Ano: I Número: 9
ISSN: 1983-005X
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Limites do moderno: o debate entre Max Bill e Jan Tschichold
Max Bill e Jan Tschichold
Tradutor(a):Mila Waldeck

Sobre a tipografia, Max Bill

Fé e realidade, Jan Tschichold

Textos traduzidos por Mila Waldeck com a colaboração de Sebastião Uchoa Leite.

Sobre a tipografia

Max Bill, 1946

Vale a pena nos darmos ao trabalho hoje, uma vez mais, de considerar a situação da tipogra?a. Quando isso é feito por uma pessoa exterior ao domínio, que se ocupa mais com as marcas de estilos de época do que dos efêmeros efeitos passageiros da moda, e se se quer ver, antes de tudo, na tipogra?a um meio de dar forma a documentos da cultura, de permitir às produções contemporâneas se tornarem documentos da cultura, é possivel confrontar-se sem tomar partido dos problemas que aumentam em relação ao material tipográ?co, seus pressupostos e sua concepção.

Há pouco tempo, um dos teóricos conhecidos da tipogra?a declarou que a "nova tipogra?a", que desfrutou de um sucesso crescente na Alemanha de 1925 a 1933, fora destinada sobretudo aos impressos publicitários, e que hoje ela estava superada; para a composição de impressos normais como os livros, para as obras literárias em particular, ela seria inadequada e para se jogar fora.

Esta tese, justi?cada por argumentos mal costurados – aparentemente bem plausíveis para o não-iniciado – causa entre nós desastres e nos é su?cientemente conhecida. É a mesma tese que se opõe a toda novidade artística, quer ela venha de um velho representante da tendência que é agora atacada, ou de um simpatizante por modismo, uma vez que seu impulso e fé no progresso se perderam e que ele retorna a soluções já experimentadas. Felizmente, encontram-se sempre forças jovens, entusiasmadas pelo futuro, a quem estes argumentos não cegam, que procuram novas possibilidades e desenvolvem os princípios conquistados sem se deixar desconcertar.

Os refluxos, nós conhecemos em todos os domínios, antes de tudo nas artes. Nós conhecemos pintores que, depois de estréias interessantes, que resultavam logicamente de uma imagem do mundo contemporâneo, acabaram mais tarde por se exprimir por meio de de formas reacionárias. É dentro da arquitetura sobretudo que nós conhecemos este gênero de evolução que, ao invés de seguir os conhecimentos progressistas e desenvolver mais adiante a arquitetura, procuram de um lado soluções decorativas e, de outro, se abrem às tentações reacionárias, onde os mais destacados são aqueles que nos são bastante conhecidos pela designação de heimatstil.

Todas estas pessoas pretendem haver continuado – a partir daquilo que estava disponível por volta de 1930, ao início de uma evolução nova – em uma direção moderna, hoje válida. Eles olham de maneira altiva aqueles que são, segundo sua opinião, os "atrasados", porque para eles as questões de progresso são reguladas, até que se encontre um novo fenômeno de moda.

Nada é mais simples que constatar que hoje estas pessoas se enganam, como nós ?zemos sempre nos anos precedentes. Eles caíram na armadilha de uma hábil "propaganda cultural" e se tornaram os representantes de uma tendência que politicamente conduziu claramente a uma ruína. Eles se tomam por "progressistas" e se tornam, sem o saber, as vítimas de uma in?ltração espiritual, para a qual cada corrente reacionária é útil.

Hoje, nada seria mais falso do que encorajar ainda que os satélites deste "progresso" no domínio espiritual, em lugar de lhes contestar o direito de difamar aqueles que, no domínio espiritual e também no artístico, ?zeram a resistência para o desenvolvimento de suas teses e para o trabalho que delas resultou. Na tipogra?a igualmente.

Seria ocioso se ocupar com isso, se esta "epidemia do retorno à velha disposição tipográ?ca" não se propagasse de maneira crescente. Vale a pena então, aqui, investigar as causas.

Poucos grupos de pro?ssionais são tão receptivos às regras esquemáticas e simples, a partir das quais eles podem trabalhar com a maior segurança, quanto os tipógrafos. Aquele que estabeleceu esta "receitas", que as reveste de uma aparência de justeza, de?niu a tendência que por algum tempo domina a tipogra?a. Deve-se estar consciente quando se considera, na Suíça sobretudo, a situação atual.

