Arne Jacobsen, que seja eterno enquanto parecer moderno
Ethel Leon
Montada no Instituto Tomie Ohtake, a exposição comemorativa dos cem anos do nascimento de Arne Jacobsen permite uma experiência que contradiz o cotidiano contemporâneo. Lá encontramos objetos de vida longuíssima – muitos dos projetos do grande arquiteto e designer dinamarquês datam dos anos 1950, 1960 e 1970 e continuam sendo produzidos até hoje – e uma vida que se encerrou aos 70 anos de idade. A perenidade dos objetos contrasta com a evidência da finitude humana. Jacobsen ressurge numa tela de vídeo e numa projeção sobre tecido que lembra quão volátil é a vida. Já seus objetos parecem desafiar o tempo.
Se essa experiência contradiz boa parte do que vivemos na atualidade é porque, nas últimas décadas, temos assistido a um prolongamento da vida humana em patamares inéditos. Hoje a convivência de quatro gerações numa família está se tornando trivial. Enquanto isso, móveis e objetos são substituídos com uma rapidez impressionante, a ponto de as grandes exposições de design incorporarem a moda como parte de sua grande esfera. Fashion design, furniture design são atividades quase equivalentes na sazonalidade, e ninguém se espanta ao ouvir de um fabricante de móveis para cozinha de Bento Gonçalves que é obrigado a trocar os modelos das portas a cada oito meses (1)!
Uma das perguntas que ficam em nossa cabeça ao visitar a exposição de Jacobsen é por que aqueles objetos duraram. É sempre um mistério entender porque algumas coisas permanecem e outras caem rapidamente no esquecimento. Esse mistério é geralmente explicado por outro, ainda maior: a genialidade do autor.
Sem querer diminuir a inteligência e a sensibilidade de Jacobsen, gostaria de propor três tentativas de explicação de por que seus móveis e objetos são tão conhecidos, nos soam contemporâneos e têm tido essa longa duração.
A primeira delas é, sem dúvida, o contexto de sua existência, a Europa do Norte e a produção racionalista. O racionalismo que vinha conquistando muitos adeptos em boa parte da Europa Ocidental nas primeiras décadas do século XX encontrou, na Europa do Norte, um ambiente muito propício para se constituir em estética largamente aceita.
Enquanto a Alemanha, a Itália, a Inglaterra, a Holanda e outros países industrializados sofreram graves consequências da Segunda Guerra Mundial, reorientando, em muitos casos, a produção para o esforço de guerra, a Europa do Norte preservou suas indústrias e não sofreu uma quebra de continuidade entre o que se fazia e pensava antes da guerra e depois dela. (2)
As lutas sindicais das primeiras décadas do século contribuíram para a formação dos chamados Estados de Bem-Estar Social, com políticas distributivas de renda, que possibilitaram o acesso das populações a bens de consumo de massa, produzidos em alta escala.
O Estado de Bem-Estar Social na Europa do Norte também foi responsável por políticas que alteraram relações familiares, anti-autoritárias e anti-machistas, antecipando muitos comportamentos que seriam objeto de reivindicações nos anos 1970.
A legislação familiar sueca sempre serviu de modelo para as lutas feministas, por ferir sensivelmente a lógica machista, garantindo uma série de direitos às mulheres e oferecendo a possibilidade de que homens assumissem tarefas ditas femininas. Ou seja, muito do que se praticou na Europa do Norte viria a ser considerado uma aspiração da modernidade não realizada de outros países a partir dos protestos de 1968.
Enquanto os racionalistas alemães, por exemplo, tiveram de se exilar, muitos deles nos Estados Unidos da América, onde sua produção ganhou novos significados e contornos, mas que simplificadamente, podem ser descritos como aliados das grandes corporações, na Europa do Norte se desenvolviam fortemente iniciativas de popularização do design racionalista.
