Ano: I Número: 4
ISSN: 1983-005X
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CauduroMartino, design total
Celso Longo

Fosse possível voltarmos aos meados de 1970, veríamos com certa nitidez o esforço empreendido àquela altura para forjar, oficialmente, uma visualidade planejada – e, no caso, moderna – para a metrópole paulistana e para os seus principais organismos operacionais.

Esforço que se justificou graças à combinação de um vertiginoso e entrópico crescimento de São Paulo com um poder público ainda presente nas determinações dessa imagética urbana. Em outras palavras, com o crescimento da cidade surgiu a demanda por mecanismos reguladores de seu funcionamento e, mais do que isso, de sua comunicação. Frente a tal situação, o poder público posicionou-se para além do caráter normativo, viabilizando projetos que, saídos integralmente ou não do papel, tinham como premissa a materialização de um semblante para a cidade.

Isto posto, é justamente nesse cenário que se insere uma seqüência de projetos realizados pelo escritório dos arquitetos João Carlos Cauduro e Ludovico Antonio Martino, fundado em 1964. Trabalhos que, afora voltarem-se para a cidade e seus tentáculos na construção de uma identidade visual e ambiental calcada no valor de uso – design público –, configuram exemplo pioneiro em solo nacional no tocante à somatória de aptidões projetuais – design total (termo que terá sua acepção clarificada ao longo do texto).

Oriundos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, num momento emblemático de sua história – imediatamente antes das reformulações curriculares, encabeçadas por Vilanova Artigas, em 1962, que agregaram ao ensino da arquitetura e do urbanismo as expertises do desenho industrial e da programação visual –, Cauduro e Martino formaram-se já com uma visão intersemiótica, tridimensional e sistêmica de projeto. Cumpre notar ainda que tal partido foi endossado pouco tempo depois, em 1966, na pós-graduação da mesma faculdade pelo curso Metadesign e Teoria da Informação, ministrado pelo professor convidado Andreas Van Onk. O professor e desenhista industrial holandês debruçava-se nos estudos e desdobramentos formais partindo da definição de um único e preciso princípio gerador. Fato que impregnaria, desde então, o método de trabalho dos dois arquitetos.

Tendo como parâmetro alguns protótipos externos acerca de uma ampla e integrada visão projetual, da qual o trabalho realizado pela empresa italiana Olivetti parece ter sido a principal referência, João Carlos e Ludovico transcriaram aqui o paradigma moderno, aclimatando-o para a realidade brasileira e socializando-o em projetos-tipo – ou matrizes paradigmáticas – do que se entende por um design total. Os sistemas de identidade visual e ambiental feitos para o Metrô de São Paulo (1967), para a TV Cultura (1968), para o Zoológico de São Paulo (1972), para a avenida Paulista (1973), para os Transportes Públicos de São Paulo (1974), para o Banco do Estado de São Paulo (1975) e para a Companhia Energética de São Paulo (1977) ratificam tal afirmação.

Antes de pontuar alguns detalhes destes projetos, cabe reiterar que o escritório sempre operou dentro do léxico do Movimento Moderno, de modo que o rigor sintático, a síntese semântica e o forte veio pragmático foram axiomas seguidos à risca na formatação de sua linguagem. A produção do escritório explica-se, contudo, mais na prática do que na teoria: "sistemas que funcionam" resume a idéia – prova disso, por exemplo, foi a escolha de uma única família tipográfica (Univers), de acabamentos retilíneos e boa legibilidade, para desenhar todo e qualquer signo nominativo contido nos sistemas acima elencados. Além da personalidade moderna da referida letra (comum também a um vasto grupo de alfabetos), a facilidade em manuseá-la foi definidora para sua eleição incontestável – lembrando que o corte dos tipos ocorria, de fato, manualmente.

Na gênese da maioria desses sistemas de identidade visual há sempre uma célula matricial: a marca. Comecemos, portanto, por investigar tais signos de alto teor informacional, agrupando-os por similaridade.

Os símbolos do Metrô, da TV Cultura e dos Transportes Públicos valem-se da lógica e da sintaxe construtivistas – são geométricos e sintéticos. Para o Metrô, setas horizontais e verticais indiciando os fluxos dos trens e dos passageiros, tanto entre as estações como entre o subsolo e a superfície; para a TV Cultura, a personificação epistemológica do próprio nome da emissora derivado de uma inteligente gradação (cultura, sociedade, indivíduo). Vale lembrar que, neste caso, o boneco criado originalmente com tesoura e papel era parte constituinte de uma família flexível e animada de sinais para identificar os diversos programas transmitidos. Já o símbolo dos Transportes Públicos trazia, com singeleza, a idéia de circulação e integração – características fundamentais do objeto a ser representado.