Toda tese estabelecida, rigidamente fixada, contém em si o perigo de se congelar e se opor um dia às mudanças. Mas parece pouco verossímil que a disposição dita "assimétrica", ou de forma orgânica, seja mais rapidamente ultrapassada em seu desenvolvimento do que a composição axial que corresponde sobretudo a um ponto de vista decorativo, não funcional. Nós estamos felizmente libertados dos esquemas da Renascença e não queremos mais a eles retornar, mas de preferência explorar esta liberação e suas possibilidades. A inconsistência dos velhos esquemas tem sido demonstrada, de maneira bem mais convincente, que o retorno a eles, e a experiência ensina que a tipogra?a moderna estava em um bom caminho por volta de 1930.

Infelizmente são os próprios tipógrafos que freqüentemente se desencaminham, não somente seus teóricos. Isto deve ser energicamente a?rmado. Muitos tipógrafos gostariam de ser, segundo sua opinião, "mais" que tipógrafos. Eles gostariam de ser gráficos ou artistas, de criar caracteres, de compor desenhos e gravuras sobre linóleo. E não há nada a objetar se um um tipógrafo quiser ser um artista. Pode-se no entanto constatar que na maioria dos casos ele não vai além de um nível mediano quando abandona seu domínio próprio. É, pois, precisamente a própria tipogra?a, na sua forma mais pura, que é apta a produzir no mais alto grau uma realização verdadeiramente artística.

A tipogra?a é a concepção de composições de texto, como de uma maneira semelhante, a pintura moderna "concreta" é a concepção de ritmos de superfície. Estas composições são constituidas de letras dispostas em palavras. As articulações e as diferenças de talhe dos caracteres, os diferentes corpos, são exatamente determinados. Nenhum outro domínio profissional das artes aplicadas comporta uma tal soma de condições precisas para sua concepção quanto a tipogra?a. Este material de base preciso determina o caráter da tipogra?a.

Vendo este material mais de perto, nós podemos então observar que ele é próprio para desenvolver um ritmo preciso se exprimindo em proporções calculáveis que constituem a ?sionomia dos impressos e representam a característica da arte tipográ?ca. Com este material exatamente matemático, que contrasta vivamente com o aspecto acidental da imagem da palavra escrita, não é sempre fácil alcançar um resultado plenamente satisfatório, e lhe dar uma forma irrepreensível; no entanto, este permanece o objetivo de qualquer esforço tipográ?co artístico. Antes de tudo, as necessidades ligadas à línguas devem ser preenchidas para que as considerações puramente estéticas possam ter lugar. A composição mais perfeita será sempre aquela que ligará, de maneira harmoniosa, o percurso visual lógico e as necessidades tipográ?cas e estéticas.

Uma tipogra?a desenvolvida inteiramente a partir de seus próprios dados, que trabalha de uma maneira elementar com suas unidades de base, nós a denominaremos "tipogra?a elementar", e quando, simultaneamente a isso, ela tende a conceber a composição de uma maneira que se torna um conjunto orgânico vivo, sem acessório decorativo e sem se violentar, nós gostaríamos de a denominar "tipogra?a orgânica" ou "funcional". Isto então quer dizer que todos os fatores e as exigências técnicas, econômicas, funcionais e estéticas que puderam ser igualmente preenchidas determinam o conjunto da disposição tipográ?ca.

Na evolução da "nova tipogra?a" de 1930 em direção à tipogra?a funcional da atualidade, reconhece-se o desaparecimento daquilo que constituíram então os acessórios característicos da moda: os ?letes, os grandes pontos, os folios superdimensionados e outros atributos semelhantes que sobreviveram mais tarde sob a forma de linhas ?nas para adornar e acentuar a disposição tipográ?ca. Todos estes elementos são inúteis hoje e supérfluos quando a própria composição é corretamente organizada, quando os grupos de palavras são colocados em relações de proporções justas. Isto não quer dizer que tais elementos sejam, por princípio, recusáveis – eles, em geral, não são mais necessários do que qualquer outro ornamento –, mas com sua supressão a composição ganha em tensão espacial simpli?cada e em serena clareza.

Os que se opõem a uma tipogra?a funcional a?rmam então que a disposição tradicional com eixo central produz justamente esta clareza, e na tipogra?a do livro, afastar-se mesmo um pouco seria condenável. Eles retornam ao livro "tradicional" e a?rmam que um livro deve ser concebido no estilo da sua época. Em todos os casos, eles aplicam os princípios de base do passado, com o socorro de diferentes misturas de caracteres e pelo uso de floreios em desuso e de linhas de ornamentos (que em arquitetura nós chamamos, "ornamentos a metro", porque são fabricados a metro). Desta maneira uma "nova" tipogra?a condicionada pela moda se propaga, uma sorte de heimatstil tipográ?co, e isto mesmo para livros de conteúdo moderno e progressista, produzidos pelas máquinas de composição de nossa época.

