Ano: IV Número: 44
ISSN: 1983-005X
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Utopia e Distopia do Ornamento
Gilberto Paim

A pretensão modernista de alcançar o grau zero do ornamento não parece mais plausível ou desejável. Viveremos com o ornamento em sua infinita variedade, assim como sempre vivemos. Melhor tentar compreendê-lo, como fizeram, entre outros, John Ruskin, Aloïs Riegl e E. H. Gombrich.

Nos últimos dois séculos, a polarização em torno do ornamento ajudou a definir estratégias para a arte moderna, do mesmo modo que contribuiu para sua interpretação. A análise das teorias modernas do ornamento fornece um ponto de vista incomum e privilegiado para a compreensão da experiência moderna.

O debate em torno do ornamento atravessa os campos da literatura, pintura, filosofia, arquitetura, artes aplicadas e design. Entre os inúmeros artistas e pensadores envolvidos nesse debate, William Morris e Theodor Adorno contribuíram de modo substancial para a polarização em torno do tema.

Embora ambos entendessem a arte como um modo privilegiado de resistência aos mecanismos de dominação da moderna sociedade industrial capitalista, sua divergência em relação à função relativa ao ornamento é radical.

Várias décadas e movimentos artísticos separam Morris e Adorno. A arte de Morris é anterior ao art nouveau e às vanguardas históricas. O empenho propriamente modernista de exclusão do ornamento influenciou de modo determinante os escritos de Adorno, cuja crítica é contemporânea ao modernismo tardio.

É verdade que os artistas e pensadores do século XIX reagiram contra a proliferação e a vulgarização dos ornamentos pela  produção massificada, mas o tema da exclusão do ornamento esperou os primeiros anos do século XX para eclodir.  

“Ornamento e Crime”, o célebre manifesto do arquiteto vienense Adolf Loos, data de 1908. Adorno incorporou à sua teoria crítica algumas premissas dessa virulenta condenação do ornamento, do movimento de artes e ofícios e do art nouveau.

Algumas décadas antes da cruzada anti-ornamentalista, William Morris, inspirado na teoria estética de John Ruskin, questionou a ideia comum de ornamento como um acréscimo superficial de beleza e revitalizou à sua maneira o tema propriamente kantiano da liberdade dos ornamentos.

Morris identificou no ornamento uma função combativa e revolucionária. Segundo ele, os ofícios artesanais da cerâmica, tecelagem, marcenaria, encadernação, entre outros, deveriam ser revitalizados em oposição ao processo industrial de racionalização e fragmentação do trabalho. O ornamento, segundo Morris, seria a grande força capaz de manter em harmonia a utopia socialista que imaginou no seu romance Notícias de Lugar Nenhum (News from Nowhere).

A prática artesanal do ornamento, ao mesmo tempo exigente e alegre, teria um efeito regenerador sobre os indivíduos e a sociedade. Embora possa parecer um paradoxo, é possível afirmar que sua valorização do ornamento se opunha ao esteticismo escapista ou oportunista do seu tempo.

Morris experimentou a positividade do ornamento em seu próprio trabalho. Foi um grande criador e realizador de tecidos, móveis, vitrais, papéis de parede, iluminuras, livros artesanais etc. Contribuiu para a recuperação dos ofícios artesanais que tendiam a desaparecer com o avanço da indústria.

Suas ideias foram decisivas não só para o movimento inglês e norte-americano de artes e ofícios, mas também para outros movimentos ornamentais como o art nouveau e o art deco, e empreendimentos de arte decorativa como Wiener Werstätte e Omega Workshops.

Morris inspirou ceramistas, vidreiros, tecelões, joalheiros, marceneiros que atravessaram o século XX produzindo independentemente em seus ateliês nos mais distantes pontos do planeta.

No entanto, o trabalho do moderno artista-artesão é considerado marginal em relação às correntes oficiais do modernismo. Isso se deve em grande parte à persistência da oposição vanguarda x ornamento que caracteriza o debate estético moderno e que, na teoria crítica de Adorno, encontra sua formulação mais elaborada.

A crítica adorniana ao ornamento, centrada no art nouveau, é tão importante quanto problemática. Ao longo das próximas páginas, pretendemos expor os limites e os automatismos da posição adorniana e resgatar a contribuição de Morris e Ruskin, cuja influência sobre as artes aplicadas e decorativas ainda permanece.

Há toda uma vertente da arte e do pensamento modernos que, em vez de questionar a restrição histórica ao conceito de ornamento, sonhou com seu grau zero. Para Adolf Loos, Karl Kraus, Hermann Broch e também Adorno, o mundo estaria melhor sem o ornamento que, segundo eles, nada tinha a ver com mudança ou revolução, mas com ilusão e conformismo.

Adorno considerou o ornamento um meio especialmente sinistro e eficaz de manter a negatividade do mundo em que vivemos. Ao invés de evidenciar a negatividade reinante para que ela pudesse ser combatida concretamente, o ornamento, segundo Adorno, só teria a oferecer sensações falsas e levianas de bem-estar e harmonia.

Adornou escolheu o art nouveau para desempenhar na sua teoria crítica a mais estressante "função depreciativa". O filósofo prefere a expressão alemã Jugendstil para exemplificar o que há de mais falso e equivocado no mundo moderno.

Segundo ele, a arte de vanguarda deveria reagir com todos os meios ao seu alcance contra o espírito ilusionista e conciliatório do ornamento. Adorno denunciou o não-criticismo do Jugendstil e de tantos outros movimentos artísticos que buscaram associar a beleza à vida cotidiana, embora o mundo à sua volta exigisse transformação radical. Adorno chamou esse não-criticismo de esteticismo.

O autor não reconheceu, entretanto, o teor essencialmente esteticista do seu próprio projeto crítico, o qual escolheu a arte como a última possibilidade de resistência ao mundo administrado. A concepção de ornamento contra a qual o espírito bélico das vanguardas se opôs merece ser investigada criticamente.

É importante ressaltar, de todo modo, que tanto na utopia de Morris quanto no mundo moderno entendido como distopia (1) por Adorno, o ornamento é bem mais do que um acréscimo de beleza que não participa da verdade das coisas. 


