Ano: IV Número: 43
ISSN: 1983-005X
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Insensatas produções acadêmicas
Marcello Montore

Livro: Inimigos da Esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição Autor(a): Lindsay Waters Editora: Unesp

Postado: 22/01/2010

   

“Penso que nossa mania atual de publicações é um grande insulto à dignidade do pensamento, aquela dignidade sobre a qual está baseada a autoridade que a sociedade possa nos conferir. O pensamento profundo não se anuncia sempre aos berros, mas, às vezes, em sussurros.”

Lindsay Waters

 

Estratégias para a avaliação de produtividade acadêmica, baseadas meramente em números e cifras, geram uma quantidade crescente de publicações vazias de conteúdo e que não encontram leitores. Essa é a questão chave abordada por Lindsay Waters em Inimigos da Esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição.

Waters parece saber muito bem do que está tratando, já que fala de dentro do sistema, editor que é da prestigiosa Harvard University Press. Não bastasse essa credencial, ele apresenta argumentos contundentes para acreditarmos que estamos vivendo um período no qual a quantidade de publicações conta mais que sua qualidade.

Foi a paixão incontida pelos livros e a tentativa de “exortar os acadêmicos a tomar medidas para preservar e proteger a independência de suas atividades, como escrever livros e artigos”,  que o motivou a escrever esse ensaio, transformado em livro e publicado em 2006 pela Editora da UNESP. Esta resenha corre o risco de parecer atrasada e fora de momento. Porém a atualidade do assunto justifica este comentário.

Inimigos da Esperança é um protesto e uma denúncia de como, em última instância, o ‘suposto’ livre mercado e a implantação no âmbito da universidade de processos administrativos à semelhança das corporações – e cabe dizer que ele se refere sempre à situação norte-americana – tem tido um efeito deletério sobre a produção acadêmica de idéias inovadoras. Existe a falácia de que os ditames do mercado alocam com eficiência seus recursos, quando “o que eles realmente fazem é produzir as pressões que aumentam a produtividade”, conforme afirma o prêmio Nobel em economia Joseph Stiglitz, um dos diversos autores citados por Waters.

Na primeira parte do livro, Os Bárbaros às Nossas Portas, o editor de Harvard denuncia esse sistema que introduz, no âmbito da academia, critérios oriundos da ideologia neoliberal o que, entre outras coisas, a coloca “marchando no ritmo da produção fordista”. Nesse sentido, a inovação é sufocada como parte dessa ideologia para acabar com todo suposto desperdício da sociedade. Na segunda parte, Do Cinismo à Iconoclastia: a promoção do status quo, ele alerta para a enganosa impressão de progresso que se manifesta na forma de um aumento no número de publicações. Em uma analogia precisa e provocante ele diz que o “estudioso típico se parece cada vez mais com a figura retratada por Charlie Chaplin em seu ‘Tempos Modernos’, trabalhando louca e insensatamente para produzir” (p.51). Nessa parte, Waters aponta ainda as consequências nefastas do cinismo, daquilo que ele denomina guerra de gerações, e da censura inescrupulosamente eufemizada para a manutenção de posições.

Ainda que o texto se refira aos problemas norte-americanos, é preciso nos perguntar se a situação no Brasil é muito diferente. Professores universitários daqui se deparam com pressões bastante similares – basta ver a corrida por pontuações e por “notas”, que podem abrir ou fechar portas para financiamentos e benesses das agências de fomento. Ironicamente, essa corrida por “notas” é extamente o que professores criticam em seus estudantes.

Para Waters, a questão de financiamentos governamentais para pesquisas leva as universidades a construir uma burocracia proliferante, própria para lidar com os papeis produzidos pelas agências. O número de publicações (livros, artigos etc.) tornou-se o padrão de medida da produção acadêmica. E isso acontece, inclusive, porque segundo Waters houve uma “terceirização” do julgamento de qualidade: se determinado artigo ou livro está publicado, deve ter passado pelo crivo de uma editora e isso, então, já seria suficiente para dizer que não é preciso que ninguém mais o leia e avalie sua qualidade para que ele passe a contar pontos. Esse é um sistema perverso que vincula a esses números promoções e estabilidade nos empregos dentro das universidades. Essas exigências acabam produzindo, segundo o autor, uma quantidade muito maior de textos sem sentido e que não encontram receptores.

Ao narrar a situação a partir de seu ponto de vista privilegiado, Waters não apenas desnuda o problema, mas apresenta números alarmantes. Ele afirma que há 30 anos o número médio de exemplares vendidos de um título acadêmico era 1250 e hoje não passa de 275!

A proliferação das editoras de revistas especializadas – cuja assinatura pode chegar a valores que qualquer um de nós consideraria assombroso – é questão que ele aborda de passagem, mas que outro amante dos livros, Robert Darnton, aprofunda em “A Questão dos Livros”[1]. Mas, apenas para dar uma ideia do grau de influência e consequência dessa distorção dentro das bibliotecas, em 1980, 65 por cento do orçamento para aquisições era destinado a livros e 35 por cento a revistas. Em 2006 apenas 20 por cento foram destinados à compra de livros!

O quadro descrito por Waters é bastante sombrio, porém ele acredita que é possível reverter essa situação. E por falar em quadros, em oposição à ânsia publicadora da academia, ele lembra que “Picasso escondeu seu Demoiselles d’Avignon por seis anos depois de o ter pintado, não desejando enfrentar o opróbrio. Temos de saber quando é preciso esconder as coisas, e quando é tempo de mostrá-las. Ter a noção do momento certo é tudo”.

Por último, vale uma menção especial para capa (infelizmente sem crédito para o autor) que apresenta uma bela foto de livros empilhados, dos quais apenas se vê a capa dura e as folhas do miolo, nada mais. A imagem, muito bem escolhida, parece aludir ao vazio ou, se quisermos, à escassez de conteúdo das publicações acadêmicas atuais.

_________________

[1] DARNTON, Robert. A questão dos livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

 

Marcello Montore, sócio da Vista Design, Comunicação e Editora, é designer, professor da ESPM e editor da AgitProp.

 


Comentários

Beto Lima
22/12/2010

Não é a toa que muitas dissertações e artigos acabam virando comida de cupim, o que devem provocar muita indigestão nos mesmos :)

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