Ano: I Número: 8
ISSN: 1983-005X
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O desenho
Vilanova Artigas, 1967

O campo de ação do arquiteto, nas condições do mundo contemporâneo, amplia-se cada vez mais. Não se trata de uma avaliação quantitativa — mais casas, mais cidades, mais serviços necessários. Seria afirmar o óbvio. Meu ponto de vista é o da estética. E melhor dito, significaria: as artes ganham, cada vez mais, raízes novas na vida social. O campo especulativo das artes se amplia. Seu interesse pela universalidade dos objetos, alguns deles tradicionalmente afastados das especulações estéticas, mostra o homem através da arte explorando e modificando o mundo físico e social com novos instrumentos.

A curiosidade da arquitetura moderna não tem fronteiras. A arquitetura se reaproxima da definição: scientia pluribus eruditiones ornata.

Entre as artes, a arquitetura teve quase sempre um lugar privilegiado na história que a salvou algumas vezes de ser considerada atividade inútil. É sabido que Platão distinguia as artes úteis, que tomavam processos da natureza por modelo e a ela se adaptavam para dominá-la em proveito do próprio homem, e as inúteis — "Como a pintura e a música".

Entretanto a arquitetura, quando se salvou de ser considerada inútil, enquanto ligada à construção, quantas vezes passou por supérflua. Um dos maiores arquitetos da Inglaterra vitoriana, ao pronunciar-se em defesa de sua arte, teve a infelicidade de defini-la nos seguintes termos: "A arquitetura, como distinção da mera construção, é a decoração da construção". Infelicidade porque a noção de "decoro" começava, precisamente, a receber os primeiros golpes da crítica estética.

Este modo de dizer não se permite hoje, pois repeti-lo seria prova de ingenuidade, quando menos. Mas o pior dos conceitos que esta definição contém aparece com freqüência em formulações pretendidamente racionalistas.

Não se trata de atitude típica de estranhos, que "persistem em olhar o arquiteto basicamente como alguém que aplica ornatos a estruturas" — como indignado se exprime Briggs; pois é encontrável, disfarçada na atividade de alguns arquitetos, quiçá assustados com caráter demiúrgico que a vida exige da ação dos que trabalham no aperfeiçoamento da cultura.

No fundo, a definição de Gilbert Scott, que escolhi para começar as considerações que farei, traduz, como facilmente se percebe, o conflito histórico entre a técnica e a arte; mera construção versus decoração — pronunciada na época em que o conflito se apresentou sob formas as mais agudas e irritantes — a época da implantação da máquina.

Não esperem de mim tomar partido contra a máquina ou contra a técnica. Muito ao contrário, julgo que frente a elas, os arquitetos e os artistas em geral viram ampliar-se o seu repertório formal assim como se ampliaram seus meios de realizar. Alinho-me entre os que estão convictos de que a máquina permite à arte uma função renovada na sociedade.

É esta, aliás, a tese que pretendo experimentar aqui, aproveitando a oportunidade para tecer considerações em torno do desenho, linguagem da arquitetura e da técnica.

O "desenho" — como palavra, segundo veremos, traz consigo um conteúdo semântico extraordinário. Este conteúdo equipara-se a um espelho, donde se reflete todo o lidar com a arte e a técnica no correr da história. É o método da lingüística; do "neo-humanismo filológico e plástico, que simplesmente se inicia, mas que pode vir a ser uma das formas novas de reflexão moderna sobre as atividades superiores da sociedade". O conteúdo semântico da palavra desenho desvenda o que ela contém de trabalho humano acrisolado durante o nosso longo fazer histórico.

O fazer histórico para o homem, como sabeis, comporta dois aspectos. De um lado, este fazer é dominar a natureza, descobrir os seus segredos, fruir de sua generosidade e interpretar as suas freqüentes demonstrações de hostilidade. Dominar a natureza foi e é criar uma técnica capaz de obrigá-la a dobrar-se às nossas necessidades e desejos.

De outro lado, fazer a história é, também, como se diz hoje, um dom de amor. É fazer as relações entre os homens, a história como iniciativa humana.

