Ano: I Número: 1
ISSN: 1983-005X
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Déficit de artesania
Gilberto Paim

Livro: A Cultura do Novo Capitalismo Autor(a): Richard Sennett Editora: Editora Record, Rio de Janeiro, 2006

Postado: 08/01/2008

   

Ao entrevistar um grupo de programadores de uma grande empresa de software que costuma lançar no mercado versões incompletas de programas que são corrigidas e aperfeiçoadas somente a partir das queixas e reclamações dos usuários, o sociólogo Richard Sennett identificou, entre eles, a formação de um “código de artesania” ou “código de ofício”. Embora habitualmente avessos a associações profissionais, os programadores se uniram com o objetivo de pressionar a empresa na qual trabalham a desistir dessa prática altamente lucrativa baseada em critérios de qualidade rudimentares. Eles passaram a exigir mais tempo para elaborar corretamente os programas.

É surpreendente encontrar o tema da artesania num ensaio sobre as transformações culturais decorrentes da reorganização do trabalho em empresas consideradas de ponta no campo dos serviços, finanças e alta tecnologia. À primeira vista nada parece tão distante da aceleração do mundo contemporâneo quanto a concentração do artesão no silêncio da sua oficina. No entanto, a preocupação com a artesania surge em reação à pressa e à superficialidade. Os programadores de software entrevistados por Sennett consideram que a qualidade dos programas que realizam é uma dimensão muito importante do seu trabalho e de suas vidas, da qual não pretendem abrir mão.

A estrutura burocrática rígida das grandes corporações capitalistas modernas, analisada em profundidade por Max Weber, foi substituída pela fluidez das novas empresas que se contraem e se expandem incessantemente, privilegiando a rapidez dos lucros assim como a provisoriedade dos contratos e a descontinuidade das equipes. Ninguém tem lugar garantido. O fantasma da obsolescência ronda os profissionais experientes. Na melhor das hipóteses, o re-treinamento profissional pode valer uma nova contratação. A pressão conformista que caracterizou as burocracias modernas perdeu a força, favorecendo o surgimento de uma nova liberdade que é vivenciada, no entanto, como desorientadora e angustiante.

Enquanto Adorno e Horkheimer compreenderam a singularidade da arte em resistência aos aspectos essencialmente repetitivos e coercivos da vida moderna sob o domínio da indústria cultural, a reflexão crítica de Sennett atribui uma nítida significação contra-cultural à artesania ( craftsmanship ). Sennet amplia o seu sentido tradicional vinculado à busca de qualidade nos ofícios artesanais, seja na realização de um relógio, violino ou vaso de cerâmica. Embora mais abstrato e abrangente o seu conceito ainda parece familiar: a artesania se manifesta, por exemplo, no texto escrito com clareza ou no talento profissional burilado pelo tempo. A artesania consiste, segundo ele, na capacidade e na dedicação em fazer algo bem feito por si mesmo, independentemente inclusive de remuneração financeira. Embora tenha aspectos obsessivos associados à auto-disciplina e auto-crítica, a artesania baseia-se em critérios de qualidade que são objetivos e socialmente reconhecidos.

O capitalismo da primeira década do século vinte e um premia os profissionais que são capazes de aprender e desaprender continuamente, com talento especial para resolver problemas independentemente do seu contexto. Desse modo, um “excesso” de experiência ou de conhecimento específico pode representar entrave à mudança, senão ao ritmo acelerado da realização dos projetos. No entanto, segundo Sennett, a realização da artesania, cujo desejo costuma ser atropelado no cotidiano das empresas, é capaz de resgatar em profundidade o sentido da vida de cada um.

A sua análise estende-se também à esfera do consumo na qual a ilusão desempenha, segundo ele, um papel cada vez mais enervante. As pessoas não são apenas induzidas pelo discurso publicitário a supervalorizar diferenças entre produtos similares, elas imaginam ativa e continuamente essas diferenças. A ilusão que sustenta a paixão consumista se alimenta com voracidade dos produtos tecnológicos que prometem potência infinita, como os Ipods, telefones celulares multifuncionais e computadores com vasto leque de softwares. As suas possibilidades infinitas jamais serão utilizadas: o que importa é a ilusão ou promessa de potência. Mais uma vez Sennett recorre aos valores artesanais como motor de resistência. Inspirado em Thorstein Veblen e Sharon Zukin, Sennett idealiza um tipo de consumidor capaz de compreender como as coisas são feitas e funcionam – não exatamente um consumidor mas um “comprador-artesão” ( craftsman-buyer ) – que não supervaloriza as diferenças superficiais entre os produtos tão glamurizadas pela publicidade e pelo marketing.

Embora em grave déficit no mundo contemporâneo, Sennett atribui aos valores artesanais uma significação primordial: “Já que as pessoas só conseguem ancorar suas vidas ao tentar fazer algo bem feito em si mesmo, o triunfo da superficialidade no trabalho, na escola e na política me parece frágil.”. Ele aposta numa renovação baseada na recuperação e na consolidação da artesania. Parece pouco? Ele dá voz, através de cuidadoso ofício da etnografia, às inquietações e esperanças de tantas pessoas para quem a vida contemporânea se apresenta cada vez mais fragmentada e desprovida de narrativa.

 

Gilberto Paim é ceramista; doutor em Literatura Comparada pela UERJ; autor de  " A beleza sob suspeita; o ornamento em Ruskin, Loos, Lloyd Wright, Le Corbusier e outros", Jorge Zahar Editor,  e  " Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim", Editora Viana & Mosley. 

 

 


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