Ano: III Número: 25
ISSN: 1983-005X
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Quem está no controle?
Victor Margolin, trad. de Marcello Montore

Por anos, o romance 1984, de George Orwell, personificou a visão distópica de uma sociedade onde a tecnologia se tornou errática e caiu nas mãos de maus dirigentes, que a usaram para manter uma população dócil sob seu jugo. A essência do romance é que as pessoas são controladas, contra sua vontade, e que existe uma relação assimétrica entre controladores, que dominam toda a tecnologia, e as pessoas, que são controladas por ela.

É estranho que 1984, junto com outro romance de Orwell: A Revolução dos Bichos (Animal Farm), tenham sido recentemente apagados dos leitores digitais de livros Kindle pertencentes a milhares de usuários. O Kindle é um dispositivo de leitura sem fio inventado por Jeff Bezos, fundador e presidente da Amazon, que distribui livros eletrônicos (e-books) que usuários baixam diretamente para seus aparelhos mediante pagamento de uma remuneração. Embora o Kindle seja muito conveniente e ideal para viajantes pelo fato de poder guardar grande número de livros em pequeno espaço, parece que livros baixados pelos usuários não estão seguros em seus dispositivos pessoais e podem ser deletados pela Amazon se tal ação parecer justificada.

O que se tornou evidente no caso dos livros eletrônicos é que existe uma grande diferença entre ter a propriedade de um livro físico e ter a propriedade de uma versão eletrônica. Ao ser comprado, o objeto físico pode até deixar rastros no recibo de compra, mas o livro propriamente dito não carrega qualquer indicação de onde ou quando foi comprado. Da mesma maneira, não há qualquer restrição para seu empréstimo para amigos ou mesmo quanto a  vendê-lo como livro usado. No entanto, os livros eletrônicos formatados para os Kindles, caso necessário, são facilmente rastreáveis, e um único Kindle, que encerra enorme capacidade de armazenamento, pode revelar todos os livros comprados pelo usuário, desde que estejam armazenados na mesma máquina e não em vários dispositivos. De fato, mesmo como versões eletrônicas, esses livros não existem independentemente do Kindle. Eles são formatados para que não possam ser enviados por e-mail a outras pessoas, prevenindo assim um comprador de repassar sua cópia para outros leitores. E agora que se sabe a verdade, isto é, que a Amazon pode também apagar livros de uma biblioteca eletrônica, parece que o usuário, então, não possui o livro no sentido tradicional de propriedade podendo ser tomado de volta se, por qualquer razão, a Amazon optar por fazê-lo.

A questão aqui é: como empresas como a Amazon foram capazes de convencer milhares de usuários do Kindle a desistir, voluntariamente, de seus direitos relativos à compra de livros e permitir que estes existam em um espaço limítrofe onde a empresa detém o controle tecnológico sobre eles. Eu sou da escola que valoriza muito a privacidade, e me ressinto profundamente das condições mutáveis que limitam como produtos eletrônicos podem ser possuídos e utilizados.

Recentemente um amigo e eu estávamos fazendo uma pequena apresentação em QuickTime e queríamos usar uma canção do álbum Way Out West, de Sonny Rollins. Nós escolhemos sua versão de Wagon Wheels que planejávamos colocar no final do filme com um efeito de fade out. Eu tenho o álbum em vinil mas não tenho os recursos para criar uma versão eletrônica do mesmo. Consequentemente, meu amigo baixou todo o álbum da loja iTunes e quando nós quisemos mixá-la com o vídeo, descobrimos que não era possível fazer o efeito de desvanecimento (fade out) devido a um controle sobre o uso da canção. Consequentemente, tive de ir a uma das poucas lojas de música em Chicago e comprar um CD para que pudéssemos usar.

Controles impostos pela Amazon, iTunes e outras empresas que vendem versões eletrônicas de literatura, música e quem sabe o que mais, mudaram a idéia de propriedade. Usuários compram produtos eletrônicos permitem que grandes corporações definam os limites de seu uso. Eu não acredito que a iTunes possa tomar de volta uma canção, uma vez que ela tenha sido baixada, mas o cordão eletrônico umbilical entre Amazon e Kindle introduz um novo nível de controle e capacidade de vigilância. Não apenas as aquisições de uma pessoa são facilmente rastreadas e visualizadas em relação a outras, mas seus usos são rigorosamente gerenciados e suas posses não estão seguras.