Neste dualismo, provisório e didático, que nada tem de misterioso, é que encontra suas origens o conflito entre a técnica e a arte. Uma técnica para apropriação da natureza e o uso desta técnica para a realização do que a mente humana cria dentro de si mesma. Um conflito que não separa, mas une.

Na história da luta que o homem vem travando com a natureza, a técnica e a arte caminham juntas quando não se confundem. O grafismo paleolítico, a origem do desenho, nossa linguagem, certamente nasceu antes da linguagem oral. Foi a linguagem de uma técnica humilíssima e também a linguagem dos primeiros planos da natureza humana rudimentar. No pensamento mais primitivo há traços do espírito científico.

Por muito tempo a técnica e a arte se confundiram com métodos.

Os filósofos de Mileto, afirmam-no fontes responsáveis, não distinguiam entre arte e técnica, ainda que tudo leve a crer que dessem maior ênfase à técnica. Há registrado um aforismo hipocrático que poderia confirmá-lo: "onde há amor à humanidade, há amor à técnica". Porém, creio que o aforismo é pouca prova, porquanto até hoje a medicina, sem grandes protestos, comparece dignamente, e quantas vezes, como a "arte de Hipócrates". Nada convence que se trata de um abuso de linguagem. A cirurgia tem suas facetas artísticas. Talvez esta afirmação irrite o purismo dos que a consideram, falsamente é claro, a negação da própria medicina. Os conflitos, como se vê, não se concentram em nosso âmbito de ação.

O argumento mais sério, sobre a tentação pela técnica, características dos pré-socráticos, encontra-se com Platão que os comentou: — "Eles pretendiam que a intenção ou arte nasceu depois" — acusou Platão, que, como sabemos, defendeu a inutilidade da arte, fazendo-se a origem do pensamento dos que hoje insistem em interpretar a civilização como fruto do lazer, e não do trabalho humano.

Mas nem tudo se perde no ácido diálogo porquanto Platão, ao igualar arte e intenção, levanta o véu sobre o que mais tarde virá a acontecer com nossa linguagem. Ela será desenho mas também desígnio, intenção. Pois a arte é obra do homem e não da natureza.

A Idade Média considerou o corpo humano presa miserável do pecado. Pintou-o esquálido e desfeito. Conheceu a grandeza das catedrais góticas e uma técnica de sobrevivência — mas todos os valores que acrescentou à cultura humana foram decorrência da negação da vida; da existência do Paraíso, da subestimação da técnica. As boas intenções de Viollet Le Duc, como representante dos arquitetos, no grupo de pensadores inclinados à descoberta de um racionalismo medieval, não se justificaram. As tradições científicas do mundo greco-romano guardaram-nas os conventos, retiros estóicos de uma vida comunitária e primitiva, vida do não ter absoluto, em proveito de um ser total na transcendência.

Pierre de Chambiges, construtor ou arquiteto francês do fim desta etapa da história, num documento hoje conhecido, que o encarregava de certo trabalho de construção, concordava com empreendê-lo: "como especificado e mostrado no ‘retrato’". Portrait da obra a fazer. O desenho como termo ainda lutava para aparecer — uma semântica nebulosa à procura de uma palavra.

Em oposição à Idade Média, o Renascimento reabilitou o humano. As noções sobre o homem surgiram de todas as fontes imagináveis, descobertas pelos que pintavam e esculpiam, pois o humanismo clássico e literário herdado do mundo greco-romano tendia a considerar as artes como atividade manual, prática, e o saber, filho do ócio. "O homem é considerado pelos antigos um mundo menor" — queixou-se Da Vinci.

A técnica e as artes cumpriram seu papel. Na verdade a técnica moderna tem sua origem no Renascimento.