Notícias de Lugar Nenhum, utopia do ornamento
 

Notícias de Lugar Nenhum, romance utópico de William Morris, foi publicado em capítulos entre janeiro e outubro de 1890 no jornal da Liga Socialista, em Londres. No ano seguinte, o romance saiu sob a forma de livro com algumas poucas modificações do autor: um capítulo e alguns parágrafos a mais.

No folhetim, a revolução que dá início à utopia ocorre em 1910; no livro, em 1952. O adiamento da utopia manifesta o pessimismo crescente de Morris. Para ele, o verdadeiro progresso parecia cada vez mais remoto e não se confundia absolutamente com a mecanização do trabalho, a destruição da natureza, a desigualdade social, a proliferação da pobreza e a criação incessante de necessidades artificiais de consumo.

Inverno. Reunião da Liga Socialista. Cada membro tem um plano diferente para o dia seguinte da revolução. Após muitas horas de inflamadas discussões, Wiliam Guest toma o metrô para o subúrbio. Tudo em volta é feio, apressado, infeliz. Mesmo exausto, o personagem consegue dormir apenas por alguns minutos. Passa a noite tentando imaginar o mundo pós-revolucionário de seus sonhos. São três horas da manhã quando consegue finalmente dormir. Quando acorda é 2102, verão.

Sol sobre a Inglaterra. Em frente à casa de William Guest o rio Tâmisa corre transparente e cheio de peixes. O barqueiro que o leva para um passeio é surpreendentemente amável e sua linguagem refinada. De manhã bem cedo, o mergulho no rio é delicioso. Também o ar está novamente limpo. Florestas recobrem vastas áreas em que há 120 anos eram ocupadas por fábricas e minas de carvão.  Pequenas cidades convivem harmoniosamente com o campo, os limites do verde são indefinidos. Não há fome ou miséria. Todos têm o semblante amigável, tranquilo, digno e feliz.

Não há ameaças internas ou externas à utopia de Morris. Tudo ali transcorre suavemente. As ondas de progresso atingiram toda a humanidade. Não há trama ou mistério fazendo avançar o romance, mas o empenho do narrador em tornar cada vez mais clara sua visão do mundo pós-revolucionário.

Se o êxito dos romances do século XIX dependia da infelicidade dos personagens e dos leitores, como acredita William Guest, semelhante literatura não tem vez no novo mundo.  Assim comenta Clara: "Os livros eram suficientemente bons para tempos em que as pessoas inteligentes tinham pouco onde encontrar prazer e precisavam superar a miséria sórdida de suas próprias vidas imaginando a vida de outras pessoas" (2). Nenhum Lugar dispensa a função compensatória da literatura. A poesia, com seu sentido ornamental da forma, tornou-se a arte da escrita por excelência.

Assim como outras utopias, não há exatamente futuro em Nenhum Lugar. A utopia cria uma expectativa diferente de leitura. Não importa o que vai acontecer, mas o que já aconteceu, como aconteceu e continua acontecendo. O leitor que aprendeu a desconfiar das utopias encontra na suspensão do futuro um motivo de apreensão, porém sem fôlego suficiente para se transformar em angústia.

Nenhum Lugar é mesmo um sonho, a exaltação quase pueril de um desejo que se opõe à realidade em todos os níveis. O sonho de Morris é uma utopia libertária no sentido de que pretendia revelar ao seu próprio tempo e, ao nosso, o sentido da luta pelo "lado de fora" do sistema capitalista industrial.

A dimensão onírica da obra não foi entretanto assumida pela forma narrativa. Desde o início está claro que a utopia é um sonho de Guest, mas o romance nada tem de absurdo ou caótico, ele avança contínua e linearmente. O didatismo dá o tom. O sonho de Guest é claro e enfático, bem como as palestras que Morris proferia regularmente em diversas cidades inglesas para os operários e partidários do socialismo. A clareza é a preocupação principal do narrador empenhado em projetar sua visão ideal do mundo pós-revolucionário.

O comércio e o dinheiro foram extintos. William Guest custa a compreender que homens e mulheres do século XXI tenham realmente dispensado o dinheiro e não esperam outra recompensa para o trabalho além do prazer propiciado pelo próprio trabalho. 

Hammond responde com outras perguntas ao espanto do amigo vindo de longe: "Nenhuma recompensa para o trabalho? A recompensa para o trabalho é a vida. Isso não é o bastante?" (3). Em Nenhum Lugar a riqueza genuína está em fazer do trabalho uma arte. A arte está tão enraizada na vida cotidiana, que não há mais uma palavra para designá-la.

Toda a produção que depende do trabalho meramente mecânico, incapaz de gerar prazer, ficou restrita às máquinas. Para isso serviram as novas tecnologias criadas no século XX. As máquinas não foram de modo algum extintas.

No entanto, não se permite mais que elas tirem o lugar dos ofícios que são uma fonte legítima de realização. A sobrevivência da maioria prescinde do trabalho fragmentado nas linhas de montagem. Tampouco a especialização profissional é uma condição da vida em Lugar Nenhum.

William Guest se surpreende ao descobrir que o seu  amigo matemático é também tecelão, historiador e artista gráfico. A experiência gratificante da arte no trabalho é o fundamento do novo mundo. Logo Guest compreende os objetivos principais da grande revolução de 1952: eliminação da pobreza, reintegração com a natureza e liberação das forças criativas do trabalho. 

Sem entraves legais, homens e mulheres mudam de casa, cidade, ofício e família. Os crimes são raríssimos. O inevitável arrependimento é punição suficiente.  Sem patrões e empregados, acumulação individual de riqueza ou centralização de poder, não há mais ressentimento ou inveja.

A beleza é cultivada por todos. Os homens não precisam mais copiar modelos ou se esforçar para produzir objetos perfeitos e impessoais. Eles fazem o que precisam, somente o que precisam, e nisso se esmeram sem preocupação com o tempo ou a rentabilidade. Quando o trabalho é feito com prazer, o descanso torna-se também mais efetivo. Todos estão mais calmos e descansados (não à toa, o sub-título do romance é An Epoch of Rest ).

