Ano: I Número: 6
ISSN: 1983-005X
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Uma história escrita a golpes de machado
Enzo Mari, 2001
Tradutor(a):Ethel Leon

Revisão: Julio Katinsky, Rita Guimarães S. Gonçalves e Roseli Martins.

Obviamente, o homem projeta desde suas origens e as descrições dos antigos projetos, quando suficientemente documentadas, são comumente aceitas.

Não é assim com a história dos últimos duzentos anos. Esta diferença se dá não apenas por uma perspectiva histórica diversa, mas, sobretudo, porque entre o fim do século XVIII e o início do século XIX uma série de eventos, estritamente coligados, dão a marca à ideologia de um novo e contraditório modo de projetar, o design (1).

Tais eventos são, pela ordem:

- a Revolução Francesa

- a Revolução Industrial

- o nascimento do socialismo

- a emergência da idéia do design

Os primeiros três, independentemente do tipo de credo religioso ou político de quem lê estas notas, devem ser consideradas fundamentais para a história do homem, no sentido que mudam radicalmente a concepção do mundo; o quarto...

Tentemos descrevê-los sumariamente.

1.Três eventos

A Revolução Francesa é o ponto de chegada de um lento processo de transformação que tem sua origem no nascimento da burguesia medieval e na conseqüente revolução galileana. Opõe-se, pela primeira vez, à idéia de um mundo estático, imperscrutável e imutável. Até então, mesmo que miseráveis, as condições do homem comum deveriam ser aceitas. Aliás, eram a provação necessária para poder entrar em um Paraíso fora da Terra (local do perfeito conhecimento, na ausência de qualquer miséria, em perfeita igualdade): o mundo era dado; não podia ser transformado.

A Declaração dos Direitos do Homem confere igualdade e legitima a aspiração de melhoria da qualidade da vida. O paradigma das ciências da natureza fornece os instrumentos para o conhecimento coletivo.

Emerge a nova ideologia: o mundo pode ser transformado e o Paraíso pode ser realizado na Terra (local do conhecimento perfeito, na ausência de qualquer miséria, em perfeita igualdade.)

Depois de duzentos anos, o ideal de igualdade permanece apenas nominal. Entretanto, continua a ser intensamente desejado por todos em nível planetário, apesar das diferenças de raça, religião, instrução e o que conta mais aqui – ordem social e sistema político. Está fora de consideração, portanto, levantar a hipótese de que tal ideal possa ser discutível. Não pode senão derivar dele uma influência segura e forte sobre o significado de "projeto".

Mas voltemos ao momento da decapitação do Rei Luiz. Simbolicamente constituía a igualdade definitiva. Cada deserdado (ou seja, quase todos) a interpretava "obviamente", no sentido de pretender também para si os objetos possuídos pelo rei. Estas posses eram reivindicadas por duas razões. A primeira, explícita, era a necessidade material de um certo objeto, por exemplo, uma cadeira. A segunda, implícita, e talvez inconsciente, era que a cadeira correspondesse formalmente ao trono do rei: "Tornamo-nos iguais, então também eu tornei-me rei". Teria sido necessário ouvir (ao menos seria necessário ouvir hoje): "Tornamo-nos iguais e os tronos não são mais necessários" (mas talvez se continue a pensar como então porque a igualdade não foi ainda realizada e projetar parece não ter outro objetivo senão responder às razões inconscientes).

Falemos agora da indústria que se desenvolve principalmente em resposta àquela necessidade de igualdade ratificada pela Revolução Francesa (2). Antes de então, o que servia ao rei como a seus súditos era realizado por meio de uma produção do tipo artesanal, em pequenas oficinas especializadas, com pouquíssimos integrantes e com um saber técnico-econômico transmitido e pai para filho (ou de mestre para aprendiz). As pequenas dimensões da cidade (com exceção das raras capitais), a dificuldade dos transportes e, em particular, o escasso número de objetos realizáveis (aqueles de representação para a nobreza e os instrumentos essenciais para o trabalho dos camponeses e dos próprios artesãos) faziam que nosso artesão se devesse ocupar verdadeiramente de tudo (o termo "verdadeiramente" não é excessivo).