Leonardo Da Vinci, talvez o maior de seus artistas, foi também engenheiro na acepção mesma da origem do termo. Arquiteto, pintor e escultor, enquanto construiu ou idealizou obras de hidráulica e de saneamento, projetou cidades e casas pré-fabricadas. Realizou ou imaginou propostas técnicas de soberba envergadura, mas soube mostrar desprezo aos seus contemporâneos que "relegavam a pintura ao nível das tarefas mecânicas". Para ele a criatividade, em todos os setores, tinha valor humano. Somente se exprimiam em categorias diferentes. Importante era distingui-las para conhecê-las e, conhecendo-se, valorizá-las com propriedade. Exemplo de compreensão sobre o manejo da técnica e da arte, significa, entretanto, mais o entrechoque de tendências, que o produto de uma harmonia de princípio. Não houve harmonia no Renascimento, como é sabido. Nele, os princípios da técnica moderna conviveram com as mais torpes superstições. O príncipe consulta, para si, médicos; mas também astrólogos. Estes o aconselham a atender certas influências das estrelas; e a abster-se de outras.

Os mitos, comodamente alojados nas largas brechas do conhecimento científico, revelam-se no próprio Leonardo. Registrou o canal lacrimal baseado no conhecimento que adquiriu estudando a anatomia até a dissecação de cadáveres; mas conclui "que as lágrimas vêm do coração para os olhos".

Quando se erra em ciência pode se acertar em poesia, como se vê.

A ciência médica descobriu mais tarde a glândula que destruiu essa noção e também descobriu que o coração é uma bomba com o que todos concordam. A poesia inclusive.

Leonardo desenhou como técnico e desenhou como artista. Procurou uma composição onde nada fosse arbitrário. Em seus quadros as figuras se inscrevem em formas geométricas definidas. Maneira de apropriação do conhecimento científico para informar a sensibilidade criadora. Procura de racionalidade.

Com ele e os demais artistas do Renascimento o desenho se impôs. Passou a ser linguagem da técnica e da arte — como interpretação da natureza, e como desígnio humano, como intenção ou arte no sentido platônico. Desenharam contra a insuficiência das ferramentas disponíveis, impacientes com a lentidão do trabalho manual. Lançaram as bases da técnica moderna. Desenharam, ainda, uma nova concepção do homem. Em seus quadros ele aparece sadio e vigoroso, cheio de amor à vida.

No Renascimento, o desenho ganha cidadania. E se de um lado é risco, traçado, mediação para expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica construtiva, de outro lado é desígnio, intenção, propósito, projeto humano no sentido de proposta do espírito. Um espírito que cria objetos novos e os introduz na vida real.

O "disegno" do Renascimento, donde se originou a palavra para todas as outras línguas ligadas ao latim, como era de esperar, tem os dois conteúdos entrelaçados.

Um significado e uma semântica, dinâmicos, que agitam a palavra pelo conflito que ela carreia consigo ao ser a expressão de uma linguagem para a arte.

Em nossa língua, a palavra aparece no fim do século XVI. D. João III, em carta régia dirigida aos patriotas brasileiros que lutavam contra a invasão holandesa no Recife, assim se exprime, segundo Varnhagem: "Para que haja forças bastantes no mar, com que impedir os desenhos do inimigo, tenho resoluto etc.."

Portanto, desenho — designa: intenção; planos inimigos.

Um século mais tarde o padre Bluteau registra, no seu magnífico vocabulário português e latino: "Dezenhar: — ou dezenha no pensamento. Formar huma idéia, idear. Formam in animo designare. Quais as igrejas que dezenhava no pensamento". (Vida de S. Xavier de Lucena.)

Registra também o significado técnico. "Desenhar no papel". Formam in animo designatam lineis describere-delineare. "Que desenhasse a fortificação".

A dinâmica que este duplo conceito proporciona, ou se preferirem — conflito que a palavra carreia dentro de si mesma e que a meu ver é sumamente criador, encontrou no século seguinte, na revolução industrial dos meados do século XIX, uma condição toda especial. O conflito transformou-se em crise aguda — exprimiu-se através de duas polêmicas que até hoje reverberam no âmbito das artes.

Achamo-nos de volta à definição infeliz de Sir Gilbert Scott, num decappo inevitável.

Como ela me irrita também, julgo prudente não repeti-la.

