Ano: VI Número: 57
ISSN: 1983-005X
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Ainda sobre as raízes do design no Brasil
João de Souza Leite

Livro: IAC: primeira escola de design do Brasil Autor(a): Ethel Leon Editora: Blucher

Postado: 04/07/2014

   

“A história não é escrita do mesmo jeito como foi vivenciada, e nem deveria sê-lo. Os habitantes do passado sabem melhor do que nós o que era viver por lá. No entanto, em sua maioria, eles não estavam bem posicionados para entender o que lhes estava acontecendo e por que” (1). Assim, o historiador britânico Tony Judt iniciava um de seus li­vros sobre o pensamento político francês, indicando a complexidade da tarefa com que o historiador se defronta. Se, por um lado, o distanciamento no tempo nos permite orde­nar fatos, segundo determinada perspectiva, por outro, essa mesma perspectiva tende a criar empecilhos para o estabelecimento de uma maior empatia com aqueles persona­gens.

Atrapalhados que somos, como país, com as questões relativas ao projetar, seja qual for o âmbito das competências específicas exigidas, faz-se cada vez mais necessário no Brasil investigar de modo sistemático tudo aquilo que, em nosso passado, possa contri­buir a um melhor entendimento daquilo que nos torna frágeis em relação à formação, entre nós, de uma cultura de projeto.

Qual a perspectiva analítica a adotar frente aos processos que nos conduziram simul­taneamente a ganhos e a uma muito significativa precariedade dessa disciplina intitu­lada Design entre nós que, em um dado momento, chegou a propor-se como espécie de ciência do ato de projetar?

IAC: Primeira escola de design do Brasil, livro escrito pela experiente jornalista na área do design brasileiro Ethel Leon, fruto de sua dissertação de mestrado defendida em 2006 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, se insere nesse contexto e vem preencher lacuna inquestionável. Ethel transforma “um fantasma em objeto de estudo”, como lhe disse um amigo.

Ethel Leon é da primeira geração de jornalistas que se envolveram com o design no Brasil de modo sistemático. Ao reportar e analisar essa produção desde os anos 1980, na labuta das páginas da revista Design&Interiores, Ethel construiu inegável posição a fa­vor da análise do design brasileiro. Utilizo o termo em seu sentido mais amplo, tanto do congraçamento quanto da criteriosa avaliação a partir de valores explícitos.

Não se contentando aos limites da escrita jornalística, Ethel tanto dedicou-se ao resgate de personagens então já ausentes da cena principal como ao registro de depoi­mentos e análises de outros profissionais atuantes no mercado, ao escrever livros e organizar exposições com esse fim. Assim, sua capacidade de historiar e desenvolver a crítica potencializou-se e, a partir de seu ingresso na academia, para onde foi em busca de maior sistematização para tal exercício, Ethel se estabeleceu como uma das referên­cias críticas ao design no país.

Toda essa atividade lhe deu credencial para passar a desenvolver outra espécie de investigação. IAC: Primeira escola de design do Brasil vem a ser o primeiro resultado desse novo estágio em seu percurso.

Resulta daí não se tratar de uma iniciante no campo, longe disso, e aqui a autora apresenta uma nova perspectiva ao debate. Aliás, poderia afirmar que aqui se apresenta bem mais que isso. Ao problematizar questões várias surgidas ao longo da investigação, pode-se mesmo listar uma série de indicações para um verdadeiro programa de pes­quisas em torno de questões vitais à história do desenvolvimento do projeto em design no país.

A criação do curso de desenho industrial no Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo em 1951 é episódio central na evolução das discussões em torno do papel do artista no contemporâneo. Iniciativa de Pietro Maria e Lina Bo Bardi, sua repercussão veio se ampliar através de fatos sucessivos, nos quais se imbricam a montagem da exposição de Max Bill no MASP no mesmo ano e o agrupamento de artistas em torno da ideia da arte concreta, em escala progressivamente maior que culmina com a criação efetiva de uma escola de nível superior exclusivamente dedicada ao desenho industrial, a Esdi no Rio de Janeiro em 1962. O epíteto tão cultivado por esta última, de ser a primeira escola da América Latina, é o que Ethel provoca com seu título, embora ela mesma venha a questionar a primazia da escola do IAC, aludindo à experiência realizada no Rio de Janeiro por Tomás Santa Rosa. Vale dizer que o curso organizado por Santa Rosa em 1946, na Fundação Getúlio Vargas, girava em torno do Desenho de Propaganda e Artes Gráficas, não se caracterizando ainda como desenho industrial (2). Questão de menor importância, o que vale de fato é a possibilidade oferecida por Ethel em nos aproximar de documentos e relatos que configuram a primeira formulação de um discurso a res­peito do desenho industrial no Brasil. É ali, verdadeiramente, que tudo ganha contorno mais específico. O conjunto de escritos, tanto de Pietro Maria Bardi como da arquiteta Lina Bo, sobre desenho industrial, a eles se acrescentando uma ou outra nota de Jacob Ruchti, constitui verdadeiramente o primeiro compêndio de enunciados sobre o assunto em nosso país. IAC: Primeira escola de design do Brasil bastaria por este resgate.