Ética e estética se fundem em Morris. Segundo ele, a beleza prospera quando os homens são livres. Isso não significa simplesmente que a liberdade é uma pré-condição da beleza. Liberdade e beleza são simultâneas.

Livre é o homem que realiza o trabalho mais adequado ao seu talento no tempo e na regularidade que julga mais apropriados. Tal integridade do trabalho foi garantida a todos pela revolução. Numa palestra realizada em 1884, Morris ressaltou a importância fundamental do trabalho feito com prazer para a beleza da existência:   
 
"Devemos começar a promover a parte ornamental da vida -  seus prazeres, corporais e mentais, científicos e artísticos, sociais e individuais - baseados no trabalho realizado com vontade e alegria, tendo a consciência de trazer benefícios a nós mesmos e aos nossos vizinhos (...) Até mesmo o trabalho mais comum deve se tornar atraente." (4)
    
    Em Morris, o ornamento tem um sentido inteiramente diferente do senso comum. Ele se recusa a compreender o ornamento como um extra, uma frivolidade. Entende a "parte ornamental" como a mais importante. Em seu romance, homens e mulheres empenham-se na criação dos mais variados ornamentos, pois eles querem viver a vida como peixes num rio suavíssimo. São belos os corpos, os utensílios, as roupas, a linguagem, as maneiras, o amor e a amizade. A beleza abstrata do ornamento não é perseguida ou idealizada. É a floração do espírito novo que venceu.  

Em Lugar Nenhum, o ornamento não significa a superposição de uma natureza artificial a uma natureza em vias de desaparecimento. O criador de ornamentos não se limita a buscar inspiração nas flores, nas conchas e nos pássaros. Ele faz como a natureza, inventa formas belas e funcionais e outras inteiramente abstratas que remetem a imaginação ao infinito. Assim como a natureza, o criador de ornamentos aceita as imperfeições, repete padrões e acolhe o novo sem constrangimento ou ansiedade. As irregularidades são incorporadas à produção artesanal, pois os homens e as mulheres de Lugar Nenhum finalmente comprenderam, na trilha de John Ruskin, que a exigência de perfeição é um sinal de incompreensão do verdadeiro sentido da arte.

A ideia de que o mundo moderno confiscou a função criativa do ornamento é central em Morris. Segundo ele, a industrialização transformou o ornamento num meio potencialmente eficaz de aumentar o valor de troca dos produtos, tornando-o um agente privilegiado da criação de necessidades artificiais de consumo.

Visceralmente mercenário, produto do trabalho mutilado e do gosto filisteu, o  ornamento industrial é uma afronta à verdadeira beleza. Morris dedicou-se à revitalização do potencial revolucionário do ornamento.

Nenhum outro pensador influenciou tanto Morris quanto John Ruskin, a quem se referia constantemente. Morris foi o responsável pela cuidadíssima edição artesanal do ensaio de Ruskin, "A Natureza do Gótico", extraído de As Pedras de Veneza.

Neste ensaio, Ruskin procura compreender os ornamentos não apenas em termos estéticos, mas em termos do tipo de trabalho envolvido na sua produção. Segundo Ruskin,  tanto na arquitetura renascentista quanto na arquitetura neo-clássica, o ornamento foi servil.

A variedade da natureza foi reduzida por esses estilos a um número fixo de convenções formais que visavam tornar o ornamento subserviente à perfeição do design. A liberdade criativa do artesão foi, assim, reprimida e controlada. A revolução industrial tornou essa forma de opressão ainda mais implacável por meio do dispositivo da linha de montagem.

Em oposição ao ornamento servil, o ornamento gótico tem, para Ruskin, um sentido revolucionário. O cristianismo soube reconhecer, segundo ele, o valor individual de cada alma e a mão divina na riqueza da criação. O pensamento cristão deu liberdade à criação humana, encorajando o artesão a responder individualmente à variedade do mundo natural.

A sociedade que impede a realização da singularidade de cada homem e de cada mulher no trabalho está paralisada pela injustiça. O trecho seguinte do referido ensaio é muito eloquente :
    
"Entenda isso claramente: voce pode ensinar um homem a desenhar uma linha reta e cortá-la; a delinear uma curva e esculpi-la; a cortar e copiar qualquer número de linhas e de formas com perfeição e rapidez admiráveis; e achar o trabalho dele perfeito no seu gênero; mas se voce pedir a ele para pensar sobre qualquer uma dessas formas, e considerar se ele pode encontrar alguma outra melhor na sua própria cabeça, ele para; sua execução se torna hesitante; ele pensa, e dez vezes ele pensa errado; dez vezes ele erra no seu primeiro toque como um ser pensante. Mas assim voce faz dele um homem. Antes ele era apenas uma máquina, uma ferramenta animada. (... ) Deixe-o começar a imaginar, a pensar, a tentar fazer algo que vale a pena ser feito; e a precisão engenhosa é perdida de uma só vez. Surge toda a sua rudeza, toda a sua estupidez,  toda a sua incapacidade; vergonha após vergonha, fracasso após fracasso, pausa após pausa; mas surge também toda a sua majestade; e nós conhecemos a sua altura somente quando vemos as nuvens pairando sobre ele. E, sejam as nuvens claras ou negras, haverá transformação abaixo e dentro delas." (5)
    
    Em prosa e verso, Morris foi um expressivo seguidor e divulgador das ideias de Ruskin. Mas também um extraordinário criador dos mais variados ornamentos. Hoje, Morris é mais conhecido por seus ornamentos do que por seus escritos. Realizou vitrais, cerâmicas, papéis de parede, tapetes, tapeçarias, iluminuras, livros artesanais, tecidos e padronagens.

A distinção entre trabalho criativo e trabalho manual era inaceitável para ele. Estava convencido de que o prazer obtido no exercício dos mais diversos ofícios artesanais era suficientemente poderoso para gerar um novo mundo. Ele incorporou à militância do socialismo sua fonte ruskiniana de alegria.

Nicolaus Pevsner, em seu influente Pionners of Modern Design (6), reconhece a importância das ideias de Morris, mas identifica uma contradição entre sua militância socialista e a produção artesanal cara e exclusiva da Morris and Co.