A transformação do conflito discreto e criador em origem de uma polêmica interminável, não pode ser atribuída, espero que assim interpretem, à pobre palavra "desenho" encharcada de nobre conteúdo semântico, ou seja, muito trabalho humano realizado sob duras condições, como sóe acontecer.

A culpa cabe melhor ao aparecimento da máquina de um lado e ao pensamento romântico do outro — adversários implacáveis, como veremos.

A técnica moderna torna possíveis todas as utopias — dizia há pouco notável cientista de nossos dias. Aristóteles já a previra em termos análogos: "os mestres não necessitarão ajudantes, nem os amos necessitarão escravos".

Entretanto, o romantismo trouxe para o terreno da estética uma tese perturbadora. Talvez fosse justo em lugar de romantismo dizer — as idéias predominantes nos meados do século XIX. Houve outras correntes de pensamento que também tiveram sua parte na polêmica.

A oposição irredutível entre a arte e a indústria nascentes explica-se pelo ideário dessas correntes, as quais acreditavam no caráter inspirado da contemplação estética. E afirmavam que se a máquina substitui o homem no trabalho, também o substitui na criação artística. A criação é humana, enquanto é criação do indivíduo que a realiza. O artista que faz, não maneja a quantidade, porém a qualidade. Ora, a máquina é uma força de reproduzir coisas idênticas para fins mais imediatos e primários. O homem, nestas condições, tornar-se-á náufrago num mar de objetos desprovidos de qualquer outro valor que o utilitário. A arte não é útil, é contemplação, e assim por diante.

Nenhum desígnio poderá ser imposto à força de produção quantitativa do novo mundo — a máquina. Enfim, uma espécie de "ludismo" na estética.

Brasileiros também participaram da polêmica. José de Alencar, em folhetim de certo jornal carioca, onde publicava crônicas de corrida de cavalo e opiniões sobre o desempenho de atrizes estrangeiras que nos visitavam, protestou abertamente contra as máquinas de costura (como se vê, máquinas diferentes das inglesas) as quais, em sua opinião: "matariam a poesia do trabalho doméstico". Em Eça de Queiroz, o Jacinto de A cidade e as serras — personagem modelado num paulista ilustre, abandona entediado o conforto agudo e semimecanizado de Paris, para voltar ao campo, à quinta, às alegrias do passado medieval português. Eça e José de Alencar são exemplos muito meigos, comparados com os que passaremos a comentar.

A principal figura do século XIX contra a máquina e as técnicas modernas de produção, foi sem dúvida John Ruskin. Transformou a arte em religião. Conferiu-lhe um grau de sublime tão exacerbado que, frente ao monstro que o aterrava, criou um outro ser monstruoso, mítico, o seu modelo de arte.

A arte que para nós é uma das formas concretas e necessárias da ação do homem na criação de uma natureza propriamente humana, Ruskin a transformou num sentir eterno e imutável, de imobilidade total. A máquina só poderia manchá-la. Só no artesanato, enquanto remanescente medieval, estaria a salvação. Portanto, o seu programa teria que ser — restabelecer o artesenato — opor, à produção industrial feroz e quantitativa, a qualidade do trabalho manual e individual.

É claro que a máquina continuou produzindo. Cometeu terríveis deslizes estéticos, sem dúvida: prensas construídas com colunas de estilo coríntio em escala reduzida; e quantas formas piores a fotografia tem documentadas.

O desenho, a nossa linguagem até então, enriqueceu-se. As nações que ingressavam na era da indústria moderna organizaram exposições de seus produtos. A França, a Inglaterra, e outros países europeus, para disputar mercados, trocaram experiências e reconheceram desde logo indispensável melhorar, aperfeiçoar, reconsiderar a forma dos novos objetos. Daí o desenho industrial.

Para não alongar-me, deixo de tecer considerações, que até seriam oportunas, sobre o desenho industrial inglês e denominações análogas para esta modalidade de desenho que outros países adotaram. Mereceria um exame à parte. Nesse exame o nosso país teria representantes de importância. Esta Escola, na pesquisa da História de nossas artes, coleciona informações preciosas sobre figuras brasileiras eminentes nas artes industriais, quase todos pintores de talento consagrado, entre as quais, mesmo sem o perfeito conhecimento de sua obra, não posso deixar de mencionar Eliseu Visconti.

