Ano: I Número: 7
ISSN: 1983-005X
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Construindo Tecidos
Anni Albers, 1946
Tradutor(a):Gilberto Paim

Embora se suspeite que a retrospecção seja uma preocupação dos conservadores, ela também pode servir como um agente ativo, como um antídoto contra o sentido exultante do progresso que se apossa de nós de vez em quando. Ela nos mostra a devida proporção das nossas realizações e nos permite observar onde avançamos ou não, e talvez onde regredimos. Ela também pode nos sugerir novas áreas de experimentação.

Quando examinamos os progressos recentes na fabricação de tecidos, chegamos à curiosa conclusão que o seu principal desenvolvimento se limita a uma área muito restrita: a criação de novas fibras e acabamentos. Se o processo da tecelagem permaneceu virtualmente imutável por vários séculos, a química têxtil provocou grandes mudanças, ainda maiores do que as decorrentes do avanço acelerado da mecanização do processo produtivo no século passado. Observamos que o cerne do trabalho têxtil, a técnica da tecelagem, foi pouco afetado pela era moderna, enquanto o progresso rápido numa área mais ampla afetou profundamente a qualidade e a quantidade dos nossos tecidos. De fato, enquanto o desenvolvimento periférico acontecia, os métodos de tecelagem foram não apenas negligenciados, mas alguns deles até esquecidos no decorrer do tempo.

É fácil imaginar como ficaria intrigado e espantado um tecelão do antigo Peru ao ver os tecidos atuais. Tendo conhecido a mais importante cultura têxtil da história para a qual ele mesmo contribuiu, pode ser considerado um juiz adequado das nossas realizações. Podemos imaginar que ele ficaria maravilhado com a velocidade da produção em massa, com a uniformidade dos fios, a exatidão da tecelagem e os preços baixos. Ele apreciaria os novos fios, rayon, nylon, aralac, dacron, orlon, dynel e fibra de vidro, para citar alguns mais importantes. Ele admiraria os materiais esmaltados ou à prova d´água, resistentes às dobras, permanentemente plissados, que retardam o fogo, resistentes às traças, com encolhimento limitado e aqueles que são florescentes, todos eles resultam dos nossos novos acabamentos. Até os tecidos tradicionais ganham novas propriedades quando tratados com eles. Aprenderia com assombro os métodos químicos e físicos de tratamento dos tecidos, que lhes dá força de tensão ou reação aos álcalis ou ácidos etc. Embora o nosso crítico peruano esteja acostumado a uma ampla escala de cores, ele pode se surpreender com as novas nuances, com o brilho que desconhecia, e o uso quantitativo da cor que ultrapassa tudo o que imaginava.

As maravilhas desse novo mundo têxtil tornam humilde o nosso antigo expert a ponto de convencê-lo a mudar de ofício e a dedicar-se às engenharias química e mecânica. São estas as duas principais influências desse grande desenvolvimento, uma afeta a qualidade do material, e a outra a técnica de produção. Estranhamente, porém, ele pode achar que nenhuma das duas serviria ao seu interesse específico: a união intrincada de dois conjuntos de fios em ângulos retos: a tecelagem.

Ao concentrar a sua atenção nessa fase particular do trabalho têxtil, ele teria chance de reconquistar a auto-confiança. Podemos imaginar que uma estranha monotonia o assaltaria e o confundiria, ao ver milhões de metros de panos tecidos com a técnica mais simples. Em muitos casos, ele reconheceria logo o princípio construtivo, e até acharia familiar a maioria dos tecidos mais complexos. Na sua busca de inventividade das técnicas têxteis, ele não encontraria nenhum ou pouquíssimos exemplos que o fascinariam. Ele mesmo acharia que tem muitas sugestões a fazer.