Vamos exemplificar: um camponês precisava de uma foice e discutia com o artífice suas necessidades (terreno em declive em vez de plano, caules fibrosos em vez de tenros, adaptado para braços infantis e não para adultos...), como e quando poderia pagar-lhe (em espécie ou com produtos, logo ou no ano seguinte...). O artífice, depois de ter adaptado (cada vez de modo diverso) o projeto ideal da foice àquela em questão, e depois de ter avaliado e discutido como trocar parte do feno (que no ano anterior recebera em pagamento) por carvão de madeira para poder fundir o ferro necessário, deveria procurá-lo (uma velha espada poderia servir ou o aro de rodas gasto na rua). Precisava não somente procurar estes ou outros tipos de sucata, mas sabê-los fundir para realizar a barra que posteriormente seria recozida e forjada e temperada e afiada... Para não falar do cabo que deveria ser discutido com o carpinteiro, da fabricação do novo fole de couro para o forno, do adestramento do jovem aprendiz recém-chegado...todo este trabalho fatigante era, em certo sentido, feliz por sua variedade e pelas margens de experimentação e de participação no contexto de um saber abrangente (a duração do aprendizado podia ser superior a dez anos, era semelhante, porém mais concreta do que a formação de um designer atual). Mas resultava extremamente dispersivo se avaliado com o olho da nossa eficiência (da qual em pouco saberemos avaliar o preço). Derivava daí que o custo de uma simples foice era altíssimo, talvez superior ao preço que um camponês de hoje deve pagar por uma moderna ceifadora elétrica...

Se o custo era alto para um objeto mínimo como uma foice, podemos imaginar o custo de um trono... Nosso artesão deveria dialogar com o rei, com seus ministros, mas também com seus filósofos e poetas, e interpretar os desenhos de seus artistas. Deveria cumprir longas viagens para estudar o trono dos faraós ou ainda para extrair de alguém os segredos de fabricação daquela pasta vítrea específica...Depois eram necessários a madeira pau-rosa, o marfim, para não falar das pedras e do ouro...O custo era imenso. Um trono e alguns outros ouropéis implicavam a fome de uma inteira nação ou a conquista de um continente inteiro.

Mas, morto o rei, todos querem se não um verdadeiro trono, ao menos algo que se assemelhe a ele. Um trono, se fabricado com os modos artesanais descritos, ainda se realizado em papier maché, é ainda muito caro para nossos citoyens, agora iguais, mas sempre sem dinheiro. Se era necessário ser eficiente e economizar, era necessário eliminar o desperdício da dispersão projetual, a repetir-se, a cada vez, para cada objeto singular produzido (como descrito no exemplo da foice). O custo de um projeto não podia senão permanecer alto, mas um único projeto pode definir tudo que é necessário para a fabricação de muitíssimos objetos exatamente iguais. De tal modo, o altíssimo custo do projeto pode ser subdividido pelo grande número de objetos produzidos e, assim, incidir minimamente sobre o preço de cada objeto realizado. Não só: um pequeníssimo número de artesãos continuaria a possuir o custoso saber técnico (dez anos de aprendizado) necessário para a realização do projeto (3). Todos os outros, transformados em "operários", cumpririam para sempre uma só operação, entre todas aquelas necessárias para a produção de um objeto (com custo irrisório de adestramento), portanto repetível muito rapidamente sem as dispersões do pensar...e fácil de controlar...

Não se deve esquecer que esse baixo custo de produção (necessário para o escasso poder aquisitivo dos citoyens) deveria ser ulteriormente reduzido para garantir margens de ganho "interessantes" para quem fornece os capitais, para os fabricantes e para os vendedores. Assim, a fragmentação do trabalho (sua desumanização) deveria ser ulteriormente incrementada e, pelos mesmos motivos, a compensação para os operários ser a mais baixa possível...