Há outra figura brasileira que terei de lembrar inevitavelmente. Confesso que precisei munir-me de coragem para mencioná-la aqui, hoje, tão maravilhada tem ela sido ultimamente. Numa época de ecumenismo, quando as reabilitações são a moda, não compreendo bem que imprudência comete quem relembra Rui Barbosa. É bem possível que a literatura ou as ciências jurídicas no Brasil, desejam esquecê-lo. Não sou informado a esse respeito , assim como em tantos outros. Mas para nós, os desenhadores, é imprescindível conhecer as considerações sobre o ensino do desenho que teceu já em 1883, portanto na hora mesma em que a polêmica que venho relatando se desenvolvia no mundo industrializado. Refiro-me ao parecer que Rui, como relator, apresentou sobre o ensino primário no Brasil. Lá, creio que pela primeira vez em nossa língua, está registrada e em mais de uma oportunidade a nova modalidade de desenho — o desenho industrial. Não resta dúvida que Rui Barbosa não deu ao desenho industrial que comentou o mesmo significado que ele tem hoje. Nem poderia ser diferente.

Como é inegável que o ensino do desenho entre nós, tem sido considerado ensino de disciplina sem importância prática alguma, tanto no curso primário como nos cursos secundários, o estudo feito por Rui Barbosa ganha mais saliência ainda, na história do desenho brasileiro.

Creio que das considerações que fiz até agora já é possível concluir que o ideário nos tem impedido de enfrentar o ensino racional, cuidadoso e interessado do desenho, nas escolas brasileiras. Para desenhar é preciso ter talento, ter imaginação, ter vocação. Nada mais falso. Desenho é linguagem também e enquanto linguagem é acessível a todos. Demais, em cada homem há o germe, quando nada, do criador que todos homens juntos constituem. E como já tive oportunidade de sugerir antes, a arte e com ela uma de suas linguagens — o desenho — é também uma forma de conhecimento.

* * *

Mas, voltemos aos românticos e aos seus desígnios.

Os atritos com a máquina do no século XIX, tiveram outros polemistas além de Ruskin. Não pretendo enumerá-los, pois pouco se diferenciam entre si nos vários países de suas origens.

Interessa-nos saber agora, como o ideário romântico influiu na arquitetura até quase metade do século XX, e sob certos aspectos, influi ainda hoje. As marolas do século XIX, ainda nos atingem e como veremos são mais ondas que marolas.

O senhor Lewis Mumford, pensador contemporâneo, autor de várias obras inegavelmente importantes, que versam a história da técnica e da máquina, assim como das artes: Technics and Civilization, The Culture of Cities, Brown Decades e tantas outras, que os jovens por certo hão de consultar com freqüência, merece muita atenção. O mesmo se dá com respeito ao sr. Siegfried Gideon, festejado autor de duas obras igualmente notáveis — Space Time & Architecture e Mechanization Takes Command.

Para Mumford a máquina é um poder destacado, exterior ao homem, que ameaça submetê-lo a suas leis. As máquinas de Da Vinci, por certo faltavam para substituir a morosidade do trabalho manual que tanto o angustiava. Mas acabaram se transformando em donas do homem, em suas senhoras. Congregaram-se num universo oposto ao homem, que as criou. Vejamos algumas palavras de Mumford, denunciando os aspectos negativos da máquina, dentro dos quais manipula argumentos para as suas conclusões de ordem estética.

... "os efeitos triviais da produção em massa com sua abjeta dependência de um grande mercado" ...

... "a bárbara indecisão dos editores modernos ante a publicação de poemas" ...

... "o analfabetismo decorrente do desenvolvimento excessivo da radiotelefonia e da televisão" ...

Notem bem: desenvolvimento excessivo.

O desenho que dá... "forma aerodinâmica a saca-rolhas ou a objetos de escritório, ou transforma um radiador de automóvel em boca de tubarão"...