Bons exemplos dessa postura são os brinquedos dinamarqueses Lego, de lógica construtivista e que se tornaram grandes sucessos mundiais de vendas e a cadeia de lojas sueca (hoje internacional) Ikea, cuja missão inicial foi levar o design racionalista ao grande público. O racionalismo implicava no mínimo uso de materiais, diretriz seguida por Marcel Breuer, Mies van der Rohe e outros modernistas na produção do mobiliário que, no entanto, tornou-se, nos anos 1970, a primeira estratégia do design ecologicamente orientado (3).
Assim, o que entendemos por design ambiental, na sua faceta de uso mínimo da matéria-prima na construção de utensílios e móveis já estava presente há muito tempo no design racionalista, inclusive dos alemães. Mas ganhou forte expressão na Europa do Norte (4). No campo das preocupações ambientais, a Europa do Norte se destacou muitas vezes na adoção de práticas que, mais tarde, foram endossadas pela Comunidade Europeia. O design praticado por Jacobsen (ou para traçar um percurso de três gerações – de Alvar Aalto passando por Jacobsen a Antii Nurmesniemi) serviu-se das lições do ‘menos é mais’, misturou poucos materiais e namorou as ditas formas orgânicas (a poltrona Egg, por exemplo), antecipando, de fato, alguns vieses que viriam a se tornar correntes na prática do design ambientalmente correto da Europa Ocidental muitos anos mais tarde. O design para um público amplo de Jacobsen foi uma prévia do que seria em parte o design ambiental propugnado de várias maneiras a partir dos anos 1990.
A segunda explicação para a contemporaneidade e popularidade dos produtos de Jacobsen estaria, certamente, na sua vasta iconografia. Jacobsen preparava uma grande exposição de seus móveis e objetos quando faleceu. Ou seja, ele tinha em mente que design se faz não apenas no desenho do objeto, mas no chamado sistema design que os italianos passaram a dominar tão bem a partir dos anos 1960. Exposições, debates, mostras, seminários, fatos culturais vinculados ao design de produtos fazem que uma peça ganhe presença e notoriedade. Embora não conheça um estudo iconográfico da cadeira Ant, por exemplo, parece-me fácil ver que ela deve ser um dos objetos mais reproduzidos em fotografias em várias partes do mundo.
Em 1963, quando estourou na Inglaterra o caso Profumo (5), a mulher tida como leit-motiv do escândalo, a bela Christine Keeler, foi fotografada nua e quase abraçada a uma cópia da cadeira série 7, de forma que o encosto, em vez de amparar-lhe as costas, escondia parte de seu corpo, condição para que a foto circulasse na imprensa de todo o mundo. Esse foi um meio de veiculação da cadeira que, sem dúvida, remeteu-a a um universo de modernidade.
Na época do centenário de Jacobsen, um anúncio de móveis de cozinha brasileiros reproduzia dois exemplares da cadeira série 7 pintadas de verde e, seguramente, conotando certa modernidade e universalidade. Ou seja, a fotografia e também o cinema, seguramente, contribuíram para a fama dos produtos Arne Jacobsen (6).
A terceira explicação de por que o design de Jacobsen nos é tão familiar e contemporâneo se apóia nas cópias e redesenhos de seus produtos. A cadeira Ant e a série 7 devem estar entre os produtos mais redesenhados e/ou copiados do mundo. Quem não pode comprar uma Ant legítima, fabricada pela Fritz Hansen e vendida na Europa a mais de 200 euros e no Brasil sabe-se lá por quanto, se contenta com um redesenho cuja concha é de plástico, extremamente bem resolvida e acabada, prática e fácil de limpar. Pode-se sentir, aqui, que o desenvolvimento de materiais plásticos, migrando da indústria automobilística para aquela de bens de consumo duráveis, entre eles os móveis, ampliou as possibilidades do desenho e da produção em massa. Enfim, as cópias e os redesenhos são também fatores de divulgação dos produtos (7).