Esta é a Revolução Industrial (4) que, por sua vez, gera outros monstros (5). Além da perda do próprio saber de produção (do qual se falou), a conseqüente degradação (6) da vida familiar e social em conurbações estritamente funcionais por razões da fábrica, isto é, habitações todas iguais na restrição, sem qualquer forma de crescimento autônomo (entendida como desperdício...) e a emergência da "mercadoria", como protagonista e árbitra das relações econômico-sociais. Contemporaneamente à produção de objetos essenciais, incrementa-se em nível exponencial a produção de objetos com função simbólica prevalentemente antitéticos com relação ao conceito de igualdade, os tronos de papier maché acima, ou seja, a "mercadoria".

Trata-se de objetos cuja tipologia, ou independentemente desta, cuja conotação formal leva-os a pretender aqueles sinais de condições sociais "outras". Mas qualquer condição "outra" exclui, por si própria, o ideal de igualdade. Em resposta a isso, também por formas de alienação além daquelas do trabalho, é a idéia do socialismo, que cresce e toma força. Contemporaneamente, pelos mesmos motivos, nasce a idéia do bom projeto.

2. A idéia do "bom projeto"

Quem formula ou compartilha a idéia do bom projeto não pode ser senão a elite (7) que, justamente pelo fato de não ser completamente sujeita às formas de fragmentação, tem meios de lê-las de maneira ampla. Por um lado, reconhece na forma degradada da cidade a degradação do trabalho e da qualidade de vida, e sonha com um futuro onde cada homem, recuperadas e enriquecidas as próprias potencialidades do trabalho artesanal, viva a utopia de uma relação paradisíaca com a natureza. Por outro, reconhece que a forma dos novos objetos imita superficialmente cada estilo do passado, seja da civilização ocidental, seja de outras exóticas ou totalmente desaparecidas, na redundância de uma contínua obsolescência e reapresentação (8); é também consciente de que a qualidade formal depende muito da economia de emprego dos instrumentos utilizados para realizá-la e constata que os novos instrumentos se restringem à imitação grosseira dos arcaicos (isto é, perdem-se todas aquelas modulações vitais do signo manual) (9); substancialmente pensa que os novos instrumentos, criados para realizar o "absoluto" da igualdade, devem realizar formas "absolutas", não facilmente obsolescentes, porque, se o fossem, também a igualdade o seria. Como se pode constatar, a idéia do "bom projeto" corresponde à superestrutura do socialismo (10).

Sucessivamente, no momento em que se postula que alguém possa fornecer profissionalmente um serviço, precisamente, de bom projeto, começa a ser empregado o termo inglês design no lugar da palavra correspondente italiana, disegno (usada comumente no primeiro Renascimento na acepção de "projeto", justamente para deixar subentendidas as razões das sua origens: as razões da primeira Revolução Industrial na Inglaterra.

Portanto, a matriz ideológica do design pressupõe contribuir para resolver as contradições implícitas nas relações de produção próprias da cultura industrial (11). Mas, como sabemos, a luta dos "operários e intelectuais", conduzida de diversas formas, no período de duzentos anos, para melhorar ou piorar estas condições, resultou substancialmente impotente, não obstante a paixão de milhões de pessoas no contexto de notáveis elaborações culturais e de várias e diversificadas gestões político-administrativas (12). Mas o design, no momento em que reivindica ser o instrumento de racionalização da indústria não pode senão tornar-se – como elemento importante – seu estandarte. Vejamos como.

A cultura das mercadorias impõe a fabricação somente daquilo que pode ser vendido, independentemente de qualquer outra necessidade. As razões do sucesso comercial de um produto, dada a complexíssima interrelação entre necessidades materiais, necessidades simbólicas gerais e necessidades simbólicas específicas, em um regime de concorrência exasperada, fazem, de fato, que cada empreendedor (o único artesão concretamente sobrevivente, junto a um segundo, subordinado a ele: o projetista) se comporte bem mais intuitivamente que racionalmente (se a racionalidade fosse praticável, teríamos milhares de empreendedores...): ou tem êxito no seu intento ou morre enquanto empreendedor. Cada indústria, não importa qual seja sua dimensão ou estrutura organizativa, não pode prescindir do domínio da intuição, que, como tal é análogo àquele expresso por um artista (a um artista não se pode ensinar nada). Só o discernimento posterior permite falar em racionalização das razões que regem os empreendimentos (a menos que não sejam totalmente acessórias).