* * *

Tenho o costume de guardar dentro de livros as resenhas escritas sobre eles. Resenhas costumam não somente descrever propósitos, métodos e estrutura dos textos analisados, mas também ampliar certos aspectos da leitura original, ora pelo viés da síntese, da contextualização, da complementação ou, ainda, da interpretação e mesmo da justapo­sição crítica de outros conceitos. Escrever uma resenha implica revisitar o tema tratado para além do redigido, sobretudo em se tratando de assunto relativo às ciências huma­nas, sempre tão sujeitas à diversificação dos olhares e dos conceitos.

Confesso que, ao iniciar a leitura do texto, deixei-me levar por uma reação ao que identifico como uma posição da autora quanto a uma ontogênese do design como ativi­dade disposta a uma desconstrução da estrutura produção/consumo. Conhecedor de po­sições políticas da autora, muitas vezes reveladas em nossas conversas privadas, passei a ler não somente nas entrelinhas, mas também na literalidade do texto, uma série de interpretações muito condicionadas por essa visão que, a meu ver, podem toldar uma análise mais abrangente. É disto que Tony Judt nos fala.

Assim, nos dois primeiros capítulos – “De historiadores da arte para técnicos da indústria” e “Filiação ao Institute of Design de Chicago e à Bauhaus Dessau” – feita a ressalva à tão significativa reunião de informações a respeito da iniciativa e sua evolu­ção, nota-se um enquadramento prévio a todos os acontecimentos, condicionado pela visão que coloca empresários e homens da cultura em campos radicalmente opostos, o que, no mínimo, corresponde somente a uma das faces da realidade.

Embora a discussão sobre a noção de realidade em estudos históricos não encontre aqui o seu lugar de debate, é possível imaginar que muito do que se passou no Brasil daquele momento, época em que se dava uma guinada definitiva em direção ao modelo produção/consumo, merece um olhar menos condicionado por ideologia.

Nas discussões mantidas com a autora, sempre no terreno do bom debate, embora sem tratar explicitamente dessa questão, muitas vezes esbarramos na questão ideológi­ca. Particularmente, prefiro ater-me à posição do francês Raymond Aron, quando alude à ideologia como “uma imagem literária de uma sociedade imaginável [ou desejável]” contraposta à possibilidade de estudos sobre as formas de operação de uma determinada sociedade.

Porque há de se apontar questões no pressuposto, por exemplo, de “uma base ética para o design, independente da indústria”. Há aqui algo não explicitado sobre uma de­sejável não inserção do design na dinâmica da sociedade capitalista. Essa posição já foi contestada em diferentes níveis, segundo diferentes óticas, por diferentes autores, inclusive pelo marxista Giulio Carlo Argan, com sua crítica expressa à Bauhaus em A História da arte como história da cidade, ao apontar sua excessiva autoatribuição de um papel de mentor estético da sociedade. Se fosse o caso de apontar um problema existente na parte inicial do texto – e que mesmo o sendo, não lhe retira valor algum – é este enquadramento prévio conduzido por uma postura um tanto antiamericanista, consequente de uma ideologia anticapitalista. É bem provável que outras análises possíveis pudessem associar-se e mesmo surpreender a autora, caso o óculos pré-es­tabelecido fosse deixado de lado.

Por exemplo, a meu ver, cabe problematizar Raymond Loewy para além da noção do styling. Na verdade, o grande artífice do styling foi outro designer, Harley Earl. A obra de Loewy, traduzida ao francês como La laideur se vend mal e ao espanhol como Lo feo no se vende, tem em seu título um outro significado – Never leave well enough alo­ne – e sugere, no campo conceitual, muito mais do que a simples associação do design com os elementos propulsores de vendas. E assim também se deu com outros designers americanos da época. A SID – Society of Industrial Designers, primeira associação de designers americana, criada em fevereiro de 1944 por 15 designers, exigia a comprova­ção de três projetos realizados em diferentes áreas, para diferentes indústrias, de modo a caracterizar sua ação verdadeiramente como de profissionais do projeto, desvinculados de qualquer especialização fabril, e apresentava seus códigos de conduta (3). Assim como se faz sempre bom lembrar da caracterização do design como instrumento surgido no âmbito mais central ao capitalismo industrial do século 18.