Enfim, uma palavrinha contrária a uma certa mistificação do design nórdico como expressão singularíssima. No livro Chronologie du Design, o historiador Stephane Laurent diz que “Arne Jacobsen se situa entre a influência de Charles Eames ou Carlo Molino...largamente inspirado nas pesquisas de Aalto” e é ...“...síntese das tradições regionais e do ideal vanguardista do período entre guerras”;
Vale a pena traçar aqui certas relações entre designers de várias partes do mundo, apenas para alertar que o uso de atributos exclusivos de nacionalidades ou regionalidades como fatores de explicação do design do século XX e também do XXI não funcionam muito bem. Aalto usou couro trançado, assim como o sueco Bruno Matthson e tantos outros, inclusive o nosso contemporâneo Carlos Motta. Carlo Molino é o italiano polivalente que muitos dizem ter sido copiado por Zanine Caldas nos móveis Z. Assim como se diz que outro nórdico, o finlandês que amadureceu uma geração depois de Jacobsen, Antti Nurmesniemi, teve como mestres Marco Zanuso e Roberto Sambonet.Não nos esqueçamos que Sambonet lecionou no Instituto de Are Contemporânea, o IAC de São Paulo nos anos 1950 e que foi mestre de desenho de uma geração de designers brasileiros....
(1) Frederic Jameson fala da “urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades (de roupas a aviões) com um ritmo de turn-over cada vez maior...” JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo A lógica cultural do capitalismo tardio, Editora Atica, São Paulo, 2000.
(2) Embora a Dinamarca tenha sido invadida pela Alemanha, obrigando Jacobsen a exilar-se na Suécia. Também a fábrica de equipamentos de som Bang & Olufsen foi destruída pelos alemães, pois seus diretores forneciam equipamentos e serviços de rádio para a Resistência.
(3) Não é à toa, aliás, que talvez o primeiro pensador do design ambiental, Victor Papanek, tenha elogiado tanto a rede Ikea.
(4) Dizer que o design escandinavo e nórdico optou pela madeira, substituindo os tubos de aço e, assim, ganhou calor humano em contraposição ao design racionalista alemão e francês é ignorar a direção de arte de Marcel Breuer na empresa inglesa Isokon dos anos 1930, cujos móveis de compensado podem ser confundidos com “dinamarqueses”.
(5) O alto funcionário do governo britânico, John Profumo envolveu-se com Christine Keeler, moça de duvidosa reputação, segundo os jornais de época, e que teria tido também um caso amoroso com um diplomata soviético. Prato cheio da imprensa da época, o caso misturava todos elementos que, isolados, já rendiam matérias de furor - a Guerra Fria, sexo e a aristocracia britânica -, mas que unidos conseguiram se manter no noticiário mundial durante um bom tempo.
(6) Os talheres minimais projetados por Jacobsen e produzidos pela Jensen foram usados no filme 2001 Uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick. O prognóstico que se fazia do futuro na época da produção do filme (1967) remetia ao universo estabelecido pelo modernismo, em que a comida tenderia à simplificação. Curioso comparar o projeto gastronômico de Jacobsen com a quantidade de utensílios e inutilidades que povoam hoje o universo dos amantes da chamada boa mesa.
(7) Quando apresentei essas notas no debate realizado no encerramento da exposição, travou-se uma discussão que, na maioria das falas, visava combater eticamente a cópia. O assunto é amplo e controverso. Gostaria de dizer apenas que a palavra cópia é usada hoje para designar diversas atitudes no campo dos objetos industriais, algumas delas francamente condenáveis, mas outras que fazem parte do universo industrial de forma visceral – como a migração de soluções de um setor produtivo para outro. Aliás, uma informação relatada durante o debate por diretores da Forma dizia que Fritz Hansen começou a receber royalties do Japão sem ter vendido nada para lá – fora copiado!
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