De toda uma série de considerações dessa ordem, que, sem dúvida, cada uma delas pode trazer uma parte de verdade, sem contudo serem a verdade fundamental — conclui que não se deve quantificar o uso da máquina mas qualificá-lo. Conclusão que é impossível aceitar como boa, em face de suas considerações anteriores sobre desenvolvimento excessivo. Melhorar a qualidade — de acordo — mas isto não implica necessariamente em diminuir a quantidade de produtos. Mais além declara Mumford, confirmando nossas objeções: "Coloco-me plenamente ao lado do autor de Ajuda Mútua, Campos, Fábricas e Oficinas, que compreendeu que o avanço da máquina, como agente de uma vida verdadeiramente humana, significava o uso de unidades em escalas pequenas, possíveis pelo ulterior progresso da própria técnica".

O que significa, em termos bem menos herméticos, que cada um de nós devia ter em casa um pequeno moinho para o trigo provavelmente colhido no fundo de nosso próprio quintal.

E, para o autor, uma máquina que pudesse ser controlada, da qual se pudesse puxar as orelhas quando não produzisse de boa qualidade ou produzisse excessivamente.

A imagem que me ocorre é a de Prometeu arrependido de quanto fogo dera ao homem.

Para o sr. Mumford a estética é uma rota de fuga, um refúgio para o medo da máquina.

Siegfried Giedeon acompanha Mumford. A máquina se transforma num novo dramaturgo, um novo deus, que tem o poder de tudo decidir, enquanto ao homem que ambos consideram ao nível de um fenômeno natural, imutável, incapaz de modificar-se, nada mais resta que se dobrar aos desígnios da máquina.

Daí a volta a uma vida exclusivamente biológica, que chamam "orgânica". Volta à natureza, ao abandono bucólico, ao campo.

Ora, é obvio que a televisão e o rádio são o oposto do analfabetismo. Que se encaminham na direção de se transformarem em técnicas de gigantescas possibilidades de criação artísticas. São mesmo novas artes, como o teatro e o cinema.

Em termos de informação seus efeitos são também o oposto dos efeitos do analfabetismo.

Para nós, arquitetos, a televisão e o rádio, que informam com a velocidade da luz, sugerem novos conceitos de espaço. O espaço como que se torna transparente e o homem ubíquo. Novas simetrias são possíveis. Enriquece o cabedal de matéria para organizar novos desenhos e novos projetos.

Em lugar de uma máquina todo-poderosa que traça o nosso destino e determina os nossos desígnios, que assume nossa linguagem e portanto desenha e projeta sem controle de nossa mente, o que se passa é o contrário. É melhor e mais perfeita a ferramenta — melhores nos sairão as obras.

Um desenvolvimento cada vez maior e tanto melhor quanto excessivo.

O pensamento de Mumford orienta o "desenho" de grande número de arquitetos e urbanistas. Não se pode compreender a obra de F. L. Wright, a Broadacre City, sem o conhecimento desse ideário. Nem mesmo a de Gropius, muito embora eu não afirme que, para estas duas grandes figuras da arquitetura do primeiro pós-guerra, fosse Mumford o informante. Beberam de fontes análogas, as fontes do século XIX.

Le Corbusier, quando se fez propagandista da grande cidade, de um urbanismo mecanicista, de uma técnica todo-poderosa, capaz de resolver sozinha todas as questões, inclusive as questões sociais, viveu o mesmo dilema. Os que conhecem a sua obra, não negam o amor que dedicou aos símbolos humanistas usados pela arquitetura em sua longa e nobre história. Mas também não desconhecerão o pudor com que os avaliava, o medo de manejá-los, como se se arriscasse a concessões comprometedoras. No dizer de Pierre Francastel, seu compatriota, Le Corbusier, "no fundo, só aceita o passo sob uma campânula de vidro com uma etiqueta apropriada".

Sua teoria do lazer é a maldição do trabalho, salienta o autor citado. A arte, o lazer, são refúgios contra o trabalho. Eis o mito do pecado original.

