Ano: VI Número: 55
ISSN: 1983-005X
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Seriam designers os marceneiros do século XVIII?
Ethel Leon

Livro: O Século do Conforto Autor(a): Joan DeJean Editora: Civilização brasileira

Postado: 20/02/2014

   

 O Século do conforto da historiadora Joan DeJean, lançado em 2009 e publicado em português pela editora Civilização Brasileira em 2012, é dos poucos estudos da chamada cultural material que foi amplamente divulgado na imprensa, ganhando destaque em jornais e revistas brasileiros.

A narrativa, organizada em 15 capítulos, demonstra que, a partir de 1670, reinado de Luis XIV, mas, sobretudo, na corte de Luis XV, bisneto do rei sol, tem lugar grande transformação na vida dos fidalgos, rumo ao que entendemos hoje como conforto. DeJean descreve em detalhes as mudanças ocorridas na aristocracia francesa centralizada em Versalhes, no século XVIII, que ela denomina de século do conforto.

Novos móveis, estofados; espaços íntimos preservados da vida pública da corte e seus elaborados códigos de comportamento; instalações sanitárias modernas; aquecimento adequado; roupas mais largas, negligés em substituição às verdadeiras ‘roupas de força’ que tornavam extremamente incômodos os atos de sentar e recostar; tecidos macios. Toda essa marcha de comodidades adentra a corte por sua própria iniciativa, segundo o livro, e torna a França o primeiro país em que a modernidade alcança a vida cotidiana, ao menos para sua parcela dirigente.   

Segundo a autora, o conforto atribuído aos ingleses só se realizou no século XIX, quando muitos dos objetos e das instalações confortáveis do século XVIII francês haviam sido revogados em território nacional. Coube à corte do absolutismo francês a primazia da chamada arquitetura da intimidade.  

É no século das Luzes, portanto – e a Enciclopédia de Diderot e d’Alembert registrou várias das novas invenções do período – que arquitetos e decoradores, a pedido de seus clientes, não só da nobreza, mas financistas importantes passaram a prestar atenção às residências e a ocupá-las de forma setorizada, adotando o conceito de distribuição ou planejamento dos espaços residenciais. Nesse período, ainda segundo DeJean, os móveis se tornaram menos móveis, estacionando em cômodos especializados. As crianças palacianas ganharam cômodos específicos. Também as noções de monumentalidade da corte, expressos em salões enormes e suntuosos, tiveram o contraponto da ideia de intimidade e relaxamento de aposentos menores e aconchegantes.

Nesse período foram inventados alguns tipos de mobília que conhecemos até hoje, como o sofá, a cômoda, a banheira e a mesa de cabeceira. E essas novas peças do cotidiano se acompanharam de novas posturas corporais, também bem mais próximas daquelas que adotamos contemporaneamente. A entrada de luz solar por janelas de vidros maiores tornou-se comum e ela seria sublinhada por vários arquitetos modernos, entre os quais Le Corbusier. O reclinar-se em superfícies alongadas como chaises voltou à cena depois de séculos, em que as posturas variavam entre estar de pé e sentar-se em assentos rígidos de madeira ou couro.

 O corpo, vestido de algodão e sedas macias como a gaze e a musseline, podia se espreguiçar nessas chaises. A leitura e a escrita de cartas passaram a fazer parte do cotidiano com o surgimento de mais gente alfabetizada (inclusive as mulheres), o que mudou a forma de guarda e exibição dos livros. O banho se tornou mais regular, dando origem à instalação de banheiras em aposentos contíguos aos dormitórios (daí vem a expressão suíte, de en suite, que significa em seguida).

Como descrição do período, O século do conforto é exemplar. Mas, ao longo de 350 páginas, não são esboçadas aquelas análises fascinantes da história social em que os franceses são mestres e que poderiam discutir essa tessitura do conforto em termos mais amplos. Não fica claro e não dá para levar a sério a ideia de que alguns cortesãos, outros tantos ricaços, poucas atrizes e seus arquitetos foram responsáveis por todas essas mudanças, sem estarem inscritos em outros tipos de transformação por que passava a França e que desembocaria na Revolução de 1789.

Inevitável, ao ler esse livro, perguntar-se como foi sendo construída esta nova vida na corte, que tanto se afastou dos ditames de Luís XIV magnificamente explicados por Norbert Elias em seu livro O Processo Civilizador. O afrouxamento da etiqueta em Versalhes e seu, digamos ‘aburguesamento’ é rapidamente sumarizado na coda da obra, em que a autora afirma que a união do Iluminismo com o conforto geraram a art de vivre da França, destacando-a como civilização superior no mundo europeu de então. No entanto, fica a pergunta: a supremacia francesa no tocante a roupas, modos de portar-se já não foram fincados na corte absolutista do século XVII?

A outra questão diz respeito a certo anacronismo. A autora repete ao longo do texto que os artífices, marceneiros e tapeceiros são designers. Nesse sentido, ajuda a manter a noção de designer restrita a executor das comodidades domésticas. Ao mesmo tempo, não reconhece na divisão do trabalho – aquela que separa projeto de execução - como a raiz do design. Esse talvez seja um viés francês, tão combatido por designers e teóricos alemães, ingleses e italianos que enxergam nessa identificação entre design e artes decorativas uma anti-utopia, mais afeita a Versalhes do que às metrópoles industriais.

 


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