Ano: III Número: 32
ISSN: 1983-005X
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Espessas camadas de preto
Gilberto Paim

Livro: Noir, histoire d´une couleur Autor(a): Michel Pastoureau Editora: Editions du Seuil

Postado: 18/08/2010

   

Sob a relativa neutralidade atual da cor negra há espessas camadas de significação que lhe foram atribuídas ao longo de séculos, senão de milênios – é o que nos mostra o livro do historiador Michel Pastoureau. Embora algumas expressões de uso corrente como lista negra, mercado negro e ovelha negra guardem a negatividade de outros tempos, ela é considerada uma cor como as outras, desprovida de conotações extremas de negatividade ou positividade. Nem é a cor preferida (o azul), nem a menos apreciada (o amarelo).

Fiat lux! As primeiras frases da Bíblia registram a ordem divina, o surgimento da luz e sua separação das trevas. Cor primordial, anterior ao mundo e à vida, o negro bíblico é fortemente negativo. O imaginário cristão associou de modo implacável o preto ao perigo, à morte e ao demônio, em oposição à luz essencialmente divina. Outras mitologias, como a grega e a egípcia, apresentaram uma noite dos tempos assustadora, porém fecunda. A minuciosa pesquisa de Pastoureau registra a dupla significação da cor em latim: ater refere-se ao preto mate, associado à sujeira, feiúra e tristeza e niger à sua variação luminosa – a distinção evidencia uma sensibilidade historicamente aguçada em relação às nuances de intensidade e brilho. A luminosidade de niger se destaca em relação à sua própria cor.

A história do preto narrada em trinta e seis breves capítulos, desde a antiguidade aos nossos dias, dedica vários deles ao tema da cor no vestuário, que faz convergir de modo privilegiado questões materiais, econômicas, estéticas e simbólicas. Pastoureau analisa em profundidade as transformações nas técnicas de tingimento, a utilização do preto pelas  diferentes classes sociais e atividades profissionais, e os ciclos de moda. Durante muito tempo a produção de tecidos pretos uniformes foi uma tarefa extremamente penosa e frustrante para os tintureiros. Roupas pretas manchadas e desbotadas -- mais marrons ou azul-escuras do que propriamente pretas --- estiveram restritas aos pobres e às  tarefas mais sujas e degradantes. A partir do século IX, graças às suas conotações de humildade e penitência, o preto tornou-se a cor por excelência das roupas monásticas. Foi preciso aguardar o final da Idade Média no século XIV para que os tintureiros conquistassem sucesso na obtenção de pretos uniformes e luminosos. Isto ocorreu graças à forte demanda dos comerciantes abastados, que estavam impedidos de usar tecidos de cores ostensivamente dispendiosas reservadas exclusivamente aos nobres. Após a adoção do preto também por príncipes e duques, o preto austero e solene ganhou novo impulso no século XVI com o advento do protestantismo. A voga do preto no vestuário masculino teve ciclo longuíssimo, perdendo vigor somente após a primeira guerra mundial.  Mais recentemente tornou-se a cor fetiche dos profissionais da moda.

Diferentemente de Manlio Brusatin (1), um dos pioneiros da história da cor, Pastoureau não se detém particularmente nas teorias científicas por desconfiar de princípios universais que ignoram a dimensão antropológica da cor. Em texto de 2003 sobre o design (2), ele qualificou de ingênua e positivista a busca de uma “verdade ontológica” da cor, questionando a validade de alguns conceitos (cores primárias e secundárias, puras e  impuras, quentes e frias, próximas e distantes, excitantes e calmantes) que são contrários, segundo ele, às práticas colorísticas anteriores à época contemporânea.

Embora aponte alguns encontros perdidos (rendez-vous manqués) entre o design
e as cores nas “horríveis cores pastéis” dos anos 1950 e  “vulgaridades cromáticas” dos anos 1970,  ele admira a bem sucedida parceria entre o design e o preto: “o preto do design não é nem o preto luxuoso e principesco dos séculos precedentes, nem o preto sujo e miserável das grandes cidades industriais: é o preto ao mesmo tempo sóbrio e refinado, elegante e funcional, alegre e luminoso, em suma, um preto moderno” .

O forte vínculo entre o preto e o design começou a se formar no século XV, com a invenção da imprensa. Pastoureau nos explica que ela transformou a tinta no produto negro por excelência. A tinta desenvolvida pelos primeiros impressores – talvez pelo próprio Gutenberg -- era viscosa, estável e aderia perfeitamente ao papel, diferentemente das tintas ralas usadas nos manuscritos medievais, cuja penetração nas fibras do papel era meramente superficial. A revolução cultural gerada pela difusão de livros, gravuras e outros impressos em preto e branco transformou a percepção das cores, contribuindo para atenuar a negatividade simbólica do preto.

A segunda revolução industrial empreendida entre 1860 e 1920 estreitou os laços entre o preto e o design. Produzidos em larga escala por empresários capitalistas que seguiam o credo protestante, os primeiros aparelhos domésticos, instrumentos de escrita e comunicação, telefones, máquinas fotográficas, carros e canetas foram produzidos quase invariavelmente em preto, cinza ou branco. Embora a tecnologia química já permitisse a reprodução em larga escala de objetos de qualquer cor, as restrições cromáticas associadas à moral protestante foram respeitadas por décadas. Essa predominância austera do preto marcou profundamente a história do design.

De leitura aparentemente inesgotável, Noir é apresentado em belíssima edição, fartamente ilustrada.    

(1) Brusatin, Manlio. Histoires des Couleurs. Flammarion: Paris, 1986.
(2) Pastoureau, Michel. Design, em Les couleurs de notre temps. Bonneton: Paris, 2003, pp 72 a 75. (veja o texto traduzido aqui)
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Gilberto Paim é ceramista e escritor; autor de A beleza sob suspeita, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Viana & Mosley Editora.

 


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