Ano: I Número: 2
ISSN: 1983-005X
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Nota de William Morris sobre os seus objetivos ao fundar a Kelmscott Press, 1895
William Morris
Tradutor(a):Gilberto Paim

Comecei a imprimir livros com a esperança de produzir alguns que fossem autenticamente belos, e ao mesmo tempo fáceis de ler, que não ofuscassem a vista, ou perturbassem o intelecto do leitor pela excentricidade da forma de suas letras. Sempre fui grande admirador da caligrafia medieval e dos primeiros impressos que a sucederam. Observo que os livros do século XV são sempre bonitos graças principalmente à força da sua tipografia, independentemente dos acréscimos ornamentais, tão ricos em alguns deles. Está na essência do meu projeto produzir livros cujas características tipográficas fossem apreciadas com prazer. Sendo essa a minha aventura, conclui que deveria considerar principalmente as seguintes coisas: o papel, a forma do tipo, o espaço relativo entre letras, palavras e linhas; e enfim a posição da matéria impressa na página.

Naturalmente escolhi o papel artesanal pela durabilidade e aparência. Seria uma falsa economia restringir a qualidade do papel ao preço; assim precisei pensar apenas no tipo de papel artesanal que usaria. Cheguei a duas conclusões: primeiro, que o papel deveria ser integralmente de linho (hoje, a maioria dos papéis artesanais é de algodão), resistente e encorpado. Em segundo lugar, os fios metálicos a serem usados nos moldes de fabricação do papel deveriam estar dispostos paralelamente e não perpendicularmente, sem ser demasiado fortes, de modo a evitar a aparência estriada. Esta decisão me aproximou do ofício dos fabricantes de papel do século XV, e tomei como modelo um papel bolonhês de cerca de 1473. O meu amigo sr. Bachelor, de Little Chart, em Kent, seguiu as minhas instruções de modo bastante satisfatório e produziu logo de primeira o excelente papel que uso até hoje.

Depois, o tipo. Sem refletir exaustivamente sobre o tema, e de modo instintivo, comecei a buscar uma fonte do tipo romano. Queria uma letra de forma pura; severa, sem excrescências desnecessárias; sólida sem o espessamento e o afinamento da linha, que são defeitos do tipo comum moderno e que o tornam difícil de ler; tampouco condensada lateralmente, como os tipos mais recentes adaptados ao uso comercial. Existe apenas uma fonte de exemplos do tipo romano perfeito: as realizações dos grandes impressores venezianos do século XV, e mais especialmente de Nicholas Jenson (1) que produziu os melhores caracteres romanos entre 1470 e 1476. Estudei o seu tipo com muito cuidado, fotografando-o, ampliando-o e desenhando-o muitas vezes antes de começar a desenhá-lo com a minha própria letra; e assim acho que consegui dominar a sua essência, sem copiá-lo de modo servil. De fato, o meu tipo romano, especialmente em caixa baixa, tende mais para o gótico do que o de Jenson.

Depois de algum tempo, achei que deveria criar também uma fonte gótica; então procurei livrar os caracteres góticos do peso da ilegibilidade que lhes é atribuída. Acho que essa acusação não vale para os tipos utilizados nas primeiras duas décadas da imprensa. Schoeffer em Mainz, Mentelin em Estrasburgo e Günther Zainer em Augsburgo evitaram os remates espigados e a compressão indevida, características posteriores e condenáveis do tipo gótico. É verdade que os primeiros impressores (seguindo naturalmente as práticas de seus predecessores escribas) foram pródigos em contrações, e usaram um excesso de ligaturas, que são, a propósito, muito úteis para o compositor. Evitei completamente as contrações, exceto pelo uso do ‘&’, e usei poucas ligaturas, de fato nada além das estritamente necessárias. Permanecendo firme no meu propósito, desenhei um tipo gótico tão legível quanto o romano, e para dizer a verdade o prefiro ao romano. Este tipo é do tamanho chamado Great Primer (o tipo romano é do tamanho "inglês"), porém mais tarde em função das necessidades do Chaucer  (2) (livro de duas colunas) procurei obter um tipo gótico menor, do tamanho Paica.