Um crítico imparcial da nossa atual civilização atribuiria essa aridez da tecelagem atual a alguns fatores. Ele argumentaria que a era da máquina, ao substituir progressivamente o trabalho manual pelo mecânico, limita a versatilidade do trabalho. Explicaria que o processo de modelagem foi perturbado ao se divorciar o planejamento da realização, já que o produto está hoje nas mãos de muitos, e não apenas de um. Cada membro da linha produtiva acrescenta mecanicamente a sua parte à forma, segundo um plano que não controla. Assim, o tratamento espontâneo de um material se perdeu, e o diagrama assumiu o comando. O desenho no papel não pode levar em consideração, porém, as belas surpresas do material e usá-las de modo imaginativo. Nosso crítico diria que a nossa era promove padrões quantitativos de valor. Conseqüentemente, a durabilidade dos materiais não mais constitui um valor em si e a elaborada artesania deixou de ser uma fonte imediata de prazer. Nosso crítico nos mostraria que a divisão entre arte e artesanato, ou entre arte e manufatura, ocorreu sob as formas mecânicas de produção; uma assume quase inteiramente os valores espirituais e emocionais, e a outra os valores predominantemente práticos. É assim lógico que o novo desenvolvimento deve esclarecer o valor da utilidade na realização dos objetos úteis, paralelamente ao desenvolvimento da arte que, no seu processo de depuração libertou-se do conteúdo literário e tornou-se abstrata.

Embora a maior parte da nossa atenção se dirija atualmente às formas práticas que se libertaram dos elementos que pertencem a outros modos de pensamento, as qualidades estéticas estão, todavia, presentes de modo natural e discreto. Ao evitar acréscimos decorativos, os nossos tecidos são freqüentemente bonitos, assim acreditamos, graças ao uso nítido de materiais crus que expõem as suas qualidades inerentes. Já que até as cores podem ser vistas como apêndices estéticos que escondem as características dos materiais, freqüentemente preferimos os tecidos nas suas cores naturais, não tingidas.

As nossas novas fibras sintéticas, derivadas de fontes tão diversas quanto o carvão, a caseína, a soja, as algas ou a cal, multiplicaram em muitas vezes o número de fibras usadas tradicionalmente. Mesmo quando tecidos com técnicas simples, os nossos materiais são muito variados. O número de variações aumenta ainda muito pelo efeito dos novos acabamentos. Desse modo, metros e mais metros de material liso e útil não nos entediam. Ao contrário, nos dão uma satisfação única. Para um membro de uma civilização antiga, como o nosso peruano, faltam a esses materiais as qualidades que lhes dariam sentido e beleza.

Embora tenhamos conseguido realizar uma grande variedade de tecidos sem variar muito a técnica de tecelagem, o vasto campo da tecelagem está hoje aberto à experimentação. Atualmente a nossa indústria não tem laboratórios para esse tipo de trabalho (hoje, em 1959, a situação está mudando). O tubo de teste e a régua de cálculo cuidaram até agora do nosso progresso. Entretanto, a arte de construir um tecido a partir de fios ainda é uma questão essencial para diversos tecelões, e assim a experimentação tem prosseguido. Embora o mundo oficial da indústria geralmente não o admita, alguns artesãos estão tentando chamar a atenção para a própria tecelagem como parte integrante do trabalho têxtil.

Em seus teares, livres das imposições do projeto, esses tecelões estão trazendo de volta as qualidades que resultam da relação imediata com o material e o processo de trabalho. Suas novas e perspicazes experiências para usar as qualidades superficiais da trama resultam numa nova escola de design têxtil. É, principalmente, graças ao seu trabalho que as texturas estão se tornando novamente objeto de interesse. Os efeitos de textura pertencem à própria estrutura do material e não são padrões decorativos acrescentados, que atualmente perderam o nosso amor. Entretanto, o tratamento da superfície têxtil pode se tornar um acréscimo ornamental tanto quanto qualquer padrão decorativo, pelo uso exagerado das qualidades que fazem organicamente parte da estrutura do tecido.

Embora seja por intermédio da influência estimulante da tecelagem manual que a indústria está se conscientizando das novas possibilidades têxteis, nem toda tecelagem manual contemporânea contribui para isso. Para obter resultados positivos, o trabalho que se afasta da tendência geral do período deve superar algumas perplexidades. Há um perigo de isolamento... alguns tecelões evitam os problemas contemporâneos e se enterram em livros de receitas do passado; há um ressentimento em relação à atualidade industrial, cuja superioridade técnica os ultrapassa; há uma superestimação romântica do trabalho manual em oposição ao trabalho mecânico e a crença na preservação artificial de um mercado que perdeu a sua importância vital.

