Elvira de Almeida, invenção de campo de trabalho
Ethel Leon
As praças abandonadas e os playgrounds privativos de condomínios residenciais mostram uma penúria projetual de dar dó. No entanto, temos um exemplo formidável de desenho de brinquedos públicos na obra da paulistana Elvira de Almeida (1945-2001), alguns deles ainda à vista no Parque do Ibirapuera, São Paulo. Ela chamava seus brinquedos coletivos de esculturas lúdicas e não de brinquedos, muito menos de peças de playground. Certamente havia nessa nomenclatura uma indicação da concepção de seu trabalho. Para entendê-lo, é bom lembrar a trajetória de Elvira.
Formada em desenho industrial na FAAP, em 1975, Elvira de Almeida ingressou no programa de pós-graduação da FAU/USP em 1976, como técnica. Antes disso, de 1964 a 1966, ela cursara arquitetura de interiores no iadê, o Instituto de Arte e Decoração de São Paulo. Entre 1970 e 1974, desenvolveu um sistema de mobiliário para os apartamentos construídos pelo Inocoop em São Paulo. O conjunto habitacional era erguido em sistema de mutirão e Elvira teve bons contatos com os usuários/mutirantes. Para chegar ao desenho dos móveis – que tinham componentes padronizados, propostos com um mínimo de matéria-prima e de simples execução, Elvira pesquisou exemplos de móveis feitos pelos próprios usuários, como um berço, fabricado com caixas de frutas (fig.1). Nesse trabalho, em que os paradigmas clássicos do design industrial estavam presentes – planejamento, racionalização de componentes, uso de ferramentas simples acessíveis aos produtores, desenho seco e instrumental – Elvira propôs, no entanto que as superfícies dos armários fossem acabados pelos próprios usuários (fig. 2).
Longe, portanto, do rigor universalista e padronizado do projeto moderno que, além de tudo, mantinha seu horror a qualquer tratamento do material que o ‘camuflasse’ ou escondesse, a designer evoca a tradição, renovando-a, de John Ruskin e seus temas do ornamento. O ornamento, visto como momento de liberdade criadora do artesão, se faz presente nesse mobiliário. Não se tratava, nesse período, de um apelo à ‘customização’ do produto, tática de marketing que seria implantada anos depois nas indústrias de bens de consumo, mas sim, de devolver ao artesão (uma vez que os construtores eram usuários dos apartamentos e dos móveis) uma dimensão criativa, que interferia no desenho final do móvel projetado.
Na mesma década, Elvira criou uma série de pequenas esculturas utilizando restos de madeiras de primeira linha, que recolhia em marcenarias. Nessa atividade, além de dar forma a pedaços de madeiras, ainda utilizou sobras de móveis entalhados, ressignificando-os em seus objetos.
Algumas das bases de seu trabalho já estavam, portanto, presentes nos anos 1980: uma definição de seu lugar como designer/arquiteta/artista trabalhando com artesãos/usuários. Ela não apenas ouvia o que diziam, mas reconstruía sua prática, a partir do desenho concreto, realizado no canteiro da obra. Também a busca pelo aproveitamento de resíduos, como as madeiras da marcenaria, já indicavam uma direção de suas atividades. Essas duas características acompanharam o trabalho de Elvira de Almeida em toda sua trajetória e lhe dão um perfil singularíssimo: a união das preocupações sociais, expressa em sua relação com os mutirantes/usuários, e o olhar ambientalmente orientado, que a fazia retirar do lixo as matérias-primas de suas obras.
