuado de formação, de educação, de aperfeiçoamento, de auto-desenvolvimento, jamais empregado para a atividade de um ofício.

 

Bibliografia

KATINSKY, Julio.“Artesanato moderno”. In Agitprop. Ano I, número 1. Disponível em http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=repertorio_det&id=5&Titulo=repertorio, acesso em 3 de agosto de 2013.

MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

 


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