Quem teoriza a "profissão" do bom projeto pretende ensinar a racionalidade. Mas o bom projeto é a materialização do socialismo, que é uma forma da utopia... Ao contrário disso, o nosso empreendedor, que, como indivíduo poderia ser portador de tal intencionalidade, tem um único problema: produzir aquilo que concretamente possa ser vendido. Aquilo que deveria ser vendido, mas não pode, pertence ao domínio da utopia e da arte, não certamente àquele de uma profissão.

Se o designer profissional pode influir, ao menos em parte, na funcionalidade daquilo que deve ser produzido, não tem voz, do ponto de vista material (embora quisesse encarregar-se) quanto à qualidade das relações de produção que, ao contrário, é o verdadeiro objetivo do bom projeto. Podemos então dizer que o nosso designer não tem nada a ensinar à indústria.

Aquilo que consegue realizar, se for permeado pelos valores da igualdade, entenda-se, é apenas a forma alegórica de tal utopia. Ao contrário, ele não é senão um dos integrantes da cadeia de montagem com um papel que talvez intua, mas do qual, quase sempre, não é consciente racionalmente (13). Tal papel pode ser avaliado do ponto de vista de um projeto específico, ou ainda do ponto de vista geral, ou seja, que compreenda todos os projetos e de todos os projetistas.

Do ponto de vista de um projeto específico, o designer é chamado enquanto portador de um sinal prévio – aquele de sua poética – considerado pertinente para o mercado ao qual aquele produto é destinado. Não serve para, não é autorizado a definir a essência de um objeto (a sua forma própria). Serve a conotá-lo de formas homologadas reconhecíveis enquanto subjetivamente reiterativas (uma mercadoria implica sempre uma etiqueta).

A soma destas "poéticas" singulares , constitui, de um ponto de vista geral, a poética abrangente do design, ainda que se queira articulá-la nas duas intencionalidades historicamente verificáveis: a forma que deriva das razões da mercadoria e a forma que deriva dos valores da igualdade. Sobre a primeira não vale a pena insistir, senão para dizer que a sua norma deva ser a da redundância (no sentido que de tudo um pouco e seu contrário são legítimos, isto é, superficialidade, portanto ignorância: o domínio da mercadoria implica a ignorância dos citoyens).

A segunda poética, aquela da forma da igualdade, do ponto de vista dos êxitos materiais (os objetos realizados) não pode senão pertencer também ela ao universo da mercadoria. Exatamente por sua tensão "utopizante" é incumbida, ao menos nos níveis elitistas, de ser o estandarte da indústria.

Nesse ponto, para não haver equívoco, é necessário articular a produção industrial de bens de consumo (14) em dois grandes setores. Um, prevalente no plano quantitativo, não sente a necessidade de evidenciar as eventuais qualidades projetuais dos produtos de consumo de massa, senão em formas toscas. O outro, minoritário, voltado a compradores mais preparados culturalmente ou talvez (a maioria de tal grupo) desejosos por parecê-lo, tem necessidade de ressaltar uma suposta qualidade projetual (cujos indícios se reencontram depois nas formas primárias do primeiro setor).

A tensão "utopizante" ou, de qualquer forma, a qualidade da elaboração formal (quando raramente acontece), mesmo se somente intuídas, constituem, com o apoio dos museus e das numerosas publicações, os elementos de um grande afresco, de qualquer modo análogo ao da Capela Sistina.

Se é evidente que este último exemplo ilustre o grande valor "além do imediato", que valor pretende ilustrar o afresco do design? Não há dúvida, o valor da indústria... Não é mais correto dizer que a indústria é só um instrumento e não um valor?