Alguns de seus primeiros trabalhos constituem a realização de áreas de brincadeiras, realizadas com pouquíssimos elementos, tais como um tronco de árvore caído, que ela seccionou em diversos pedaços, espaçando-os no terreno. Os cortes da árvore foram tratados e receberam pinturas de cores vivas, desnaturalizando a madeira. Uma prancha foi fixada no chão e no muro do terreno, oferecendo a possibilidade de ‘escalada e escorregada’. Assim, com frugalidade total de elementos, estava criado um parque infanto-juvenil (fig. 3)
Em seguida, seus trabalhos de brinquedos públicos passaram a utilizar eucaliptos tratados, muitos abatidos na cidade e que eram guardados em depósitos da prefeitura. A designer passou a armar algumas estruturas com eles, dispondo-os em jogos diagonais e criando situações de brincadeiras, como escalar (em clara alusão ao pau-de-sebo), escorregar, montar, equilibrar-se (fig. 4). Os eucaliptos tratados eram pintados, muitas vezes com faixas horizontais vermelhas, amarelas e azuis e, em alguns casos, eram finalizados como carrancas ou figuras totêmicas, que ela pesquisou na cultura popular brasileira (fig 5). Essas estruturas de madeira armavam-se como grandes esqueletos e, entre algumas delas, fixavam-se redes de proteção ou cordas, estimulando outro tipo de contato tátil e outro tipo de ação, como o jogar-se sobre as redes ou o balançar nas cordas. Em sua maioria, remetem para o alto, dialogando com a verticalidade da cidade. Nos ‘restos’ abandonados pela especulação imobiliária e transformados em praças, é preciso projetar-se para o alto, desafiando as imensas empenas de concreto que criam barreiras em todas as ruas.
No começo dos anos 1990, durante o governo de Luísa Erundina na prefeitura de São Paulo, Elvira teve acesso a vários depósitos de materiais de órgãos municipais e passou a trabalhar com hastes de ferro de iluminação pública (fig. 6). Essas hastes contracenavam com os eucaliptos, possibilitando desenhos com estruturas mais delgadas e ascendentes. Enquanto os eucaliptos permitiam apenas uma montagem em diagonais, o ferro liberou o desenho. Dele nasceu a gangorra (fig. 7), que muda o eixo do movimento: enquanto as gangorras tradicionais têm um plano, geralmente de madeira, articulado sobre um tripé metálico, a de Elvira tem o ponto de equilíbrio no chão e é peça única, toda de ferro. Desenhada para espaços internos, ela se apóia sobre base de borracha, permitindo que as crianças não apenas se elevem e voltem ao chão, como em toda gangorra tradicional, mas movam-se nas laterais, tirando a gangorra do lugar. Em espaços abertos ela é presa no chão. Seus assentos são de eucalipto, fixados por um parafuso à estrutura de ferro, e são esculpidos, de modo a permitir apoio lombar, respondendo, assim, a questões de conforto, tão caras hoje à ‘ergonomania’.
O que chama a atenção, nos brinquedos de Elvira, é uma economia muito grande de meios. Se comparados com os playgrounds atuais, eles são acintosamente frugais. Parquinhos contemporâneos têm, muitas vezes, uma grande gama de materiais e desenhos fechados, unívocos: a casinha é a casinha, o balanço é o balanço, a rampa a rampa, numa tautologia infernal. À ‘liberdade’ no uso de materiais – há brinquedos que têm madeira, metal, plástico e sapê! – se contrapõe uma receita de movimentos bastante restrita. Os percursos raramente oferecem mais do que opções binárias. Trata-se do uso das mesmas cadeias musculares, empregadas para subir escadas, caminhar, descer em rampas, balançar-se em pneus. A simetria e a ortogonalidade são constantes, indicando mais um adestramento, uma chamada à disciplina do que um exercício de exploração corporal.
Também nos brinquedos atuais estão presentes as preocupações paranóicas com segurança. Embora haja cuidados pertinentes, sem dúvida eles subtraem das crianças qualquer possibilidade de arriscar-se, como se o risco devesse ser evitado a todo custo. Arriscar-se, sim, mas em esportes radicais, com autorizações assinadas e nenhuma chance de responsabilizar a instituição por joelhos machucados ou lábios partidos.
Os brinquedos de Elvira, ao contrário disso, envolvem riscos. As crianças devem domar as estruturas propostas, sem caminho monolítico, ativando cadeias musculares abandonadas no cotidiano e exercitando-se em formas assimétricas, instáveis, que exigem equilíbrio, força, destreza e jogo de cintura. Os brinquedos tendem a incentivar escaladas, mas há várias maneiras de acessar o topo de um brinquedo e também de voltar ao chão.
