Ano: I Número: 4
ISSN: 1983-005X
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O modesto tipógrafo
Solano Nobre

Livro: A forma sólida da linguagem Autor(a): Robert Bringhurst Editora: Rosari

Postado: 17/04/2008

   

Enquanto as pessoas se distanciam da paciência caligráfica, escrevendo – cada dia mais – nas teclas do computador, a arte da caligrafia se expande e ganha adeptos nas cidades. Escreve-se pouco a mão, convites de casamento e formatura, mas há uma consciência de que esta é uma perícia a ser conservada, pelo menos em situações rituais. A escrita, mesmo apoiada nos teclados, também se expande. Robert Bringhurst a denomina ‘a forma sólida da linguagem’.

Sem ela, ele nos diz, a humanidade sobreviveu muito bem séculos e séculos. Mas não sem a linguagem. A escrita, diz ainda, nasce da necessidade de controle gerencial. É, desde sempre, uma ferramenta do projeto. Mais tarde, serve à literatura, esse saber da descoberta que, sempre foi, mais do que o tema, uma luta solitária e insensata com as palavras.

O livro de Bringhurst é um passeio pelas escritas de muitos povos. O passeio é também gráfico, graças aos cuidados da editora Rosari, que replicou o projeto do autor e fez um livro que leitores vorazes gostam de ter consigo. Ele traz a memória de escritas diversas, apresentando o modo de grafá-las.

Têm conceitos, inclusive o de que a escrita é abstrata – a frase de Eric Gill ganha um sentido peculiar “as letras são coisas e não imagens de coisas”. “A escrita, diz Bringhurst, “renunciou à similaridade com os objetos que representa.” O autor fala isso também da escrita chinesa, contra idéias pré-concebidas da leitura dos ideogramas. Ele  diz que as associações das letras com objetos desaparecem quando se lê fluentemente.Outro conceito importante é que o sistema é estilisticamente e simbolicamente independente. Há uma fala criada pela linha do escriba, assim como um gesto no balé se converte em elemento de linguagem.

Bringhurst vê nas modalidades da escrita as ações do poder. São, segundo ele, “vetores de autoridades políticas e religiosas”. Ele enumera exemplos de trocas de sistemas de escrita, segundo a dominação de território, de uma ideologia política. A língua turca era grafada em árabe do século XI ou XII até 1928, quando um decreto governamental passou a obrigar a grafia em alfabeto latino. No entanto, o mesmo – e até bem mais – vale para as línguas. Bater-se pela legitimidade de uma língua tem dado muito significado a lutas regionais como a dos catalães e dos bascos, por exemplo.

O autor postula que não há escritas determinadas por momentos históricos. Ou, pelo menos, que não há determinação político-ideológica na adoção de certas escritas. Ele exemplifica isso ao falar da epidemia global da Helvetica, resultado da civilização industrial. Ou ao afirmar que as mais diferentes civilizações produziram sistemas de escrita de figuras euclidianas livres e não serifadas, da Grécia clássica aos béberes, da escrita brami à hangual (da Coréia, de 1446).

Bringhurst oferece possibilidades de compreender as diferentes escritas de forma autônoma. Mesmo quando imposta por um poder autoritário a um povo, sua continuação é capaz de recriação de formas sutis ou de um certo abandono.

Explicativo, repleto de exemplos, muitos dos inuit, o povo esquimó do Alasca a quem o designer ambientalista Victor Papanek dedica um capítulo (Os melhores designers do mundo), o texto não é um compêndio. Embora defenda teses, sua escrita poética é que ganha importância. A poética prosódica e gráfica do livro é que o torna um livro atraente, mais do que as informações nele contidas, que não almejam à erudição.

É uma declaração de amor de um gráfico falando do mundo do graphos. Sem dispensar uma realismo cortante: “Se a linguagem for perdida, a humanidade estará perdida. Se perdermos a escrita,algumas civilizações e sociedades serão perdidos, mas muitos permanecerão – e não há razão alguma para pensar que essas alternativas são inferiores.” Que um contador de histórias dissesse isso, vá lá. Vindo de um tipógrafo, estudioso do mundo gráfico, é muita humildade.

 

Nota: A Editora Rosari tem o mérito de fazer boa tradução e as notas da tradutora Juliana Saad indicam o cuidado com o léxico específico. Será que na página 24, quando o texto fala de novelistas, não serão romancistas?

 

Solano Nobre é maranhense e gráfico autodidata.

 


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