Embora Pevsner tenha incluído Morris entre os principais precursores do design moderno, devido ao seu empenho em aproximar a arte da vida cotidiana, Morris teria se equivocado quanto aos meios para atingir esse objetivo.

Empenhado em traçar uma história positiva do design moderno, Pevsner não deu a devida atenção às críticas extra-estéticas de Morris ao sistema de produção industrial, especialmente àquelas relativas às consequências nefastas da fragmentação do trabalho para a vida humana.

De fato, é Pevsner quem se engana profundamente ao fazer de Morris um precursor do moderno designer. A função instrumental do designer na racionalização da produção é inteiramente oposta à filosofia de Morris.

Morris estava visceralmente convencido de que o trabalho manual feito como arte tinha um sentido revolucionário para o indivíduo. Por essa razão, preferiu viver a aparente contradição entre realizar objetos acessíveis apenas para poucos e lutar por uma sociedade igualitária. Qualquer outra solução teria como resultado o bloqueio da sua fonte vital de alegria e prazer.

Embora marginal ao mundo da produção em série, a convicção de Morris é compartilhada até hoje por inúmeros artistas em todo o mundo. Além do próprio movimento de artes e ofícios, Morris exerceu influência direta sobre o art nouveau. Consideramos oportuna uma breve digressão sobre o art nouveau antes de passarmos à exposição da "função depreciativa" que o movimento veio a desempenhar na teoria crítica de  Adorno.

Florescimento art-nouveau

Ainda que a inspiração artística de Morris tenha sido medievalista, suas ideias foram, entretanto, decisivas para o florescimento do art nouveau que alcançou o apogeu em diversos países da Europa e das Américas na virada do século. Imbuídos das ideias de Morris, os criadores do art nouveau praticaram os mais diversos ofícios artesanais, ampliaram os meios expressivos da arte para além da pintura a óleo e da escultura em pedra e em bronze, recusaram o ecletismo historicista que prevalecia na produção industrial e procuraram espalhar a arte na vida cotidiana.

Diferentemente de Morris, no entanto, os criadores do art nouveau sonhavam com o novo. Deixaram de lado as convenções decorativas cuidadosamente catalogadas na segunda metade do século XIX por Owen Jones, Franz Sales Meyer e Alexander Speltz, entre muitos outros, para estudar a natureza e experimentar novas linguagens de arte.

A linha sinuosa em movimento foi seu tema principal. Henri van de Velde inverteu os princípios básicos da estética europeia e declarou o ornamento como o fator estruturante da forma. A imaginação art nouveau foi atraída pela graciosidade da flor e pela eficiência orgânica da planta, expressando nos objetos cotidianos o duplo ideal da beleza e da utilidade.

O artistas não se contentavam em representar a natureza; suas criações deveriam ser igualmente exuberantes, irregulares e imprevisíveis. Em 1889, Gallé gravou em vidro a frase de Verlaine : "Je récolte en secret les fleurs mysterieuses." 

Os vidros de Gallé, Tiffany e Witwe representam exemplarmente o espírito do movimento. Esses artistas não quiseram impor ao vidro incandescente padrões pré-concebidos, mas permitiram que suas qualidades fluidas atuassem nas formas. Sem  compromissos com o realismo, os criadores puderam investigar as possibilidades abstratas das formas e dos materiais.

Os objetos perderam a nitidez dos contornos. As formas ganharam movimento semelhante às flores que são atraídas pela luz, desabrocham e depois murcham. Há todo um erotismo da entumescência e do esgotamento na lânguida gestualidade das formas que se espreguiçam, se retraem e por vezes desmaiam.

O ceramista norte-americano George Ohr, que se vangloriava de jamais ter feito duas peças idênticas, torneou vasos muito finos cujas paredes desmoronavam sob a ação do fogo. Vidrados superpostos e escorridos acentuavam o colapso generalizado dos recipientes. 

O art nouveau não se satisfez absolutamente com o belo. Sua imaginação grotesca, às vezes assombrosa, é muito evidente.  O esteticismo é insuficiente para explicar tal corrente artística. "Tornar mais bela a vida cotidiana" - eis uma síntese inadequada para o esforço de tantos criadores. O art-nouveau foi movido pelo desejo de tornar a vida cotidiana mais parecida com a própria vida, tão mais misterioso fosse esse desejo.

Tal impulso foi considerado suspeito pelo designer do século XX. Para Nicolaus Pevsner o art nouveau foi um desvio desnecessário entre o movimento de artes e ofícios e o design moderno. O art nouveau inventou sinuosidades onde Pevsner teria preferido um atalho. Segundo ele, o  movimento era demasiado decadente para um estilo novo: elitista, refinado, dispendioso, irresponsável.

Uma excentricidade que encontrou a sua força máxima em Gaudi, na Espanha, "um país marginal" - a expressão manifesta perfeitamente a compulsão ocidental, renovada pelo modernismo, de empurrar o ornamento para as margens, se possível, para bem longe das suas fronteiras. A prosa de Pevsner é bastante eloquente em sua condenação do ornamento:

"O Art Nouveau é outré (7) e direciona o seu apelo ao esteta, o único que está pronto a aceitar o lema perigoso da "arte pela arte". Nisso ele ainda é enfaticamente século dezenove, mesmo se sua insistência frenética nas formas sem precedentes o coloca além do historicismo daquele século. Um estilo universal aceitável não poderia se originar de seus esforços." (8)
    
Em vez de abreviar a distância entre Morris e o design moderno, o art nouveau, segundo Pevsner, levou "longe demais" a valorização dos ofícios artesanais e a imaginação ornamental. Diferentemente do international style, que teria conquistado a eternidade por meio da racionalidade e da discreta elegância, o art nouveau não seria mais do que um modismo entre muitos.

A avaliação do estilo como "fracasso" é indissociável de uma certa visão redentora que o design moderno procura manter de si mesmo. Tão mais obscuro o art nouveau, mais resplandescente o design.

De modo no mínimo surpreendente, o suposto fracasso do art nouveau obteve acolhida na teoria crítica de Theodor Adorno que está longe de manifestar o mesmo entusiasmo dos designers, seja pelo funcionalismo, seja pela totalidade do moderno mundo industrial.  
 