A apreciação que Le Corbusier fez da máquina e do avanço técnico não o afasta muito de Mumford ou Giedeon. Le Corbusier também divinizou a máquina: a grande cidade foi o seu símbolo da máquina. Aceitou-a também como um poder exterior ao homem. Diferenciou-se dos outros grandes arquitetos somente porque se colocou na posição de agente desse novo mito, representante autoritário da máquina.

Da máquina de morar à unidade de habilitação de Marselha, a idéia norteadora é sempre a mesma: a máquina todo-poderosa traçando os desígnios humanos e o arquiteto cumprindo-os; pondo em ordem; como se uma cidade fosse uma fábrica onde tudo acontece como conseqüência de uma disciplina apropriada.

Assim é a carta de Atenas, em particular quando define com certa pobreza de espírito as funções da cidade.

* * *

O conflito entre a técnica e a arte prevalece ainda hoje. Ele desaparecerá na medida em que a arte for reconhecida como linguagem dos desígnios do homem.

A consciência humana, com seu lado sensível e seu lado racional, não tem sido convenientemente interpretada como um inteiro, mas como a soma de duas metades.

Aos artistas, principalmente, compete conhecer esta dicotomia para ultrapassá-la.

Com certeza, a semântica da palavra desenho tende a enriquecer nessa direção. Sentimos já as primeiras mudanças. O desenho não é a única linguagem para o artista. E as linguagens são formas de comunicação ligadas estreitamente ao que exprimem.

Da Vinci dizia: "os olhos são a janela da alma". Nossa linguagem é essencialmente visual, de comunicação visual.

A arte não é um símbolo, como supõem os filósofos da frustração. Os símbolos são frases, ou se quiserem, são versos que compõem o poema.

Para os arquitetos da atualidade, é importante que se exprimam com símbolos novos.

Os novos símbolos são irmãos das novas técnicas, e filhos dos velhos símbolos.

* * *

Como se viu, ninguém desenha pelo desenho. Para construir igrejas há que tê-las na mente, em projeto. Parodiando Bluteau, agrada-me interpelar-vos, particularmente aos mais jovens, os que ingressam hoje em nossa Escola: que catedrais tendes no pensamento? Aqui aprendeis a construí-las duas vezes: aprendeis da nova técnica e ajudareis na criação de novos símbolos. Uma síntese que só ela é criação.

A "obra do homem com sua longa vida histórica é uma obra de arte".

* * *

Sobre qualidade.
Sobre quantidade.
Que diga o poeta
Dos maiores de nossa língua:
"Quanto faças, supremamente faze.
Mais vale, se a memória é
Quanto temos.
Lembrar muito que pouco.
E se o muito no pouco te é possível
Mais ampla liberdade de lembrança
Te tornará teu dono." (Fernando Pessoa)

Sobre o Autor(a):

Após viver dois anos na clandestinidade, perseguido pelo regime militar, Vilanova Artigas retorna à sua escola e é recebido com entusiasmo pelos estudantes e professores. A ele cabe a honra de proferir a aula inaugural do ano de 1967, e naturalmente a expectativa de ouvir as palavras do mestre era grande, sobretudo, neste momento delicado e tenso: todos queriam saber que encaminhamentos tomar para fazer frente à ditadura recém instaurada.

É nesse contexto histórico explosivo que Artigas, "velho militante comunista" decide falar sobre O Desenho.

Apesar da tensão política, ponto de vista assumido por Artigas é o da estética, do desenho conceituado como atividade que faz entrecruzar arte e técnica – nem unicamente expressão artística, nem meramente linguagem codificada da construção: desenho como ato poético por definição, o pensar e o fazer se tocando – arte como techné.

Embora retome as origens semânticas do termo desde a antiguidade clássica, contudo, a questão primordial do texto de Artigas é a emergência do design como a nova forma do projeto arquitetônico na modernidade. Ao aderir estritamente ao princípio da funcionalidade, o design, na leitura de Artigas, retoma algo de seu sentido primordial – vínculo entre expressão artística e raciocínio técnico – vínculo que parecia definitivamente rompido com a revolução industrial que opunha ornamentistas e engenheiros.