Nós consideramos este gênero de procedimento como absolutamente condenável, não somente porque o argumento que quer que o livro seja impresso no estilo da época de sua aparição (dessa forma, Schiller e Goethe no estilo do século passado) não é freqüentemente mais aplicável (por exemplo Platão, Confúcio etc), mas porque ele trai um medo manifesto dos problemas e das conseqüências que resultam de uma tipogra?a funcional. É uma fuga em direção ao tradicional como expressão de um historicismo retrógrado.

Que se diria de um eletricista que declarasse um dia que as lâmpadas de petróleo seriam mais íntimas, confortáveis, perfumadas, que a luz elétrica? Nós nos oporíamos certamente àquele que desejasse retornar ao estado de desenvolvimento técnico de cem ou duzentos anos atrás. Em suma, uma tal inclinação pelo passado desapareceria, quando se reconhecesse as vantagens das possibilidades técnicas, as formas que lhes são logicamente ligadas e também sua expressividade artística. Seria reconhecido que o progresso é realmente feito de passos à frente e que não se pode jamais quali?car de progresso aquilo que retorna para trás, como se pôde fazer, em parte com sucesso, estes últimos anos.

Alguns exemplos foram anexados aqui, que deveriam demonstrar o caminho pelo qual uma tipogra?a funcional e orgânica pode seguir. Em todo caso, a intenção foi de ?xar a construção lógica, e a expressão que dela resulta, em uma criação harmoniosa, que corresponde clara e distintamente às possibilidades técnicas e artísticas de nosso tempo.

 

Fé e realidade

Jan Tschichold, 1946

 O artigo do pintor e arquiteto de Zurique Max Bill Sobre a tipografia, no número precedente, parece ter sido provocado pela minha conferência "Constantes da tipografia", ocorrida em dezembro do ano passado diante dos membros de Zurique da Associação dos Gráficos Suíços. Nesta conferência, eu fiz a retrospectiva da "nova tipografia" que eu havia desenvolvido, a partir de mim mesmo, sem deferência. Bill não estava entre meus ouvintes. As citações de minha conferência, incluídas pela metade e grosseiramente reportadas, devem provir de segunda ou de terceira mão. Sem estar informado das fontes, Bill utilizou esse ofício de mercador numa agressão fanática contra a tipografia do livro, tal como ela é praticada por mim, Imre Reiner e outros.

Na realidade, eu declarei (para utilizar as frases que Bill tomou de mim):

"A nova tipografia não está sem dúvida ultrapassada mas, como foi provado, ela não convém senão à publicidade e a pequenos impressos. Para o livro, em particular para a literatura, ela é em geral completamente inadequada". Eu me refiro ao meu manual, A concepção tipográfica, (Basiléia, Benno Schwabe & Cia, 1935), para o qual ainda hoje eu não tenho uma só palavra a mudar; exceto o último capítulo que eu suprimi em uma reedição.

Meus argumentos, "mal costurados" e "reacionários", interessarão ao leitor não iniciado deste periódico. Gostaria de expô-los aqui, a bem dizer sem recear que eles "causarão um desastre". Aliás, eu não sou "um dos teóricos conhecidos (as palavras "mais que excessivamente" parecem riscadas) da tipografia", mas atualmente, pelo que conheço, o único de nosso território linguístico. Imre Reiner protestará certamente de ser assim qualificado, ele é mais um entusiasta produtivo do que um teórico. Eu não sou somente um teórico, como Bill em realidade o é, mas eu trago uma bagagem de quem concebe sobre mais de vinte anos de prática. Depois de ter sido professor de tipografia na Academia de Artes Gráficas e Profissionais de Livros de Leipzig, eu ensinei letra e tipografia durante sete anos na Escola de Mestres de Tipógrafos Alemães, em Munique e, depois de minha emigração para Basiléia, eu exerci a partir de 1933, sem interrupção, minha atividade de concepção a frente de duas grandes gráficas. Durante esse período, de 1919 até hoje, eu idealizei não somente a disposição tipográfica de uma quantidade inumerável de impressos publicitários e outros, mas também de mais várias centenas de livros de diferentes tipos. Esta prática, adquirida desta experiência assim acumulada, dá às minhas palavras um outro tempero, diferente das teorias de um arquiteto exterior ao domínio, que, segundo suas próprias palavras, se ocupa "de marcas de estilo da época" e ocasionalmente, como amador, de trabalhos tipográficos particulares, querendo dizer "se confrontar sem tomar partido dos problemas que suscitam a propósito dos materiais tipográficos, seus pressupostos e sua concepção". Palavras que, aliás, ultrapassam de todo conteúdo apreensivel.