No caso do Zoológico – cujo sinal também fora uma família coordenada de símbolos –, a construção, apesar de rigorosa, apontava com veemência para a figuração (tucanos, macacos, leões, elefante). Opção facilmente explicável, uma vez que grande parte dos receptores da mensagem era formada por crianças em fase de pré-alfabetização.

Apostando em formas mais comunicativas, dentro de um mercado essencialmente corporativo, os sinais do Banespa e da Cesp constituíram-se como logotipos, numa valorização certeira do poder dos signos nominativos. No Banespa, uma inovação: a palavra grafada inteiramente em caixas baixas (com a estratégica ligatura "sp") aproximava o banco de seus correntistas. Ainda, duas tarjas nas cores da bandeira de São Paulo migravam do grifo da marca para os diversos ambientes de suas manifestações visuais corroborando, na prática, a identidade do sistema (procedimento que ocorre de modo similar com o logotipo da Cesp e seu respectivo programa de identidade visual).

Entendido o funcionamento dos sinais, adentremos o universo dos sistemas – terreno por excelência tanto da Cauduro Martino quanto do design total.

O foco na criação da identidade ambiental do Metropolitano de São Paulo foi a sinalização. Abaixo da superfície, o transeunte vê-se totalmente expropriado dos referenciais da cidade, necessitando, assim, de precisas orientações para locomover-se – situação que se intensifica ao somarmos a este transeunte milhares de outros, todos apressados aos seus pontos de destino. Deste modo, criou-se um código visual (signos nominativos e direcionais, padrões cromáticos e compositivos etc.) agregado a um conjunto modular de suportes, padronizados sob a égide da produção industrial, com o intuito de veicular as mensagens do sistema. A alocação dos elementos, que funcionam até hoje como a principal interface entre a arquitetura das estações e seu público, seguiu um levantamento minucioso dos pontos de decisão do usuário, sendo que em diversas partes do trajeto este se mantém amparado pelas informações norteadoras do seu traslado.

O trabalho realizado para a Fundação Parque Zoológico de São Paulo teve início como um projeto padrão de identidade visual, de onde nasceram sua família de marcas e os itens básicos de sua papelaria. Porém, findada esta etapa, solicitou-se ao escritório uma sinalização para o parque que, dada a escassez orçamentária, foi produzida utilizando a própria mão-de-obra dos funcionários da fundação em conjunto com matérias-primas industrializadas, de baixo custo. O trabalho, passando pelo planejamento ambiental das áreas do Zoológico destinadas aos animais e visitantes, chegou a um plano diretor para o parque sob o conceito de "prender os visitantes e soltar os animais". Deste modo, diversos recintos foram projetados e construídos após a confecção de um conjunto de fichas de cada espécie, nas quais se auferiam as características e os dados ergonômicos da fauna com a finalidade de subsidiar o desenho de seus habitats, tornando-os os mais naturais possíveis. Um projeto que congregou desenho industrial, programação visual, arquitetura, urbanismo e paisagismo.

Na avenida Paulista – o trabalho de planejamento ambiental que trouxe maior reconhecimento ao escritório –, o desafio foi conciliar uma extensa gama de informações da sinalização viária e um número considerável de componentes do mobiliário urbano com o exíguo prazo para a criação e implantação do sistema (seis meses ao todo). No primeiro caso, para garantir uma solução técnica e esteticamente aceitável, a proposta valeu-se do poste de uso múltiplo e da escrita vertical. No poste, meio e mensagem fundiram-se num único elemento que passou a abrigar todas as informações nominativas e direcionais, além dos semáforos, placas de trânsito e lixeiras, equacionando a entropia que vigorava no passeio. No segundo caso, abrigos, floreiras, bancas de jornal e bancos foram desenhados como módulos componíveis e produzidos, também industrialmente, em fibra de vidro. O projeto, que contou com paisagismo e desenho do calçamento elaborados pela arquiteta Rosa Kliass, encontra-se hoje sucateado: dos postes, restaram – sem qualquer manutenção – apenas os que se posicionam nos cruzamentos; do mobiliário, nada sobrou; e, neste exato momento, assistimos à substituição do mosaico português que desenhava e cadenciava o fluxo nas calçadas. Idiossincrasias de uma cidade que abandonou sua memória e seu patrimônio.