Distopia do Ornamento: o Jugendstil de Theodor Adorno

Embora Adorno não tenha dedicado ao art nouveau nenhum ensaio especial, a corrente artística é uma presença recorrente em sua obra. O art nouveau surge em vários momentos da Teoria Estética,  assim como em seus escritos sobre temas diversos como a poesia de Hölderlin, o teatro de Beckett, a moral, o progresso, entre outros.

O art nouveau está ancorado aos temas mais polêmicos da teoria crítica. Sua presença nos textos de Adorno não é rara, mas fulgurante. Geralmente não ocupa mais do que uma ou duas linhas, quando muito um parágrafo. Adorno se refere genericamente ao art nouveau e sempre em sua versão alemã, o Jugendstil.

Adorno não faz alusão a obras de arte específicas, relativamente conhecidas e apreciadas, como os vidros de Gallé e Marinot, os móveis de Josef Hoffmann, Louis Majorelle e Charles R. Mackintosh, ou a arquitetura de Henri van de Velde, Victor Horta e Gaudi.

O Jugendstil de Adorno não pretende traduzir conceitualmente a multiplicidade das formas artísticas ou revelar a singularidade de uma ou outra criação. Sua concepção é inteiramente abstrata, anônima e imaterial. Sua arte não é de vidro, metal, madeira, ouro, prata, cerâmica ou de qualquer outro material utilizado pelos artistas envolvidos na criação do art nouveau seja em Paris, Viena, Glasgow, Bruxelas, Munique, Nova Iorque ou Barcelona, assim como em tantas outras cidades do mundo nos quase quarenta anos entre o início da década de 1880 e o término da Segunda Guerra Mundial.

Adorno afastou deliberadamente seu conceito de Jugendstil da realidade material da produção art nouveau. O olhar distanciado reduziu o fenômeno a uma forma geométrica plana e sem ambiguidade. Desse modo, passou a desempenhar uma função retórica bem determinada na teoria crítica.

O Jugendstil  se tornou insuperável no exercício de uma certa "função depreciativa". Nos diversos ensaios, Adorno procura enfatizar a inverdade de determinadas atitudes estéticas e filosóficas, dentre elas a poesia neo-romântica, a arte pela arte e uma certa interpretação heideggariana da arte poética, revelando sua afinidade com o Jugendstil. A sentença é categórica: “são como o Jugendstil!”

Na Teoria Estética, o autor condena a poesia neo-romântica por ter sido incapaz de restituir à linguagem a substancialidade das palavras poéticas. Ou melhor, a poesia neo-romântica é condenada por não ter percebido que no mundo administrado é impossível restituir à linguagem a substancialidade das palavras poéticas. Nesse sentido, a poesia neo-romântica fracassou como o Jugendstil:

"Como as categorias, também os materiais perderam sua evidência apriórica: assim as palavras da poesia. A decomposição dos materiais é o triunfo do seu ser-para-outro. Como primeiro e penetrante testemunho, tornou-se célebre a Carta de Chandos de Hofmansthal. É possível considerar a poesia neo-romântica no seu conjunto como a tentativa de resistir a tal dissolução e de restituir à linguagem, como aos outros materiais, algo da sua substancialidade. Mas a idiossincrasia contra o Jugendstil adere ao fato de que semelhante tentativa falhou. Segundo a palavra de Kafka, ela surge retrospectivamente como uma divertida aventura gratuita." (9)

    Mais adiante, Adorno critica a “arte pela arte” por sua oposição demasiadamente abstrata ao mundo administrado. A beleza cultivada pelos adeptos da "arte pela arte" distanciou a arte do formalismo classicista mas a manteve atrelada, assim como o Jugendstil, ao princípio supremo da forma. Segundo Adorno, o formalismo tende a excluir ou a mutilar os conteúdos que contrariam a sua ideia de beleza. Sem a presença ou a integridade desses conteúdos "anti-artísticos", a arte perde sua eficácia crítica diante da totalidade  negativa. O kitsch não é um desvio ou uma degeneração da arte, mas a arte que não resiste com os seus próprios meios à assimilação pela lógica do consumo:  
    
"O conceito de beleza de l'art pour l'art torna-se ao mesmo tempo peculiarmente vazio e prisioneiro do tema, uma organização do tipo Jugendstil, tal como se trai nas fórmulas de Ibsen sobre "parras dos cabelos" e "morrer belamente". A beleza, impotente para se definir a si mesma, que só adquire a sua definição no seu outro, e é por assim dizer uma raiz aérea, está imbicada no destino da descoberta ornamental. Esta idéia do belo é limitada porque se expõe a uma antítese imediata em relação a uma sociedade tida como feia em vez de, como o fazem ainda Baudelaire e Rimbaud, extrair a sua antítese do conteúdo - em Baudelaire, a imagerie de Paris - e a por a prova: só assim a distância se tornaria intervenção da negação determinada. Foi justamente a autarquia da beleza neo-romântica e simbolista, a sua vulnerabilidade perante esses momentos sociais pelos quais unicamente a forma se tornaria uma forma, que tão rapidamente a fizeram consumível. Ela engana quanto ao mundo das mercadorias, porque o poupa; isso desqualifica-a como mercadoria. A sua forma latente de mercadoria condenou intra-esteticamente as obras de l'art pour l'art ao kitsch, de que hoje se ri." (10)  
    
O Jugendstil exemplifica no discurso adorniano a arte que tenta modificar a existência mutilada apenas formal e abstratamente. Arte logo absorvida pela negatividade que pretende negar. Arte inconsciente da extensão da negatividade e falsamente iludida a respeito da sua própria estratégia combativa. Cúmplice involuntário da negatividade, assim é o Jugendstil

"O mal que Baudelaire e Nietzsche lamentaram no século XIX liberalista e que, para eles, era apenas a máscara do instinto não mais reprimido pela era vitoriana, quebrou os tapumes erigidos pela civilização enquanto produto do mal reprimido, com uma bestialidade em face da qual as horríveis blasfêmias de Baudelaire adquiriram uma inocência, em contraste grotesco com o seu pathos. Baudelaire, não obstante a sua superioridade, preludiou o Jugendstil. O pseudos deste último era o embelezamento da vida sem a sua transformação; a própria beleza tornou-se algo de vazio e deixou-se integrar, como toda negação abstrata, no que era negado. A fantasmagoria de um mundo estético não pervertido para fins serve de álibi ao mundo sub-estético." (11)
    
O Jugendstil não passa de uma "utopia juvenil", satisfeita com sua própria impotência: "Como seu nome revela, Jugendstil é a puberdade declarada como permanente; utopia que faz pouco caso de sua possibilidade de realização ” (12). Em Parataxe, a falsidade essencial do Jugendstil serve como um espelho para a interpretação equivocada de Heidegger que encontra coerência de sentido na poesia de Hölderlin.  