Não é fácil, para a nova geração de compositores, imaginar o estado da tipografia alemã (e com ela a tipografia suíça) por volta de 1923, com a chegada da nova tipografia. A disposição tipográfica mediana dos anúncios e impressos comportava toda sorte de estilos e letras hoje impensáveis e uma composição muito pouco atenta às regras definidas. A nova tipografia que foi difundida, antes de tudo, por minha publicação em um número de Typographischen Mitteilungen (Leipzig, 1925) e pelo livro de mesmo nome (Berlin 1928), tentou uma limpeza para um retorno às formas e regras mais fáceis e simples possíveis. Nós víamos nos produtos industriais modelos estéticos, nós considerávamos – de uma maneira totalmente errônea, como apareceu mais tarde – a sem-serifa como a letra mais simples, nós a considerávamos "a" letra moderna. Igualmente, nós, um grupo de artistas, havíamos tentado suplantar a forma simétrica, que não era mais utilizada de maneira sensata, pela assimetria do conjunto da composição. A simetria estava ligada, sem reflexão e erroneamente, às formas de expressão do absolutismo político, e por isso declarada obsoleta. O valor histórico deste esforço de transformação da tipografia consistiu em ter limpado a composição de seus elementos mortos, afirmado a fotografia, renovado as regras tipográficas e ter trazido várias outras sugestões produtivas, sem as quais o aspecto da tipografia atual de nossa língua não seria pensável. Esta simplicidade ascética, de um pathos extremo, que caracterizou seus esforços, foi a escola mais severa que se pode imaginar, ela estendeu sua ofensiva até um ponto final que não permitia mais avanços. Ela foi a "escola da fadiga", dos novos desenvolvimentos, ela foi necessária, mas ninguém tem por ela nostalgia.

Deduzir regras de construção de trabalhos tipográficos de leis desenvolvidas pela pintura, seja ela nomeada como "abstrata", "não figurativa" ou hoje freqüentemente "concreta" (Lissitzky, Mondrian, Moholy-Nagy), gera uma tipografia válida e passageiramente nova. Mas não me parece por acaso se esta tipografia se desenvolveu quase unicamente na Alemanha e não conseguiu senão com esforço entrar em outros países. Sua atitude intolerante corresponde particularmente à tendência alemã ao absoluto, com sua vontade de ordem militar e sua pretensão à dominação, estes inquietantes componentes da natureza alemã, que foram a origem do poder de Hitler e da Segunda Guerra Mundial.

Tudo isso me apareceu claramente mais tarde, na Suíça democrática. Depois eu me abstive de promover a nova tipografia. Os criadores da nova tipografia e as tendências que lhe estavam associadas eram, como eu, os mais firmes inimigos do nazismo (só dois de nós se inclinaram a eles, o professor M.B., Essen e W.D., Iéna), tanto assim que eu fui, como minha mulher, colocado muito tempo em "detenção preventiva", quer dizer, colocado na prisão, no início do pretenso III Reich. Além disso, perdi meu posto de ensino em Munique. A liberdade de criar e de pensar me importa mais do que tudo, eu renunciei à minha velha pátria e montei minha tenda na Basiléia.

Nós nos sentíamos então pioneiros do "progresso", nós não queríamos ter nada a fazer com as coisas notoriamente reacionárias como aquelas que Hitler projetava. Quando a cultura hitleriana nos descrevia como "bolchevistas culturais", e qualificava as obras de pintores de gênio como "arte degenerada", ela aplicava na realidade, nisso como em toda parte, os mesmos métodos de obscurantismo e de falsificação. O III Reich encorajou mais que tudo o "progresso" técnico nos seus preparativos de guerra, hipocritamente escondido sob a propaganda de uma forma e de expressões medievais. E porque ele atuava enganando, ele não queria ouvir nada dos honestos modernistas que, ainda que opositores políticos, não estavam contudo, sem o saber, tão longe de ser um partido de tal delírio de "ordem" que havia reinado no III Reich. Assim, por exemplo, o papel de guia que me foi incumbido, como único especialista de todo o grupo: justamente o papel de "Führer", tutor espiritual de um "bando de partidários", como a ditadura se caracterizou.