Conforme afirma por ocasião de seu segundo retorno à FAU-USP, já na década de 1980, a motivação do texto de 67 era refletir sobre a "assimilação da idéia inglesa do design aqui em nosso país" (A função social do arquiteto, Nobel, 1989, p. 29), dado que a arquitetura moderna teria superado os resquícios derradeiros do canteiro artesanal/medieval, conferindo finalmente autonomia ao projeto. O tema estava em discussão desde 1962, quando Artigas propôs a inclusão do "desenho industrial" no currículo do curso de arquitetura, em face do problemático processo de industrialização que a partir da década de 1960 se afirmava no Brasil. Por trás da discussão semântica - encontrar um termo correspondente em portugues para design - se desvela a desconfiança do arquiteto contra mais uma assimilação passiva e irrefletida de idéias que vêm do exterior, daí a defesa de um pensamento nacional autônomo. O que significava pensar criticamente o projeto do desenvolvimentismo brasileiro.

Por isso, a questão para Artigas, ao adotar o viés estético, é fundamentalmente a função da arte na sociedade. Ao defender o desenho como intencionalidade, a arte como "linguagem dos desígnios do homem" nada mais faz do que reafirmar a tese moderna do design como forma da constrividade do real. O desenho concebido como projeto – desígnio – é a atividade que unifica espírito e matéria, modo simultâneo de raciocínio e de ação, que sintetiza em seu modo de ser as duas modalidades básicas do fazer humano: dominar a natureza e construir a história.

A ação política poderia ser alternativa momentânea, forma de reação imediata ao momento de exceção, mas a tarefa primordial continuava sendo conceber o desenho da realidade e, para tanto, era imprescindível sustentar o conceito da arquitetura como arte do desenho/desígnio. Contrariando, inclusive, as posições mais extremistas de se abandonar o projeto e partir para a luta armada (recusa à projetação, adesão imediata à ação), Artigas, fiel à sua divisa de manter uma "atitude crítica frente à realidade", reafirma a sua prática de arquiteto, aquele que de posse de desígnio da consciência transforma o real. Essa é a mensagem para o futuro.

Mas continuar insistindo no direito de pensar utopicamente frente à realidade, continuar confiando no projeto de uma racionalidade crítica e progressista num momento em que justamente o presente histórico se revolvia em suas contradições, não poderia deixar de ser uma atitude polêmica. Logo, divergências surgiram de dentro da própria escola, e a principal delas viria exatamente de seus mais diletos discípulos: Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sergio Ferro. Este último, inclusive, produz um texto - O Canteiro e o Desenho (1979) - que se pode considerar a contra-face do escrito de Artigas, por isso é recomendável a sua leitura para melhor se compreender o sentido e o contexto dos debates daqueles anos.

Discordando da linha de pensamento de Artigas, que ainda acreditava no desenvolvimento das forças produtivas em arquitetura (na sua industrialização), o grupo da Arquitetura Nova acirrava as críticas às condições de produção do desenho e do canteiro. Para os jovens arquitetos, Artigas mantinha o desenho incólume, em posição ideal, afastado das reais condições de produção, onde se dava a exploração do trabalho. Protegido na outra extremidade do processo produtivo, o desenho nada mais seria que um das modalidades de consolidar tal divisão e controle. No entanto, o custo da radicalização crítica ao projeto como forma de dominação do trabalho, ao ganho conceitual que tal problematização traz, a conseqüência lógica de tal atitude é o abandono da arquitetura. Mantém-se, portanto, a tensão aberta e o impasse vivo.

Como se pode perceber, no campo ampliado da arquitetura contemporânea, em que as alternativas vão desde os puros diagramas conceituais à auto-construção, a reflexão sobre as condições de possibilidade do desenho/projeto continua extremamente atual, o que torna imprescindível a (re)leitura de O Desenho.

João Masao Kamita

Arquiteto, professor do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura/Departamento de História e do Curso de Arquitetura, ambos na PUC-Rio. É autor de Vilanova Artigas, Cosac & Naify, São Paulo, 2000.

 


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