A cegueira de Heidegger em relação à singularidade dissonante da poesia de Hölderlin, tema central do ensaio, tem afinidades com o Jugendstil. Também o Jugendstil de Adorno é movido pelo desejo irrefletido de conciliação e síntese:      
       
"Toda interpretação de um poema que o conduziria a uma mensagem violenta o seu conteúdo de verdade violentando a sua aparência. Explicando-se indistintamente como mito de origem o pensamento propriamente dito e a poesia, que não é pensamento, falseamos uma e outro, no espírito do Jugendstil que volta então como um fantasma, e acabamos acreditando ideologicamente que a arte permite mudar a realidade, vivida como vil e má, depois que toda mudança concreta foi tornada impossível." (13)

A linha ondulada e envolvente do Jugendstil opõe-se à parataxe hölderliniana e à técnica da montagem desenvolvida pelos cubistas - de fato, uma forma mais recente de parataxe. O Jugendstil buscou a síntese que no nosso mundo corresponde ao êxito da totalidade negativa.

O cubismo, por sua vez, aceitou que os fragmentos do mundo permanecessem fragmentos e evitou a coerência de sentido. O trecho abaixo esclarece de modo extraordinário a posição crítica da estética da negatividade:    

"A montagem apareceu como antítese de toda arte carregada de atmosfera e, em primeiro lugar, como antítese do impressionismo. Este decompunha os objetos em elementos menores que depois ressintetizava, elementos predominantemente tirados do âmbito da civilização técnica ou da sua amálgama com a natureza para as atribuir, sem ruptura, ao contínuo dinâmico. Ele queria salvar esteticamente o elemento alienado, heterogêneo, na reprodução. Esta concepção revelou-se tanto menos sólida quanto mais aumentava a preponderância do elemento prosaico sobre o sujeito vivo: a subjetivação da objetividade regrediu em romantismo, tal como foi sentida flagrantemente não só no Jugendstil, mas também nos produtos tardios do autêntico impressionismo. Contra tal subjetivação protesta a montagem, descoberta na colagem dos recortes de jornal e coisas semelhantes, nos anos heróicos do cubismo (... ) Toda a modernidade após o impressionismo, e também as manifestações radicais do expressionismo, renegam a aparência de um contínuo criador da unidade subjetiva da experiência, o 'fluxo de vivências'. Rompe-se o entrelaçado, a imbricação organicista, destroi-se a crença de que um dia se molda vivo ao outro, a menos que a imbricação não seja tão compacta e enovelada que, por isso mesmo, se feche ao sentido." (14)   

Em “Pour Comprendre Fin de Partie”, o Jugendstil faz sua rápida aparição logo na primeira página:  "Beckett voit grouiller la culture comme avant lui le progrès voyait s'entortiller les ornements du Jugendstil" (15). A proliferação repugnante da cultura na sociedade capitalista encontra a sua imagem no Jugendstil.

A sobriedade radical do teatro de Beckett é bastante forte, segundo Adorno, para combater e anular essa infestação. Seu teatro responde à negatividade com a negatividade mais radical, parodiando os aspectos mais próximos e terríveis do mundo administrado - tão mais terríveis, mais próximos e vice-versa. Beckett isola os elementos da realidade, elimina o seu sentido comum e faz surgir plenamente o horror/ humor mais negro. A desumanidade do teatro de Beckett supera a desumanidade do mundo, confirmando com exatidão a estratégia definida por Adorno para a arte em tempos sombrios.

Em sua apreciação do teatro de Beckett, e da arte de um modo geral,  Adorno está comprometido com a estética de Karl Kraus. Adorno foi um grande admirador de Kraus, tendo se referido sempre elogiosamente a ele em seus ensaios. Em Os Últimos Dias da Humanidade, Kraus desenvolveu a técnica que chamou de "dissonância gritante" (16) caracterizada pela justaposição de materiais heteróclitos.

O teatro expressionista de Kraus era composto essencialmente de citações de outras obras, sem preocupação com a coerência de ação ou dos personagens. Kraus pretendia potencializar a força niilista da modernidade transformando em lixo trechos inteiros de canções populares, hinos oficiais, operetas, poemas românticos e ensaios filosóficos. A ausência radical de sentido deveria acelerar o processo de decadência da cultura.

Em um certo sentido, Kraus incorporou ao seu pensamento o mito do tempo cíclico, segundo o qual só há regeneração possível após a máxima decadência. A ferocidade crítica de Kraus era a de um homem que se instalou na posição do juízo final. Adorno não é menos categórico e definitivo quando afirma, em relação à pintura moderna, “que o negro é a cor autêntica da arte, embora muitos artistas divirtam-se ainda infantilmente com as cores”. (17)

Quais meios teria usado o progresso para destruir as "raízes aéreas" do Jugenstil? Meios poderosos. O progresso atacou o Jugendstil e as práticas artesanais que tentaram sobreviver e prosperar no mundo industrial com a ideologia racionalista e tecnocrática do Werkbund Sachlichkeit (18), o sanitarismo anti-ornamentalista de Adolf Loos e o funcionalismo da Bauhaus-Dessau. Mas essa verdadeira máquina de guerra anti-Jugendstil passa por irrelevante, pois "o Jugendstil assim como todos os modismos, esteve desde sempre condenado a ser substituído e ultrapassado." (19)

A função depreciativa do Jugendstil não tem fim. Em Minima Moralia, determinadas diversões de elite submersas no tédio também são como o Jugendstil:  