A nova tipografia – ou a tipografia funcional – é perfeitamente adaptada à promoção dos produtos industriais, espírito de onde é descendente e de onde ela preenche os objetivos, hoje como no passado. Seus meios de expressão são limitados porque de fato ela tende a um "despojamento" e "clareza" puritanos. Isto não muda senão no inÌcio de 1930, quando Elzévir e Didot também foram aceitos no círculo dos meios de expressão. Parecia então que só os caracteres do século XIX eram utilizáveis. Finalmente, eu descobri que a nova tipografia não era, na verdade, senão a finalização daquilo que havia aspirado: a tipografia do século XIX animada pelo progresso. Da mesma maneira, a mistura de caracteres da nova tipografia tardia emprega apenas caracteres do século XIX. Bodoni, nesta medida, preparou a nova tipografia, propondo-se a limpar a romana de toda lembrança da forma manuscrita original. Por sorte, ele foi menos radical que seus recentes discípulos do século XX, que a construíram sobre os mais simples elementos geométricos.

Existem inúmeros impressos cujas soluções, no gênero desta estética de casas militares, são derivadas de um mesmo ato de violência. Cada especialista experimentado pode constatá-la. Muitos impressos (os livros sobretudo) são muito mais complicados do que aquele que os procedimentos simplificadores da nova tipografia podem resolver. O caracter extremamente pessoal da nova tipografia comporta assim grandes perigos para a unidade projetada da obra, uma vez que o compositor responsável não tem permanentemente cada página sob os olhos e não pode ele mesmo regular cada um dos pequenos problemas formais. Foi mostrado, de resto, que as leis aparentemente simples desta tipografia funcional não são familiares a ninguém porque elas partem de uma atitude general especial, no fundo de conjuração religiosa, na qual se deve ter sido primeiro "iniciado". Muito diferente é a tipografia tradicional, que não é de todo inorgânica, que cada um pode compreender facilmente e cujos ajustes são fáceis de se tornarem compreensíveis. Ela não supõe nada de sectário, e sua aplicação por uma mão inexperiente não causa tantos danos quanto a aplicação da nova tipografia por uma mão não iniciada.

O trabalho de Bill de hoje é extatamente parecido com meu próprio trabalho entre 1924 e 1935 aproximadamente, marcado por uma superestimação ingênua dos pretensos progressos técnicos. Aquele que trabalha assim vê na produção mecânica de bens de consumo, que certamente é a marca de nossa época, qualquer coisa particularmente especial. Nós não conseguimos evitar fabricar e utilizar este gênero de coisas, mas não vamos começar a cercá-las de gloríola porque são oriundas do trabalho em série ou da aplicação dos últimos métodos de racionalização.

A máquina pode tudo. Ela não tem regras próprias e não faz nascer nenhuma forma por si mesma. É o homem, a vontade daquele que concebe, que forma o produto, mesmo quando ele crê executar suas leis e quando ele está convencido de que sua forma objetiva, despojada de ornamento, é impessoal. A obra de um idealizador cem por cento moderno é de longe mais individualista do que a que é formada sem pretensão, por assim dizer, sem intenção e anonimamente. O que não deve, aliás, nos impedir de a considerar bela em seu gênero e preferir sua utilização a outra se ela também preenche bem o seu objetivo. O não-artista não é o menos interessado no mundo em saber se um mínimo de trabalho foi empregado na produção de sua máquina de escrever, ou que a máquina está fatigada. Ele não se preocupa uma só vez, pelo que lhe diz respeito, se os trabalhadores que construíram a máquina foram pagos corretamente. Ele exige somente sob todos aspectos que a sua máquina de escrever seja utilizável, ele se regojiza se no mais ela é barata.