Ainda, por outro lado, enquanto a caracterização da industrialização brasileira no início dos anos 1950 se dava pelo transplante de projetos dos grandes centros econô­micos sem nenhum respeito a modos endógenos de produção então existentes, nos Estados Unidos a indústria já havia, ao final do século 19, se tornado fator constituinte da própria identidade americana. Tanto no Brasil, onde a indústria se estabeleceu frente à inexistência de competência artesanal consolidada, tão apontada por Lina Bo em mo­mento futuro, como nos Estados Unidos, em que se deu uma evolução contínua entre estágios daquela competência e uma renovação dos princípios operacionais da produção industrial de origem britânica, há nuances e sutilezas que parecem superar a oposição entre indústria e cultura. Na mesma época, segundo Otl Aicher em The world as design, Charles Eames é apresentado como espécie de modelo a ser seguido. E não se pode dizer que Eames não fizesse parte do mesmo caldo cultural de Walter Dorwin Teague, Nor­man Bel Geddes, Henry Dreyfuss e outros tantos designers que lhe foram contempo­râneos.

Credito parte dessa maneira de agir a um modus operandi ainda orientado, ao início do trabalho, por sua postura prévia, pois o que vai se revelar nos capítulos posteriores é, sobretudo, uma abertura de crítica absolutamente formidável, quando Ethel vai seguida­mente apontar as contradições dos personagens e da época. De uma perspectiva unidi­mensional, o trabalho passa a revelar uma pesquisadora inquisitiva, em constante movi­mentação frente ao seu objeto. O trecho em que essa crítica se expõe está vivamente expresso na passagem em que a autora qualifica o design gestado ali nos anos 1950 como “sincrético, híbrido, mestiço, cabroche, amalgamado ...”.

Toda a complexidade do quadro de então surge em uma dimensão multifacetada, on­de conceitos e modos de agir são discutidos com um desprendimento que contraria a visão ideologizada inicial, conferindo um valor especialíssimo ao texto.

E daí adiante, a pesquisadora vai além da problematização do IAC e da sua repercus­são, e aponta anotações para um programa de pesquisa histórica mais alentado:

1. Estudar mais profundamente as relações entre o arquiteto, designer e editor italia­no Gió Ponti e Lina Bo Bardi, pelo que isso possa ter nutrido o projeto posterior da ar­quiteta em relação ao design e artesanato brasileiro;

2. Investigar a invenção do empresariado brasileiro, incluindo designers empreende­dores, no estágio econômico em que o Brasil se encontrava nos anos 1950/60;

3. Dissecar a natureza dos conceitos e da propriedade da exposição “O design no Brasil ...”, montada pelos Bardi no Sesc Pompeia;

4. Documentar, registrar e criticar analiticamente a produção dos profissionais egressos da Esdi ainda nos anos 1960 e 1970;

5. Superar os impedimentos e investigar a relação entre design e artesanato, dada a exemplaridade da produção de mobiliário dos anos 1950 via Sergio Rodrigues, Joaquim Tenreiro, Estúdio Branco e Preto, Ricardo Fasanello, e outros, plenamente baseada em ofícios artesanais;

6. Observar, sem restrições prévias, e desenvolver estudo sobre as razões para a per­manência da Escola Superior de Propaganda e Marketing, cuja origem se encontra no IAC ; entre outras tantas indicações.

Assim, IAC: Primeira escola de design do Brasil se apresenta como história e crítica, o que, convém reiterar, tem faltado muito na análise do design brasileiro e que Ethel Leon nos contempla com seu novo livro.

 

 

João de Souza Leite é graduado em Desenho Industrial pela Escola Superior de Desenho Industrial / UERJ (1974), com mestrado em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação / UFRJ (1999) e doutorado em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH / UERJ (2006) É professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor agregado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi consultor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e tem experiência na área de Design e Educação em Design, atuando principalmente nos seguintes temas: design gráfico, design editorial, gestão, história, epistemologia e cognição em design.

 

Notas

(1) JUDT, Tony. The Burden of Responsibility: Blum, Camus, Aron, and the French Twentieth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1998.

(2) REGO, José Lins do. Correio da Manhã, 15 de fevereiro de 1947.

(3) LOEWY, Raymond. La laideur se vend mal. [Never leave well enough alone], Gallimard, 1963, 1951.

 

Bibliografia

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

JUDT, Tony. The Burden of Responsibility: Blum, Camus, Aron, and the French Twentieth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1998.

LEON, Ethel. IAC: Primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Editora Blucher, 2014.

LOEWY, Raymond. La laideur se vend mal. [Never leave well enough alone], Gallimard, 1963, 1951.

REGO, José Lins do. Correio da Manhã, 15 de fevereiro de 1947.

 


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