Se entendemos que os artefatos são próteses (inclusive os gráficos, remetendo à palavra), não podemos imaginar que todas sejam ‘extensões do homem’, como queria M. Macluhan, mas que cada uma interpreta e propõe um modo de ser deste ‘homem’. Grande parte dos brinquedos públicos propõe adestramento, disciplina e formas fechadas, prontas, nas quais a interação se dará de maneira controlada.
E, ainda, as formas de Elvira são, no máximo, sugestivas, de objetos do cotidiano. A mais figurativa delas, o barco (fig. 8), é composto de algumas linhas, enquanto os demais não traçam desenhos acabados, não mimetizam as formas externas, mas permitem que as crianças lhes atribuam significados distintos.
A questão da escultura
Se Elvira de Almeida denominava seus trabalhos de esculturas lúdicas e não de brinquedos é porque via neles uma linhagem que remete à escultura moderna. Certamente suas peças devem a escultores construtivos como Tátlin – pense-se no projeto de torre feito em homenagem à III Internacional Socialista. A escultura seria construída em linhas metálicas, espiraladas e ascendentes; ou no contra-relevo, em que a tensão das linhas no canto da sala fala de uma tração que não tem carga, de uma tensão que não é aliviada por volume. É a escultura da tensão e do equilíbrio em vez da de volumes e massas.
Certamente Elvira de Almeida dialoga com a produção da artista brasileira Ione Saldanha (1921-2001) que, ao questionar a dicotomia pintura e escultura, propõe suas ripas e bambus como suportes da pintura. Aqui a estrutura traçada geometricamente e seu implícito desejo da ordem dá lugar a uma forma pré-existente, no caso do bambu, cujo crescimento está longe de ser regular como uma coluna de madeira, pedra, metal ou cimento armado. O bambu mantém suas irregularidades, requebra em sua verticalidade, mantém a memória do crescimento vegetal, da matéria orgânica. (fig.9) Ione Saldanha pinta os bambus em faixas multicoloridas horizontais, estabelecendo esse diálogo vertical/horizontal, apontado por Frederico Morais: " Porque uma das habilidades de Ione foi sempre esta, de casar a verticalidade (que é geralmente tensa, mas também veículo da energia espiritual) com a horizontalidade (que é repousante).(1)
Ione não ‘respeita’ o material em sua integridade, em sua ‘verdade’, como os modernos. Nem lhes aplica uma cor chapada, alusiva a procedimentos industriais. As cores são muitas e, embora não escondam os entrenós ou diafragmas dos colmos, atribuem novo sentido a esse suporte, que não se apresenta neutro. As ‘moitas’ de bambus pintados apresentados por Ione Saldanha em suas exposições aproximam-se dos eucaliptos de Elvira de Almeida, nos quais também não há a supressão ou a camuflagem do material e também pelas faixas horizontais da pintura.
Embora receosa de cair numa espécie de vulgata feminista, chamaria a atenção para esse diálogo do vertical/horizontal, construtivo/orgânico realizado por duas mulheres artistas. É como se ambas tivessem um olhar desconfiado para essas estruturas geométricas perfeitas, que trazem consigo a aspiração a uma sociedade totalmente organizada, como se houvesse uma chamada a elementos erráticos como o bambu em crescimento e mesmo do eucalipto, que ao buscar o sol e a depender de outras situações climáticas, se inclina para os lados, rebola em seu prumo. As cores aplicadas na horizontal também remetem à terra. Ou seja, é como se o desejo ascensional das estruturas tivesse uma contrapartida terrena, fincada no chão.
É curioso observar ainda que no trabalho de Ione Saldanha estão presentes elementos do mundo industrial como grandes bobinas de madeira, construídas sem grandes preocupações de acabamentos. Ione Saldanha pintou essas bobinas, apresentando o objeto em suas possibilidades de locomoção e figurando com as tintas a representação da própria bobina, chegando a um resultado de brinquedo que, se não é utilizado com tal, convida a ser manipulado, rodado, empurrado.