"Assim Proust com a objetividade de quem pode ser seduzido, observou que a anglomania e o culto de um estilo de vida cheio de formalidades encontram-se menos entre os aristocratas do que entre aqueles que querem ascender; do snob ao parvenu é só um passo. Daí a afinidade entre o esnobismo e o Jugendstil, a tentativa de uma classe definida pela troca de se projetar na beleza, por assim dizer, vegetal, livre da troca. Que a vida que é ela mesma uma promoção de acontecimentos não é uma vida superior evidencia-se no tédio das cocktail parties e dos convites para o weekend no campo, do golfe - que é simbólico nessa esfera - e da organização de social affairs: privilégios que, no fundo, não propiciam divertimento a ninguém e que servem apenas para que os privilegiados ainda se iludam a respeito do fato de que, em meio a uma totalidade infeliz, a eles também falta a possibilidade de alegria." (20)

De um lado, a parataxe, a colagem, a ruptura, a fragmentação, a dissonância, a descontinuidade, o hermetismo, a negatividade crítica, o negro, o ascetismo, a intransigência, a obra de arte autêntica como exílio da verdade.

Do outro, a mera repetição do que já é, a coerência, a síntese, a comunicação que é o avesso da comunicação, o entrelaçamento, a imbricação, o ornamento, a variedade da cor, a ilusão, a assimilação, o Jugendstil.  A obra de arte autêntica enfrenta a negatividade como um escorpião que adquire a textura da árvore podre. O Jugendstil  faz sua casa na árvore.    

Ainda em Minima Moralia, Adorno acrescenta uma pitada de humor negro à sua argumentação sobre a impossibilidade de individualização no mundo administrado. Segundo ele, o holocausto, realização extrema da razão fechada em si mesma, reduziu ao silêncio até mesmo o fantasma da falsa individualização, o Jugendstil :
       
"A liberdade contraiu-se na pura negatividade, e aquilo que na época do Jugendstil chamava-se morrer belamente reduziu-se ao desejo de abreviar a infinita humilhação de existir, bem como o infinito sofrimento de morrer em um mundo no qual há muito tempo há coisas piores a serem temidas do que a morte. O fim objetivo da humanidade é apenas uma outra expressão para a mesma coisa. Ele significa que o indivíduo enquanto indivíduo, como representante do gênero humano, perdeu a autonomia através da qual poderia realizar efetivamente o gênero." (21)

Surpreendentemente, porém, em uma certa passagem do ensaio sobre o conceito de progresso, Adorno suspende a função depreciativa do Jugendstil, revelando uma compreensão mais profunda do movimento, atenta à sua ambiguidade. Segundo ele, o conceito de progresso deve se esforçar para incluir sua auto-negação, assim como o Jugendstil soube acolher o impulso vitalista e a decadência:      
       
"O progresso significa: escapar à fascinação, mesmo à fascinação do progresso que é ele mesmo natureza na medida em que a humanidade toma consciência da sua própria naturalidade e põe fim à dominação que ela exerce sobre a natureza e graças à qual a dominação da natureza se perpetua. Essa idéia de progresso é prisioneira de um conceito difamado hoje em todos os campos, a saber o conceito de decadência. Os artistas do Jugendstil aderiram a ele. A razão não é somente que eles queriam exprimir sua própria situação histórica que era a seus olhos de uma morbidez biológica. No seu desejo de imortalizar plasticamente esse estado, manifestava-se o sentimento - que eles partilhavam amplamente com os filósofos da vida - que era aquilo que neles profetizava o seu próprio declínio e o do mundo que a verdade estava salva ( ... )  A decadência é o ponto nevrálgico em que a consciência se apropria digamos concretamente da dialética do progresso." (22)

A aceitação da ambiguidade do movimento artístico infelizmente não prosperou na teoria crítica. Para Adorno, o Jugendstil foi mesmo um dos principais agentes da " ideologia da introdução da arte na vida" (23), juntamente com o esteticismo de Wilde, d'Annunzio e Maeterlinck.
O Jugendstil foi condenado por acorrentar a consciência à lógica do mundo administrado. Ao menos em relação ao art nouveau, a limitação do moralismo de Adorno é demasiado evidente.

O alvo da crítica de Morris é a degradação da vida humana provocada pelo capitalismo industrial. Sua solução política é o socialismo, mas o socialismo consciente da urgência na liberação do potencial criativo do trabalho.

O trabalho como arte representa para Morris uma possibilidade generosa de individualização. Concentração, ascese, beleza, realização. A alegria liberada pela ressacralização do trabalho faz prosperar os ornamentos, as belezas livres privilegiadas por Kant.

Desde sempre os ornamentos desfrutaram da liberdade na representação, inclusive da liberdade de nada representar. Ruskin quis os ornamentos livres inclusive da imitação de outros ornamentos: eis a mensagem que os artistas do art nouveau captaram tão bem. Morris não viveu o socialismo, embora tenha participado da sua luta política. Mas soube criar, no entanto, um mundo pulsante dentro do mundo mecânico.

A sua ênfase no poder revolucionário do ornamento, na alegria que a abstração é capaz de gerar e despertar, encontra plena realização nas pinturas e objetos criados por Kandinsky, Jean Arp, Matisse, Calder, Sonia Delaunay e Lucie Rie, entre tantos outros artistas. A face radiante da arte moderna revela que, apesar de tudo, a vida conquistou terreno e avançou.

Comparativamente a Morris, o alcance da teoria crítica de Adorno é muito mais amplo. Seu alvo principal é a razão incapaz de refletir sobre si mesma.  A infelicidade que ela projeta sobre o mundo tem mil faces, o capitalismo industrial é uma delas. Adorno não vê soluções individuais, mas reconhece na arte o poder único de crítica e conscientização.

A arte é, para o teórico, a única atividade humana realmente capaz de criar o novo, e não apenas sonhá-lo. No entanto, pouquíssimas obras de arte conseguem realmente isso. Somente as obras que, em vez de sofrerem a ação da negatividade, imprimem sobre a negatividade sua própria força. Segundo Adorno, o choque provocado pela arte é capaz de conscientizar os indivíduos sobre a urgência de ações concretas para transformar a realidade.