A escola de design sempre viveu dolorosamente, desde suas origens, tais contradições.

As escolas, em geral, são voltadas, do ponto de vista institucional (independentemente dos belos ideais de muitos professores), a dois tipos de estudantes: a) àqueles que pertencem ou que ambicionam pertencer à classe dirigente (saber é poder) e b) àqueles que almejam pertencer à classe dos executores.

As escolas do primeiro tipo a) implicam a aquisição de saberes de tipo humanístico, isto é, globalizante (qualidade da língua, qualidade da forma, história, filosofia e, portanto, implicitamente antropologia e sociologia). Carecem, no entanto, de saberes técnicos e manuais. Em conseqüência, conquanto se adquira um saber abrangente, muitas vezes tal saber corre o risco de revelar-se a-histórico, porque abstraído do devir do real, do qual a atividade prática é garantia.

As escolas de tipo b) excluem a aquisição de todo saber humanístico, isto é, globalizante, (sua duração é, de todo modo, menor). Alcança-se uma certa instrumentalização para a atividade prática em ausência de reflexão crítica.

O ensino do design foi e é experimentado, de tempos em tempos, em ambos os tipos de escolas, com uma forte prevalência do tipo b) (a indústria tem necessidade de "operários" não-pensantes, que o digam os arautos da quarta revolução industrial). Derivou e deriva daí que os defeitos do primeiro e do segundo tipo de escola são agravados pelas seguintes contradições:

- a tensão "utopizante" do socialismo pretende tornar-se uma profissão;

- a pretensão de racionalidade científica diante da utopia de poder reduzir a indústria a instrumento de trabalho.

De outra forma, o "bom projeto" por suas implicações ideais, só pode ser realizado intuitivamente com a forma da alegoria, própria da atividade artística, e não pretender constituir-se como atividade totalmente racional (como será necessário para qualificar uma profissão).

Pode-se, então, entender como o ensinamento do design, além da paixão de professores ou alunos singulares, contribua para manter aquela redundância tão útil ao domínio da mercadoria.

Tudo o que foi dito até agora não deve aparecer ditado unicamente por excesso de pessimismo. Muitas argumentações são construídas "a golpe de machado" para fazer ressaltar aqueles pontos essenciais que o excesso de redundância pulveriza. Surge a suspeita de que justamente a contradição insanável entre utopia e realidade material seja a mola que, em nível consciente, impeça que muitos "teóricos" ou também "práticos" de comprovada honestidade intelectual aceitem "estoicamente" tal dicotomia. Se esta referência é imediata para os defensores do "movimento moderno", resulta bem mais apropriada para seus contestadores. Afirmar que a utopia morreu e, em seu lugar, dar vazão desenfreadamente a uma criatividade formal sem regras (no sentido de ideais) não é senão confirmar o domínio da mercadoria; dizer que o projeto não pode eludir o domínio da mercadoria equivale dizer que, já que cada homem deve morrer, tanto vale não projetar ou limitar-se a projetar objetos fúnebres.

Retomo aqueles pontos que me parecem essenciais.

A indústria, assim como está configurada, não é um valor, é apenas um instrumento por meio do qual se realiza o domínio da mercadoria. Esta não é entendida como a soma de manufaturas sempre negativas: uma parte se pode entender positivamente. A negatividade da mercadoria deriva de ter sido desenvolvida bem além das necessidades, com efeitos destrutivos não só para os recursos humanos ou materiais do planeta, mas também para a capacidade de pensar autonomamente de quem (inconscientemente?) goza dos frutos de tal rapina.

A tudo isso se opõe, desde seu nascimento, o ideal de igualdade e de transformação. O design, ou melhor, o bom projeto, é sua alegoria. Igualdade, transformação, design são fortemente permeados de utopia.

