Ano: V Número: 54
ISSN: 1985-005X
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Destruindo a mamadeira
Ethel Leon

Livro: Amamentação e o desdesign da mamadeira, por uma avaliação da produção industrial Autor(a): Cristine Nogueira Nunes Editora: Editora PUC Rio/Editora Reflexão, 2013

Postado: 17/12/2013

   

Quem disse que temos de fazer mais do mesmo? Esta poderia ser uma das frases chave da pesquisadora Cristine Nogueira Nunes, que acaba de publicar sua original e consistente pesquisa sobre a mamadeira como objeto industrial.

Ao fugir e mesmo negar os tradicionais cases mercadológicos, que enchem páginas e páginas do mundo editorial do design; e sem cair nas generalizações críticas que, muitas vezes, não deixam margem a perspectivas para o trabalho do projeto, a autora aborda o design em sua concretude de realizar objetos quotidianos, dialogando exaustivamente com as áreas que os demandam, sem se ater ao briefing mercadológico/industrial. 

Cristine Nogueira mostra como o trabalho do designer hoje não pode ser realizado sem atividade crítica. E tal atividade não se resume à mera avaliação de marketing de produtos existentes, sem envolver a análise de hábitos de consumo tornados naturais. A mamadeira, no caso, é item de um sistema historicamente produzido durante décadas de práticas, hábitos e saberes, sempre questionáveis, porque históricos. 

Muitos dados são trazidos para a realização da crítica ao objeto mamadeira. Entre eles está a ação das empresas produtoras de leites artificiais, entre as quais se destaca a multinacional Nestlé que tem 19 fábricas no continente africano. A corporação trabalha diretamente com as mães, promovendo cuidados com demonstradores de produtos; com pediatras e paramédicos; com material comunicativo e com a própria distribuição de mamadeiras e de leites artificiais em postos de saúde, hospitais e consultórios médicos, principalmente de países pobres.

Os dados levantados são terríveis. Bebês alimentados artificialmente morrem em proporção mais de cinco vezes maior à dos bebês amamentados por suas mães. E isso em país como a Inglaterra, que não tem deficiências de água encanada e esgoto, fundamentais para a higienização das mamadeiras e preparo do leite artificial.

A partir do final dos anos 1970 ganhou força em muitas partes do mundo o movimento pelo aleitamento materno e o boicote à Nestlé, inclusive com a produção do documentário Nestlé kills (Nestlé mata). Segundo a Organização Mundial da Saúde, em documento de 2009, a amamentação pode salvar 1,3 milhão de crianças por ano em todo o mundo. Todos esses dados estão arrolados na pesquisa do livro.

Cristine Nogueira interroga a mamadeira como a ponta do sistema de produção e consumo de leites e alimentos artificiais destinados às crianças, que tantos prejuízos vêm causando, sobretudo àquelas dos países em que sistemas de água corrente e outros meios de higienização são precários ou não existem.  

As mamadeiras com seus leites produzidos em grandes indústrias vêm repor o insubstituível leite materno, responsável pelo alimento equilibrado dos recém-nascidos, sua imunização e também o bom funcionamento do sistema reprodutor da mulher. Trata-se, portanto, de produto que, segundo a pesquisa, é responsável por severas deformações no aparelho buco dental das crianças, levando à respiração bucal e outros problemas graves. E que é estetizado no contorno labial de bonecas que apresentam boquinhas entreabertas, sintoma padrão de respiração bucal.

Que sentido há, então, de continuar a produzir mamadeiras, senão o de manter a venda dos leites industrializados e outros artefatos que os suportam?

A pesquisa abraça a causa do aleitamento materno, por meio de seus defensores e tem postura militante, ao apresentar a um grupo de colegas designers a pesquisa dos malefícios da mamadeira, convidando-os a refletir sobre as tarefas do designer industrial. Além disso, analisa dez modelos de mamadeiras oferecidas no mercado e apresenta o copinho ou a xícara, alternativa pensada em países africanos justamente por possibilitar higienização mais fácil do que as mamadeiras. O copinho, muito menos nocivo, pode ser oferecido em momentos e circunstâncias em que as mães não possam amamentar.

Como bem diz o subtítulo do livro, é mais do que necessário que os próprios designers sejam os primeiros a avaliar criticamente a enorme massa de ‘inocentes’ objetos que são nossa segunda natureza.

O trabalho, porque bem feito, amplo e impiedoso em relação ao próprio design industrial que vem sendo praticado, faz pensar em questões à frente. Uma delas seria a que envolve, em termos psíquicos, a presença da mamadeira (e da chupeta) enquanto objetos mediadores de corpos, substitutos ao seio materno, o que exigiria pesquisa específica, que bem poderia fazer um elo entre psicanálise e cultura material.

Já a segunda diz respeito às bases desta mesma produção industrial que a autora convida a criticar. Para ela, é a questão ética que apoia e fundamenta a crítica a produtos como a mamadeira e a autora chega a dar nome de ‘cultura sensata de consumo’ a um novo e necessário estado de coisas. Mas não seria, talvez, o caso de colocar em questão o próprio sistema de consumo enquanto tal? Esta própria noção, assim como a de sociedade de consumo, é muito recente na história da humanidade para que seja concebida como imutável. E, certamente, não pode ser naturalizada, assim como a mamadeira, os leites em pó e grande quantidade de artefatos ao nosso redor.  

 


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