Um artista como Bill não vê provavelmente que sacrifício de sangue e de lágrimas que a aplicação de métodos racionais de produção custa à humanidade "civilizada" e a cada trabalhador, em particular. Porque suas novas possibilidades procuram sem dúvida as ocasiões lúdicas para Bill ou para atividades de um outro idealizador, mas não para o operário que dia após dia deve montar o mesmo parafuso, na mesma máquina de escrever. Esse trabalhador procura agora pelo descanso no esporte aos domingos, e pelas ocupações da noite com sua coleção de selos, ou por um outro hobby, aquilo que o seu trabalho de subsistência não satisfazia humanamente. Ao contrário do jardineiro, para quem o trabalho em si mesmo dá satisfação, a quem provavelmente não ocorreria ao espírito querer um "descanso" no cinema ou no esporte. Bill ressalta com entusiasmo sob suas ilustrações (embora aqui ou ali de maneira totalmente errônea) que elas foram compostas pelas máquinas. Ele esquece que o compositor, que deve colocar nas páginas o produto da máquina de composição e concluí-lo, não encontra, no seu trabalho, já há muito tempo, a satisfação que seu avô podia nele encontrar. Porque aquele que deve retomar as linhas compostas e continuar a trabalhá-las não pode jamais respirar, livre, com o sentimento de ter realizado qualquer coisa completa com suas mãos.

A produção das máquinas provoca nos valores da experiência do trabalhador uma perda pesada, quase fatal; é um total desvario colocá-la sobre um pedestal. Que ela seja moderna não significa de maneira alugma que ela seja válida ou mesmo boa; com mais forte razão ela é má. Não sendo capazes de trabalharmos sem ela, nós devemos aceitar seus produtos como um simples fato, sem louvá-los por sua origem. Uma pessoa preocupada com a estética, como Bill ou eu, vitupera contra o aparelho de telefone cuja forma é detestável; no entanto, não nos ocorre tomar um tal aparelho pela forma justa e boa como uma obra de arte, ou como símbolo de uma obra de arte. Ele é simplesmente um instrumento como um martelo, nada mais. Ele não tem valor senão dentro do que ele pode fazer.

O telefone é um objeto cuja forma atual não foi senão há pouco tempo alcançada. Há vários objetos semelhantes, que só apareceram em nossa época, e que têm a marca dos métodos de produção da engenharia industrial. Suas formas, como as dos automóveis e aviões, por exemplo, têm conhecido um rápido desenvolvimento. Estes objetos são sem dúvida testemunhos de nosso tempo, se bem que talvez fundalmentalmente sem valor. Os produtos mais modernos de nossa "cultura" são o V2 e a bomba atômica. Eles se preparam para definir nosso estilo de vida e difundirão certamente o progresso daqui para frente.

Os adeptos do progresso propõem então que as coisas antigas devem ser reformadas no sentido das novas. Entre as antigas, existem aquelas suscetíveis de evoluir porque seus pressupostos técnicos mudam. Isto vale para a lâmpada. Uma lâmpada elétrica em forma da lâmpada de petróleo, no gênero do mal falado heimatstil, é uma besteira. Mas, à parte isto, existem objetos que tiveram depois de longo tempo uma forma acabada: a sela do cavaleiro, a tesoura e o botão.

O livro também encontrou, depois de longo tempo, o seu desenvolvimento. À parte o papel manchado, a impressão por vezes menos adequada e a velha ortografia, o livro datado de cento e cinquenta anos é tão "adaptado ao objetivo" quanto o de hoje em dia. Um livro contemporâneo é mesmo raramente tão bem feito. Ele teve frequentemente um formato menos prático, ele é freqüentemente composto com menos amor e gosto do que o antigo. Os autores de hoje podem se considerar felizes se suas obras parecerem, nem que seja aproximadamente, tão bem impressas quanto as de seus colegas do século XIX. Levar em conta as regras tipográficas que levaram séculos para se formarem é tão pouco historicista e eclético quanto a utilização da patente de um outro engenheiro por um construtor de máquinas. É testemunhar, ao contrário, um zelo excessivamente juvenil jogar para cima as velhas regras tipográficas, com desdém, não querer por preço algum trabalhar como os outros e, em nome do céu, querer ser diferente e "moderno", negligenciar, colocar de lado essas regras e ensaiar proceder de outra maneira. Cada um é livre, mas o fato tem seu próprio risco.