Aqueles que vêem no design apenas uma diluição comercial do campo da arte ou a simples promessa de valor de uso, cuja função é aumentar o valor de troca dos objetos, dirão que esta aproximação da obra de Elvira de Almeida com artistas construtivos é canhestra. No entanto, quem entende e pratica o design como realização de valor de uso, capaz de fazer dialogar campos estranhos entre si (como o da indústria e da tradição artística) pode enxergar tal aproximação nas esculturas lúdicas, acrescentadas de funções múltiplas, precisas e muito complexas. Aqui, é preciso calcular pesos – para que as estruturas agüentem duas, três, seis crianças e, eventualmente, adultos.
Pois Elvira de Almeida não limitava o uso das esculturas lúdicas a crianças. A restrição da dimensão do brinquedo às crianças e seu confinamento em espaços onde não existe a convivência entre gerações – ou em espaços onde os adultos se restringem a vigiar e ensinar, tais como a escola – tem sido apropriada pelo marketing na definição de faixas cada vez mais estreitas de idades. Pré-infância, pós-infância, pré-adolescência, cada vez mais se criam produtos e serviços específicos e se abandonam formas de socialização capazes de fazer dialogar diferentes gerações.
As esculturas, além de permitirem o uso por adultos são desenhadas especificamente para os espaços onde são instalados. E eles não são locais de consumo ou não-lugares da super-modernidade, mas locais contextualizados, em que a diversão e o lazer são concebidos como produção cultural, o que também estimula a convivência de gerações.
Design na contramão
É importante acentuar que o trabalho de Elvira de Almeida com sucata urbana foi realizado antes mesmo da Eco-92. Se hoje, a procura da sustentabilidade faz rever uma série de procedimentos, recuperando matéria-prima do lixo e outros tantos (além do grande investimento no demagógico marketing verde), no começo dos anos 1990, a concepção do trabalho de designer mais difundida era a que situava o projeto a partir de uma encomenda empresarial, institucional, geralmente com matérias-primas e meios de produção previamente definidos.
Ao recuperar a sucata urbana – como postes, hastes de iluminação pública, betoneiras e até hélices de ventiladores – Elvira de Almeida fez o caminho inverso, ao partir do lixo para o produto. Mas, mais do que isso: ela inventou um campo de trabalho, que partiu de necessidades não atendidas – lazer não pago em espaços públicos; integrou a dimensão criativa do usuário no projeto, comprometendo-se com a realização de opções de produção cultural, mais do que de simples serviços.
A aceitação de seus projetos em conjuntos habitacionais populares e praças públicas, as formas complexas, mas visceralmente simples, que dialogam com a tradição escultórica e integram os conhecimentos de uma pedagogia libertária do corpo, fazem dela uma referência importante no design brasileiro. Muitos de seus projetos não chegaram a ser executados, mas sua pesquisa, registrada em livro, pode ser desdobrada e continuada por aqueles que vêem o design como resposta a necessidades sinceras e não uma máscara afoita da mercadoria.
Dois brinquedos para espaços públicos, assinados por Elvira de Almeida constaram da exposição que representou o Brasil na mostra internacional Designmai. Eles foram construídos por Samuel Moreira, companheiro de Elvira e co-autor de muitas de suas peças. Na volta ao Brasil, os brinquedos foram doados pelo Ministério da Cultura ao campus das Faculdades de Campinas (Facamp).
Implantados a céu aberto, os dois brinquedos foram alvo da curiosidade geral e me motivaram a redigir o texto acima, resultado da apresentação que fiz na escola, quando da cerimônia de doação (26.04.2007) da qual participaram Erlon Paschoal (pelo Minc) e Kiko Farkas (co-curador da mostra, ao lado de Felipe Taborda e da autora).
( 1) MORAIS, Frederico. Bobinas e empilhados ou a cidade de Ione. In: Saldanha, Ione. Ione Saldanha. n. p. disponível em http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_criticas&cd_verbete=2103&cd_item=15&cd_idioma=28555
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