No intuito de organizar a comunicação visual dos Transportes Públicos de São Paulo, João Carlos Cauduro, Ludovico Martino e sua equipe de projeto despenderam três anos e meio. Àquela época, a cidade possuía 1100 itinerários de ônibus, comandados por 73 empresas permissionárias, além da CMTC – de fato, um imbroglio. Ainda, como a cidade crescera exponencialmente, sem diretrizes claramente definidas e sob a guarda da especulação imobiliária, o usuário não mais a conhecia. Esclarecido o contexto, fora preciso estruturar, antes de qualquer coisa, um modelo visual para São Paulo que abarcasse o nível de repertório do maior número possível de seus habitantes. Afinal, era primordial saber ler a cidade para poder compreender sua rede de transportes. Após exaustivos modelos, concluiu-se esta etapa de semiótica urbana e os arquitetos partiram para a definição dos componentes do sistema (programação visual e desenho industrial): mapa-diagrama e mapa da rede dos transportes públicos; identificação interna e externa dos veículos; abrigos e pontos de parada.

Os projetos desenvolvidos para o Banespa e para a Cesp indicariam uma mudança vindoura. A partir dos anos 1980, o poder público atrofiou sua participação, direta ou indireta, na construção da imagem da cidade na mesma proporção que o planejamento das identidades visuais corporativas privadas tornou-se mais incisivo frente a um mercado global e deveras competitivo.

No projeto do Banespa, contudo, ainda sopravam os ventos da velha ordem. Além do apurado desenho de seu logotipo, montou-se um conjunto coordenado de assinaturas empresariais para as diversas atividades do banco e redimensionou-se sua papelaria e seus infindáveis impressos, resultando numa economia brutal para a empresa. Um inusitado sistema de identificação externa das agências, flexível e moldado em série, foi projetado para unificar sua comunicação direta com a cidade. Composto por uma dupla concha em fibra de vidro, as peças acabadas traziam, em tom menor (branco sobre branco), a marca do Banespa em relevo – uma comunicação respeitosa com o entorno se comparada às enormes testeiras e totens já em voga àquela época. Além disso, diretrizes arquitetônicas foram lançadas para a construção de novas lojas bancárias e toda sinalização e mobiliário do banco foram exclusivamente projetados e produzidos serialmente. O resultado do trabalho, ao ser documentado no manual de identidade visual, assegurou a perenidade da imagem do Banespa uma vez que coexistiu com a implantação de um departamento de comunicação interno ao banco, que se responsabilizou pela gestão de suas normas.

Os exemplos brevemente relatados acima, afora colaborarem, àquele momento, com a inclusão da imagem paulistana dentro de uma, por assim dizer, ‘modernidade tácita’, serviram para guiar os passos futuros de João Carlos Cauduro e Ludovico Martino. Foi naquele período que, de fato, firmaram-se o método e a linguagem do escritório. Porém, como já foi dito, após os anos 1980, a crise do modelo moderno, acompanhada da gradual supressão do primeiro setor, modificaram substancialmente a cena que até então vigorava. Dentro do planejamento ambiental, a máxima corbusiana do projeto como a ‘chave de tudo’, traçado pelas mãos do arquiteto, foi posta em cheque. Ainda, cumpre lembrar que, no Brasil, o controle produtivo apresenta-se mais seguro no terreno do design gráfico, se comparado ao desenho industrial, ou mesmo à arquitetura.

O escritório, ainda hoje atuante, viu-se impelido a focar a identidade visual corporativa como seu principal nicho de projeto. Com os anos, o modelo paradigmático socializado pelas mãos dos dois arquitetos também se exauriu, estereotipou-se na mesma medida em que surgiram novos candidatos a paradigma. Em muitos casos, o design visual tornou-se branding, perdendo sua inocência. Seja como for, o legado da Cauduro Martino não é pequeno. Além da cultura material e visual edificadas, formaram-se dentro do estúdio, ao longo de mais de quatro décadas, gerações de designers contaminadas pelo ofício rigoroso e pela expansão das tradicionais atividades do arquiteto. Processo que também ocorreu dentro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo onde, tanto João Carlos, como Ludovico, ministraram por anos as cátedras de desenho industrial e programação visual.


Bibliografia selecionada:


CAUDURO, João Carlos. CM marcas. São Paulo: Imesp, 2005.

______. Planejamento visual urbano: O sistema do metrô de São Paulo. Vol. 1, 2 e 3. 1972. Tese de Doutoramento – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.

LONGO Jr., Celso C. Design total: Cauduro Martino, 1967-1977. 2007. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

MARTINO, Ludovico A. Codificação e decodificação: programa de identidade visual Villares. 1972. Tese de Doutoramento – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.


Celso Longo é arquiteto e mestre em Design e Arquitetura pela FAU-USP. Dirige, desde 2005, o Imageria Estúdio (www.imageria.com.br).

 


Comentários

giselle arruda
14/07/2009

como consigo entrar em contato com o autor do artigo?

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