Os artesanatos têm hoje um lugar além do atraso subsidiado e da terapia. Qualquer artesanato é potencialmente arte, isto não questionamos. Os artesanatos se tornam problemáticos quando são híbridos de arte e utilidade (o que antes foi uma união natural), não alcançando nem o nível da arte e nem a utilidade claramente definida. Um exemplo é a nossa arte atual do cinzeiro, puro lixo (our present ash tray art...trash).

A indústria moderna é a nova forma dos velhos artesanatos, e tanto a indústria quanto os artesanatos devem se lembrar de sua relação genealógica. Em vez de um feudo, devem ter uma reunião de família. Já que o ofício da tecelagem está dando a sua contribuição, de um modo não autorizado, ao novo desenvolvimento e começa a atrair atenção para si mesmo, podemos esperar o tempo no qual será aceito como parte vital do processo industrial.

Até agora a influência da tecelagem artesanal pode ser observada principalmente no tratamento da epiderme do tecido, da aparência. Raramente se levou a sério o trabalho de engenharia da construção do tecido, que afeta as características fundamentais da matéria-prima. O trabalho de engenharia foi raramente considerado. É provavelmente contra a natureza do ofício artesanal trabalhar nessa direção. Assim como a seda, material macio por natureza, pode se tornar firme na forma do tafetá, por intermédio de uma certa construção do fio; o linho, material comparativamente firme, pode se tornar macio num outro tecido; um número infinito de efeitos construtivos pode produzir novos tecidos. O número crescente de novas fibras que incorporam novas qualidades cria o desafio especial de experimentar nelas os efeitos construtivos. Assim como o tratamento químico produziu fluorescência, do mesmo modo o tratamento estrutural pode, por exemplo, absorver o som. Nosso antigo colega peruano pode perder sua expressão atônita, ao nos ver preparando aventuras com fios, aventuras que suspeitamos tenham sido a sua paixão.

A indústria deveria dispor de tempo livre para essas experiências de construção têxtil e, como solução prática mais fácil, incorporar artesãos como pesquisadores no seu esquema. Ao incluir a inventividade construtiva e imaginativa do tecelão, assim como o seu tear manual de vastas possibilidades, o progresso têxtil pode deixar de ser parcial para se tornar realmente equilibrado.

Extraído de Anni Albers, selected writings on design, Wesleyan University Press, EUA, 2001. Publicado originalmente em Design 47:8, Abril 4, 1946 (reeditado pela autora em 1959).

 © 2008 The Josef and Anni Albers Foundation 

Mais informações: www.albersfoundation.org

Sobre o Autor(a):

A artista e designer alemã Anni Albers (1899-1994) estudou na Bauhaus onde se especializou em tecelagem. Em 1933,  juntamente com o marido Josef Albers, pintor e teórico da cor, emigrou para os Estados Unidos. Ambos se tornaram professores do Black Mountain College, então uma pequena e iniciante escola de arte experimental no estado da Carolina da Norte.

Anni Albers utilizou fios naturais, como algodão, lã, linho e ráfia, e fios sintéticos, como celofane, fibra de vidro, rayon e lurex, para explorar de modo pioneiro as múltiplas possibilidades estéticas e construtivas da trama têxtil. Além de desenvolver projetos para a indústria, realizou artesanalmente inúmeras peças únicas, dentre tecidos, tapeçarias e painéis.

Assim como outros artistas modernistas em rompimento com a tradição européia que buscaram inspiração na cultura de povos distantes, ela tinha grande admiração pela arte latino-americana, especialmente pela extraordinária tecelagem peruana, que conheceu em profundidade em suas viagens ao continente.

Os escritos de Anni Albers são tão significativos quanto as suas realizações têxteis. Estão reunidos nas coletâneas On Designing, On Weaving, e Selected Writings on Design, infelizmente ainda inéditas em português.

O ensaio Construindo Tecidos evidencia a experimentação modernista em sintonia com a tradição têxtil peruana, assim como o artesanato moderno como laboratório criativo da indústria, muito além do exercício da prototipagem, subalterno à prancheta ou ao computador. 

Gilberto Paim

 


Comentários

yvonne mautner
25/01/2009

parabens pela escolha do texto! que forma interessante, inteligente e atual de tratar dos ganhos e perdas, na ruptura entre o saber artesanal e os processos de trabalho indústrial.

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