A arte da negatividade se equilibra numa navalha. A única chance de da arte se diferenciar da negatividade é tentando a aproximação total. A diferença conquistada pela similaridade total, eis o desafio extremo e paradoxal de Adorno. Evidentemente arriscado e nem sempre tão fértil como o teatro de Beckett. A confiança de Adorno nessa estratégia da arte parece no entanto inabalável. Quase uma operação matemática: negativo + negativo = positivo.

O risco da arte da negatividade se transformar num instrumento adicional do conformismo é permanente. Essa pode ser uma das explicações para a apatia em relação à arte, revelada tantas vezes no comportamento dos visitantes em certas exposições: alguns poucos segundos dedicados a uma ou outra obra, e depois . . . a cafeteria.

Se a arte da negatividade não é uma experiência minimamente real para os sujeitos, como seria capaz de conscientizá-los do que quer que seja, quanto mais da urgência em tomar atitudes efetivas e concretas, para transformar a realidade?

Sem desempenhar seu papel crítico, a arte da negatividade não se reduziria a um mero "esnobismo", como o golfe e as cocktail parties de que nos fala Adorno, prazer sem prazer, signo de distinção por excelência? Quantas vezes a arte da negatividade não teria simplesmente sucumbido à negatividade contaminando tudo à sua volta com o seu erro sinistro?

Na teoria crítica, mais importante do que a possibilidade de de-subjetivação, por meio da arte, é o pacto da estética da negatividade com a dor: "a alegria mostrou-se rebelde a toda expressão, talvez porque ela ainda não existe e a felicidade seria sem expressão.” (24). Se, para alguns artistas abstratos do nosso século, o ascetismo radical foi movido pelo desejo místico de liberação dos constrangimentos do mundo (25), a negatividade adorniana não deixa escapar seu compromisso com a dor. Não há um "lado de fora" do mundo administrado, mas distopia que expande a infelicidade em todas as direções. 

Adorno teria preferido um mundo sem a linha elegante e sinuosa do Jugendstil, um mundo sem ilusões. Na condenação do Jugendstil há, porém, mais do que o Jugendstil e também muito menos. Mais porque o Jugenstil de Adorno é uma designação extensiva a toda arte assimilável - não há fronteira definida entre o kitsch e o Jugendstil. Menos porque sob sua pluma o Jugendstil perdeu a singularidade, a riqueza, a variedade, a ambiguidade, e sobretudo a alegria, promessa de Ruskin e Morris para a vida do ornamento.

Há algo de bárbaro e irrefletido no Jugendstil de Adorno (26). De fato, a repetição monótona da função depreciativa do Jugendstil revela ainda, no interior do discurso, a dominação da ideia abstrata que é, no entanto, o alvo principal da teoria crítica. O ornamento nunca é surpresa para ele, mas "decoração", redução do estético ao acordo insincero e obrigatório entre as partes e entre as partes e o todo, multiplicação de espelhos, confirmação sempre.
 

Gilberto Paim é ceramista e escritor.
 

Notas


(1) A palavra consta no dicionário Aurélio como anomalia de um órgão. O sentido visado aqui é o mesmo do inglês “dystopia: an imaginary place which is depressingly wretched and whose people lead a fearful existence”. (Webster's)
(2) MORRIS, Wiliam. News from Nowhere and and Other Writings. Inglaterra: Penguin Classics, 1993, p. 175.
(3) Ibidem, p. 122.
(4) Ibidem, p. 299.
(5) RUSKIN, John. The Nature of Gothic: a chapter of The Stones of Venice/by John Ruskin; Hammersmith, printed by William Morris at the Kelmscott Press. Londres: George Allen, 1892, p. 85.
(6) PEVSNER, Nicolaus. Pionners of Modern Design. Londres: Faber & Faber, 1936.
(7) Em francês no original.
(8) PEVSNER, op. cit., p. 112.
(9) ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Portugal: Edições 70, 1982, p. 27.
(10) Ibidem, p. 265.
(11) Ibidem, p. 268.
(12) Ibidem, p. 302.
(13) Idem, "Parataxe”. In: Notes sur la Littérature. Paris: Flammarion, 1984, p. 313.
(14) Idem, Teoria Estética, p. 177.
(15) Idem, "Pour Comprendre Fin de Partie". In: Notes sur la Littérature, p. 200.
(16) STIEG, Gerald. "Karl Kraus et Les Derniers Jours de l'Humanité". In: Vienne 1880-1938, L'Apocalypse Joyeuse. Paris: Editions du Centre Pompidou, 1986, p. 518.  
(17) ADORNO, Teoria Estética, p. 53.
(18) Sobre a polarização histórica Jugendstil x Werkbund, conferir: GAUGHAN, Martin. "The Cultural Politics of German Modernist Interior". In: Modernism in Design. Londres: Reaktion Books, 1990.
(19) ADORNO, T. "Pour Comprendre Fin de Partie". In: Notes sur la Littérature, p. 201.
(20) Idem, Minima Moralia. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 116.
(21) Ibidem, p. 31.
(22) Idem, "Le Progrès". In: Modèles Critiques. Paris: Payot, 1984, p. 161.
(23) Idem, Teoria Estética, p. 268.
(24) Ibidem, p. 130.
(25) Durante quase vinte anos, Ad Reinhardt pintou telas negras monocromáticas. Ele explica negativamente a sua opção: "Nem linha, nem imaginação, nem composições ou representações, nem visões, ou sensações ou impulsos, sem símbolos, ou signos ou impastos, nem decorações ou colorações ou pictorializações, nem prazer nem dor, nem acidentes ou ready-mades, nem coisas, nem idéias, nem relações, nem atributos, nem qualidades, nada quem não seja a essência." Art as Art, American Artists on Art, p. 31.
(26) Adorno reconhece a barbárie na aversão do design funcionalista ao ornamento, mas não na em sua teoria crítica. Assim, ele escreve: "A alergia esteticamente muito difundida ao Kitsch, ao ornamento, ao supérfluo, ao que se aproxima do luxo tem também o aspecto da barbárie, do mal-estar destruidor na civilização, segundo a teoria de Freud". ADORNO, T. "Dialética do Funcionalismo". In: Teoria Estética, p. 77.

 

 


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