Bill concebeu um pequeno número de livros e catálogos. Eles pertencem quase sem exceção ao domínio da nova arquitetura e da nova pintura "concreta". É inteiramente justo fazer derivar o estilo tipográfico de tais obras de leis da pintura concreta. Exatamente como será justo aproximar um pouco um volume de poesia barroca da tipografia barroca. Um como o outro são arte aplicada. Que o livro ilustrado fotograficamente pôde, aqui ou lá, desenvolver um estilo específico é agradável e verdadeiro. A ilustração fotográfica constitui um novo elemento do livro, que nos tem proposto novos problemas formais. Os periódicos podem igualmente ser concebidos nesse estilo. Assim, a nossa bela revista Du, que mantém as melhores tradições da nova tipografia tardia, com um senso de medida exemplar, sem seguir os dogmas excessivamente rigorosos de Bill. Eu mesmo tenho, além do mais, muito antes dos exemplos de Bill, feito a concepção de inúmeros catálogos na nova tipografia, cujo estilo eu ainda considero como justo, mas não como a única possibilidade justa.

Todos os livros de Bill manifestam um grande senso de forma e um gosto correto; eles são exemplares no gênero. Mas se Bill ensina que este estilo conviria a qualquer espécie de livros, isto testemunha tanto uma falta de compreensão para os conteúdos diferentes daqueles que lhe são habituais, quanto uma obstinação dogmática. Nem uma única pessoa sensata acredita nisso, a não ser Bill e um certo sociólogo da Basiléia. Somente um grupo mínimo de livros suporta a novidade e as concepções formais surpreendentes. Para a maior parte dos outros, isto importuna e perturba. Referir-se às boas regras tipográficas para concepção de um livro, no sentido da tipografia tradicional, não é em nada "historicista"; uma estranheza que impressiona será quase sempre contestável. Assim, a maneira pela qual é composto o artigo de Bill tem sem dúvida um encanto porque é incomum, mas ele não tem de maneira alguma uma validade geral e exemplar. Não mencionarei, entre outras coisas, que as linhas não justificadas, que Bill utiliza, foram introduzidas, anteriormente, por Eric Gill, o grande inglês da letra, por volta de 1930. Elas são muito menos pertinentes em composição mecânica que em composição manual (porque enquanto o compositor dispensa um certo esforço para justificar as linhas compostas, a máquina o faz automaticamente e de uma maneira irrepreensÌvel – abstraindo os defeitos que só o compositor pode evitar). Não se trata, portanto, senão de uma simplificação aparente e de uma aparente forma moderna. A composição de Bill sem tabulação é muito mais perniciosa. Bill marca o parágrafo com uma linha em branco. O que causa não somente muitos cortes, mas não dá a garantia suficiente de caracterização do parágrafo.

Isso ocorre claramente na passagem das páginas 7 a 8 de seu artigo. Não está claro se o parágrafo continua na página 8 ou se começa um novo. O leitor conhece a razão pela qual é indispensável fazer as tabulações pelo meu artigo de 2/1946 desta revista.

Para provar que um clássico chinês, traduzido em uma língua européia, será melhor composto em nossa tipografia tradicional, eu apresento, como exemplo, uma página de Tchouang-tseu, em seu estilo, e, ao lado, uma outra com continuação do texto na nova tipografia. A arte do livro exige antes de tudo um senso de medida e de intuição.

A escolha da própria Bodoni para o título funcional de Hafis já pode parecer aos olhos de Bill como uma concessão, porque ele considera bem mais a sem-serifa como tendo melhor carácter, por que é moderna. Tal como a exibe de uma maneira insuperavelmente evidente, no exemplo da página oposta, composta em Antique, extraída de um livro efetivamente publicado, reproduzido em seu talhe original (aqui reduzido), o qual é uma verdadeira tortura para a leitura contínua.

A sem-serifa não é um novo caracter. Ela apareceu durante o primeiro terço do século XIX. É antes de tudo um caracter de título, ou utilizável somente em curtos parágrafos como caracter de trabalho penoso. Sua falta de articulação suficiente para indispensáveis aumentos de espessura e a força monótona de sua feição a torna pouco legível. Sua simplicidade não é senão aparente. Ela corresponde às capacidades de percepção não desenvolvidas daquele que soletra o b-a-ba. Para os olhos não experimentados as verdadeiras formas dos caracteres de impressão parecem tão complicadas quanto a escrita de uma criança de doze anos.

Não será por acaso se os principais discípulos da tipografia funcional desejam conhecer pouco ou nada das melhores sem-serifa conhecidas de artistas contemporâneos (a sem-serifa de Gill, a Metroline de W.A. Dwiggins). Estas são as verdadeiras escritas da atualidade que se situam muito acima do miserável nível de forma das sem-serifa comuns (Akzidenz-Grotesk, Mono-Grotesk 215) que Bill prefere utilizar.