A propriedade de produtos eletrônicos cria novas condições para uso e possibilidades para a invasão da privacidade. Nós já não necessitamos de guardas uniformizados para nos prevenir sobre a quebra de acordos. Isso pode ser feito eletronicamente, portanto, o Big Brother deixou de ser um legislador cruel que pode punir alguém de acordo com seu capricho pessoal e tornar-se, por outro lado, um sistema controlado por virtualmente ninguém. Hoje, telefones, Blackberries, e outros dispositivos eletrônicos podem ser desligados pelas empresas que os gerenciam se parecer haver uma razão para fazê-lo.

É claro, que isso também é verdade para uma geração mais antiga de dispositivos de comunicação como os telefones fixos, que sofreram os abusos de escutas ou desligamentos por falta de pagamento. Porém, telefones fixos não estão tão fortemente integrados em um modo de vida como estão, hoje, celulares, dispositivos portáteis de computação e outras tecnologias. Gurus e videntes que trabalham para empresas como Nokia, Intel, Apple e Microsoft prevêem a chegada da ubicomp (uma composição da expressão ubiquitous computing – computação onipresente), quando a comunicação interpessoal estará irremediavelmente integrada com trocas eletrônicas ao ponto que a separação entre elas será impossível. A consequência de tal cenário é que aqueles que participam do ambiente ubicomp terão renunciado a uma porção significativa da sua privacidade para ser parte de um processo social que grava quase tudo que uma pessoa faz. Alguém pode pensar que tal quantidade de dados afogaria qualquer um que tentasse criar um sentido a partir disso, mas engenheiros estão tramando técnicas ainda mais sofisticadas de coleta de dados que logo tornarão tão fácil compor um perfil complexo de um ubicomp quanto procurar um número na lista telefônica.

Será que a vulnerabilidade que revela tanto sobre uma pessoa vale a recompensa de telefonar, criar textos, 'twittar' e, de forma geral, viver online como se o potencial de vigilância e controle não fosse parte do processo? Para muitas pessoas parece que sim. Realisticamente, entretanto, quase ninguém, hoje, pode escapar de algum dispositivo que deixe um rastro do seu uso, apesar de ainda existirem algumas poucas pessoas que resistem ao não usar e-mails, cartões de crédito ou a internet. Elas são raras, mas, atualmente, qualquer pessoa previdente precisa decidir o quanto elas desejam se sujeitar aos caprichos daqueles que controlam a esfera eletrônica.

Será que eles aceitarão os limites de ter uma música em MP3 ou de comprar livros eletrônicos, ou irão perceber o que, exatamente, estão trocando por tais mercadorias e tomarão decisões diferentes sobre seu valor? O ponto a ser observado é que esses golpes da mercadoria não são dados por meio da força bruta. Eles são espontâneamente permitidos aos vitoriosos por consumidores que não pensam profundamente sobre as consequências do que estão fazendo. Para citar Walt Kelly’s Pogo, “Nós encontramos o inimigo e ele somos nós” (We have met the enemy and he is us).

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Victor Margolin é Professor Emérito de História do Design no Departamento de História da Arte da Universidade de Illinois – Chicago, e editor fundador da DesignIssues. Também contribui regularmente para o Design-Altruism-Project. O texto acima teve sua tradução e publicação na Agitprop expressamente autorizadas pelo autor.

Este texto foi traduzido com a autorização do autor e encontra-se no original em inglês no Design-Altruism-Project (http://design-altruism-project.org/?p=92).

 


Comentários

Marco Ogê Muniz
12/07/2012

Ótimas reflexões de Margolin. Os consumidores atuais não analisam mais as consequências de suas escolhas e acabam aceitando produtos cujos benefícios são extremamente limitados. A perceção desses consumidores, contudo, é de vantagens altíssimas. Eles não entendem que essa percepção é imposta pela política de marketing das empresas e acabam aceitando essas questões sem questionamentos. Parbéns pela tradução e escolha do texto.

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