Utopia é o lugar feliz que não existe (eventuais improváveis avanços o colocarão sempre adiante). Enquanto tal, não pode nunca ser realizada. Em conseqüência: primeiro, um projeto permeado de utopia não pode levar a realizações concretas ou, de qualquer modo, quantitativamente incidentes sobre comportamentos de massa (a "quantidade", seja pela ótica do socialismo, seja por aquela do capital, é a "qualidade"); segundo, que a tensão para a utopia corresponda à dignidade social e, como tal, não possa ser interpretada como guia ético para enfrentar as contradições do real.

Dadas tais premissas, o designer (qualquer que seja a tipologia específica da intervenção) deve necessariamente desenvolver seu próprio trabalho com a consciência dos dois mundos : o da utopia e o do real. O mundo do real só pode ser vivido declarando as razões da utopia (15) e, à luz dela, acordando cada vez com a contraparte aquilo que, mesmo que mínimo, é possível negar entre as superfetações-mercadoria do produto a realizar e dos comportamentos que o favoreçam enquanto tal. São justamente esses comportamentos, em parte induzidos e, em parte, biologicamente arquetípicos, que determinam a necessidade dos ouropéis da mercadoria. Daí resulta que hoje a verdadeira qualidade de um projeto deveria ser reconhecível, de modo eficaz, no contraste de tais comportamentos.

O projetista está – com o empreendedor , se "iluminado" – no olho do furacão da mercadoria.

Isso lhe permite, muito mais que a outros, avizinhar-se da compreensão daquilo que concretamente condiciona a nossa modernidade (para quem queira, também "pós"). Transmitir de modo compreensível a consciência de tais contradições é hoje, talvez, o primeiro objetivo do bom projeto.

Antes de concluir este capítulo, aproximadamente sociológico, podem ser antecipadas algumas reflexões sobre a importância das qualidades formais de um artefato. Um produto de alta qualidade formal resiste majoritariamente à obsolescência expressiva: em formas, mesmo que mínimas, a necessidade da renovação se reduz.

E ainda, se o advento da fragmentação do trabalho expropriou cada homem – salvo, mesmo que parcialmente, o projetista – da sua potencialidade de expressar um projeto a fim de permitir a todos a posse de objetos, resulta que este privilégio não pode ser pago senão com o máximo de qualidade.

Esta última reflexão propõe uma pergunta. Hoje, ao menos no mundo ocidental, as necessidades de sobrevivência brutal estão superadas, mas não as condições de alienação: aceita-se consumir a própria vida a fim de possuir cada vez mais objetos. Um objeto "bem feito" melhora ou piora este estado de coisas? Sou da opinião que um objeto bem feito influi positivamente, senão de outro modo, ao menos como modelo de referência. Trata-se de compreender que coisa se entende por "bem feito". Procuraremos falar disso nos próximos capítulos.

 

 1) As "poéticas" mais recentes do design pretendem ter-se liberado da ideologia arquetípica e refutam o próprio conceito de ideologia em favor de uma "livre" experimentação. Caso se façam ressurgir as motivações materiais originais, pode-se compreender como, negando-as, as atuais "novidades" correspondem a uma ideologia corrente de valor oposto.

2) Estão certamente presentes na Antiguidade formas de organização do trabalho similares a estas da indústria moderna. São, no entanto, prevalentemente destinados para necessidades específicas do Estado, como por exemplo, a fabricação de tijolos para as fortificações.

3) Os saberes de cada indústria moderna (como, por exemplo, a Ford) se constitui a partir de um grupo de artesãos internos ou externos à fábrica, que realizam, em estrito acordo, os diversos protótipos de um automóvel, desde aqueles apenas formais àqueles inerentes às razões mecânicas; assim também as formas e as máquinas-ferramentas necessárias para a produção daquele veículo; ou ainda as provas nas ruas ou ainda o material promocional. E sejam as pessoas de macacão (com pinças e martelos), sejam as de colarinho-branco (com compassos e computadores) dão, ambas, uma mesma ou análoga contribuição de saber técnico-econômico.

4) As histórias da tecnologia, ou também do design, insistem muito no nascimento das novas formas de energia, eficientes, econômicas,fáceis de distribuir. Certamente influíram, mas, mesmo na sua ausência, o ideal explosivo de igualdade teria de qualquer forma determinado a produção de massa, seja de formas diversas e (talvez) ainda mais desastrosas.