Devo mencionar que as punções de todos esses tipos foram feitas para mim com grande inteligência e habilidade pelo sr. E.P. Prince, tornando os meus desenhos muito satisfatórios.

Agora sobre o espacejamento. Primeiramente, a "face" da letra precisa ser tão contígua ao corpo quanto possível, de modo a evitar brancos impróprios entre as letras. Em segundo lugar, os espaços laterais entre as palavras devem ser a) não maiores do que o necessário para se distinguir claramente a divisão entre as palavras, e b) tão iguais quanto possível. Os impressores modernos, mesmo os melhores, prestam pouca atenção a esses dois princípios essenciais da composição correta, e os inferiores abusam do espacejamento sem regras, produzindo, entre outras coisas, rios de linhas que escorrem pela página, um grave erro. Em terceiro lugar, os espaços entre as linhas não devem ser excessivos; a prática moderna de entrelinhamento deve ser usada com parcimônia, e nunca sem razão precisa, como para marcar um tipo especial de impressão. O único entrelinhamento que me permito usar em alguns casos é entre as linhas do meu tipo gótico Paica. No Chaucer e em outros livros com coluna dupla usei um entrelinhamento finíssimo e nem mesmo isso nos livros de formato in-dezesseis (3). Por último, porém não menos importante, é o posicionamento da matéria impressa na página. Devemos deixar a margem interna mais estreita, a superior um pouco mais larga, a exterior ainda um pouco mais, sendo a de baixo a mais larga de todas. Esta regra nunca é desrespeitada nos livros medievais escritos ou impressos. Os impressores modernos a transgridem sistematicamente; contrariando assim o fato de que a unidade do livro não é a página, mas o par de páginas. Após cuidadosa análise, um amigo bibliotecário de uma das mais importantes bibliotecas particulares, concluiu que a regra medieval estabelecia uma diferença de vinte por cento de margem para margem. Hoje essas questões de espacejamento e posicionamento são muito importantes na produção de livros bonitos. Se forem adequadamente respeitadas criarão livros ao menos decentes e agradáveis com o tipo mais comum. O desrespeito a estas regras estragará o efeito do tipo mais bem desenhado.

Sendo eu decorador profissional, é natural que tentasse ornamentar os meus livros adequadamente; sobre esse assunto direi apenas que sempre procurei integrar a decoração à página tipográfica. Acrescentaria apenas que ao desenhar as inimitáveis e magníficas xilogravuras que adornam muitos livros meus, e acima de tudo adornam o Chaucer que está quase concluído, o meu amigo Sir Edward Burne-Jones nunca perdeu de vista esta questão importante, de modo que o seu trabalho não apenas oferece uma série de pinturas lindas e imaginativas, mas constitui a decoração mais harmoniosa de um livro impresso.

Notas do tradutor:

(1) Nicholas Jenson (1420-1481), impressor francês que estudou com Gutenberg e desenvolveu o tipo romano. Estabeleceu gráfica em Veneza em 1470.

(2) The Works of Geoffrey Chaucer, Now Newly Imprinted, Kelmscott Press, 1896.

(3) Formato do livro em que a página corresponde à décima-sexta parte da folha de papel, sofrendo esta quatro dobras.

Sobre o Autor(a):

Wiliam Morris ( 1834-1896 ), artista, poeta, ensaísta, designer e atuante socialista inglês, é considerado o idealizador do movimento de Artes e Ofícios. Foi co-fundador da firma Morris, Marshall, Faulkner & Co em 1861, reorganizada como Morris & Co a partir de 1875, especializada em papéis de parede, tecidos, tapetes e móveis. Em 1888, Morris fundou a Gráfica e Editora Kelmscott, na qual publicou inúmeros livros sobre arte e política, de qualidade gráfica excepcional. Foi profundamente influenciado pelo pensamento de John Ruskin, que enfatizou a importância da realização pessoal através dos ofícios artesanais, em contraposição aos aspectos dissociativos do trabalho no mundo industrial. (GP)

 


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