5) Continua (e continuará) a lista de tudo que é negativo. Pode ser objetado que o sistema industrial não tem substituto enquanto suporte para a igualdade; que produz também coisas boas; que a expectativa de vida aumentou muito; que as aberrações iniciais foram o preço a pagar. É verdade. Mas é verdade também que hoje sabemos que algumas aberrações continuam a persistir, ladeadas de muitas outras, então não imagináveis. O que importa aqui é lembrar o que já foi, e deve continuar a ser, a matriz ideológica do design.

6) Como já foi dito na Introdução, mas vale a pena insistir, o saber que deriva do próprio trabalho está no centro da qualidade da vida. Tal saber nos induz a sonhar em contribuir para realizar o Paraíso da igualdade (não se compreende como, sob o pretexto do realismo, se possa sonhar que um Paraíso privado seja possível na solidão).

 7) William Morris é o representante mais notável de todos. De toda sua atividade literária, artística, empreendedorística, política, me limito a citar o romance Notícias de Lugar Nenhum, de 1891, no qual imagina uma Inglaterra governada por um regime socialista correspondente às suas idéias utópicas.

8) A característica vital da mercadoria é a rápida obsolescência que consente sua contínua reposição. Aproveito a ocasião para uma exemplificação feroz, não tão paradoxal pela sua referência à morte (nem que seja do pensar): os projéteis de uma arma de guerra que podem ser usadas somente uma vez, em continuação...

9) Por outro lado, as novas técnicas e as condições sociais modificadas deveriam promover a realização de formas coerentes e, portanto, novas.

10) Para Marx a superestrutura é o conjunto das "formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, em suma, as formas ideológicas". As forças produtivas materiais constituem a estrutura de uma sociedade, à qual se conformam, mais ou menos, as relações de produção, sua regulamentação jurídica e política, e as várias manifestações da consciência social (superestrutura): "não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas é, ao contrário, seu ser social que determina sua consciência." Na acepção comum este termo representa tudo que não tem justificativa no interior de uma obra ou de uma concessão, que constitui uma coisa inútil e exterior. Mas talvez seja correto pensar que a superestrutura seja secundária na determinação da falência de todas as experiências de gestão do socialismo. Isso é tão mais grave em relação à "cultura do bom projeto", enquanto tal cultura, entre todas, era e é, aquela mais estritamente envolvida nas relações de produção.

11) A qualidade das relações de produção implica necessariamente a qualidade das necessidades que derivam dela. A quem objeta que hoje as relações de produção não correspondem mais àquelas da primeira Revolução Industrial, àquele tipo de fragmentação brutal, que não contava com os atuais robôs, ocorre novamente precisar que a indústria não consiste de máquinas de qualquer espécie, mas da fragmentação do trabalho. Tal fragmentação permanece prevalentemente nas muitas especializações, também em nível de direção. É verdade que a complexidade implica conhecimentos diversificados, mas somente se tais conhecimentos servem para enfrentar a própria complexidade, e não para produzir auto-satisfação no próprio microcosmo.

(12) "Operários e intelectuais". Uso de propósito tal expressão da retórica ultrapassada do socialismo, diante da atual cultura que diz superada a figura do operário na fábrica hoje robotizada para reafirmar (ver nota precedente) que "operários" são todos que (independentemente da forma e da entidade do salário) continuam permanecendo em condições de fragmentação. No que toca as "gestões políticas e administrativas", não há dúvidas que elas faliram total ou parcialmente. Duplamente, se o objetivo era favorecer o bom projeto.

(13) No começo dos anos 1970, a profissão de designer tornou-se moda e assim se desenvolveu, assumindo esta mesma característica da mercadoria. O número de diplomados tornou-se muito superior àquele de projetos possíveis, diante de uma busca obsessiva de novidade formal. As tendências adolescentes à diversidade (biologicamente necessárias para sair da proteção familiar e experimentar as próprias potencialidades de sobrevivência) são o pretexto para abrir novos horizontes mercadológicos (mercadoria igual a "criativo"). A tudo isso deve-se acrescentar o questionamento generalizado, surgido no mesmo período, dos valores do socialismo, pelos bem observados erros de gestão econômica. (Que a idéia do bom projeto pertença substancialmente à utopia é provado por sua impotência, hoje, seja no mundo do capital, seja naquele experimentado nos países do socialismo real). Todas estas razões fazem sim que a cultura da igualdade hoje resulte a muitos incompreensível ou que se pratique a autocensura.

(14) Academicamente a produção industrial se articula em bens de consumo e bens de produção. Prefiro a expressão "bens de consumo", porque é mais adequada a qualificar a mercadoria. Resulta daí que um bem de produção (por exemplo, uma máquina-ferramenta, se produzida para ser vendida, assume imediatamente as características de bem de consumo (uma forma diversa supõe uma qualidade diversa...) Bens de produção que permanecem como tais e, portanto, não feitos para ser vendidos, são aqueles realizados a cada vez pelos artesãos da indústria para realizar o protótipo industrial. Não considero aqui aquele importante tipo de produção industrial, as grandes obras de engenharia, das quais se falará nos capítulos 2 e 4.

(15) Muitos jovens projetistas temem que declarar as razões da utopia leve à marginalização. Posso afirmar com certeza que a marginalização pode acontecer quando se demonstra não conhecer o próprio trabalho que, para ser bem feito, não pode senão nutrir-se da utopia.

Texto extraído do livro Progetto e Passione ( primeiro capítulo ) Bollati Boringhieri, Turim, Italia, 2001. 

 

 

 

 

A equipe de Agitprop agradece especialmente a primorosa revisão técnica e de estilo de Julio Roberto Katinsky, Rita Guimarães Sylvestre Gonçalves e Roseli Martins.

São Paulo, 2008

Sobre o Autor(a):

Nascido em 1932, na pequena cidade de Novara, próxima a Milão, Enzo Mari tornou-se uma das referências mundiais de design de objetos, com mais de mil projetos realizados para empresas italianas, alemãs, francesas, japonesas. Crítico implacável da cultura do consumo, nunca se identificou com os estilemas do movimento moderno e também nunca defendeu a autonomia do campo do design. Até hoje, trabalha em diversas esferas e dimensões, como a gráfica, o desenho de objetos artesanais e industriais, a cenografia, a arquitetura e até mesmo o urbanismo, entendendo a formação necessária para esta prática como a do artista com ampla formação humanista e boa base técnica, capaz de interpretar as necessidades e os símbolos das formações sociais, das empresas, dos indivíduos.

Um dos designers sobre os quais mais se escreveu, é ele próprio autor de vários livros, reflexões sobre a prática, que também exercita em palestras proferidas em tom agressivo e "arrabiato" (zangado) contra as simplificações das atividades ligadas ao projeto (que ele denomina de blá-blá-bla do design); a prevalência do marketing; à perda de uma cultura visual milenar. Sua postura crítica frente à indústria, que reconhece apenas como meio, faz que veja no domínio artesanal uma possibilidade de recuperação da dignidade dos que fazem, remontando, portanto, à tradição de William Morris. Distante das reduções do funcionalismo, Mari enfatiza em sua produção as questões simbólicas e formais, capazes de fazer que os objetos transcendam a banalidade cotidiana.

Pouco conhecidos no Brasil, seus escritos têm caráter de combate, e revelam um pensamento extremamente sofisticado e capaz de unir diferentes domínios. O texto acima é o primeiro capítulo do livro Progetto e passione, publicado em 2001 pela Editora Bollati Boringhieri, e brinda os leitores com uma leitura singular do lugar do design na sociedade capitalista. Em vez de tomá-lo apenas como necessidade intrínseca da mercadoria, Mari vê no design o entroncamento de contradições, da qual fazem parte, inequivocamente, as lutas pelo socialismo. (Ethel Leon)

 

 


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