Os mais legíveis caracteres, que dizer, os que de fato são melhores caracteres à nossa disposição, são os clássicos (por exemplo Bembo, Garamond, Erhardt, Van Dijk, Caslon, Bell, Baskerville, Walbaum) e aqueles que, entre os novos, são pouco descartados (Perpetua, Lutetia, Romulus e algumas outras). Nós devemos, antes de tudo, aos vinte e cinco anos de atividade de Stanley Morison no seio de uma importante fábrica inglesa de máquinas de composição o poder dispor número em tamanho natural de duas espécies. O reaparecimento dos caracteres clássicos teve como efeito uma renovação tipográfica no mundo inteiro, que é pelo menos tão importante quanto foi o processo de limpeza da tipografia para a Alemanha.

O princípo técnico de composição mecânica não teve a menor influência sobre os métodos de composição tipográfica. A composição mecânica imita a composição manual, e tanto melhor que o mais perfeitamente possível. Se sua utilidade foi diversa da visual, ou seja, não dependendo senão de objetivos técnicos, ela seria agora próxima do compromisso, opticamente insuficiente, da máquina de escrever. A composição mecânica não é nem mais avançada nem mais bela que a composição manual, exceto pelo de fato de que ela fornecia tipos sempre intactos. Ela é menos flexível e não é mais simples de operar do que a composição manual. Ela não está em via de mudar essencialmente a imagem da tipografia por suas próprias regras mecânicas, senão de uma maneira econômica. O próprio Bill é incapaz de reconhecer em quê consiste a composição mecânica; na verdade é somente o que desejaria e o que poderia a composição segundo Bill. Porque o bom compositor à máquina, como o bom compositor manual, aspiram à perfeição óptica. Esta perfeição foi já alcançada no século XVI e não foi superada posteriormente. A flexibilidade limitada de certos sistemas de composição tem simplesmente fornecido os piores desenhos de caracteres, que prejudicam a leitura para o olho sensível, ao passo que os caracteres de composição manual, graças à sua espessura não limitada, permitem realizar os últimos ajustes ópticos. O que é muito mais importante que aquilo que um leigo como Bill pode reconhecer.

O impresso publicitário se desenvolveu recentemente de maneira diferente do livro. Ele é um verdadeiro filho da era industrial. Para ele exige-se, em primeiro lugar, novidade e surpresa. A nova tipografia, que oferece novos meios de expressão, foi por um certo tempo de bom grado utilizada, tanto que ainda é "nova". Quando sua forma ascética e severa for suficientemente conhecida, passa-se a buscar outros "novos" meios de expressão que naturalmente, na ocasião, como pólo oposto das formas puristas mais extremas, supondo uma tipografia decorativa e enfeitada. Uma tal tipografia poderá assim fazer o efeito, novo e refrescante, que produz uma flor no deserto. Será certamente um erro ver "a" forma moderna em uma tipografia decorativa, que é pertinente apenas excepcionalmente. Ela também será, exatamente como a tipografia de Bill, somente uma forma moderna. As duas são modernas. Se não se tem em vista para a palavra "moderno" um julgamento de valor positivo! Porque ela não significa "novidade" ou "novo", mas somente que o objeto apareceu hoje e não há vinte ou trinta anos, que ele é fabricado hoje, de maneira sensata ou absurda.

O novo não permanece eternamente novo, a imagem da tipográfia também mudará talvez até o ponto em que a luta pela concorrência do nossa época ceda lugar a uma pura economia de necessidades. Aqueles que hoje já gostariam de se limitar a uma oferta moderada de comunicação e renunciar aos efeitos de surpresa, como nele se esforça a tipografia funcional puritana, deverá abrir os olhos no momento de ser confrontado com os votos nem sempre injustificados de seu comandatário. A falha principal da Nova Tipografia – ou da tipografia funcional – é de não convir aos mandatos que devem representar uma instituição. Ela deve compensar isto por meios suplementares que são frequentemente bem menos "apropriados ao objetivo" (por exemplo, muitas cores, clichés fotográficos supérfulos, papéis caros).

Os benefícios que permanecem, que nos ofereceram novos desenvolvimentos da tipografia, são uma composição verdadeiramente melhor e mais lógica, os caracteres mais belos e a difusão de regras de composição utilisáveis, que Bill chama de receitas perniciosas. Se nos darmos ao trabalho de desvendarmos essas regras de meus escritos, isto dá, em algumas palavras-chave:

1. A menor quantidade possível de diferentes caracteres.

2. O menor peso possível de corpos.

3. Não dar espaços.

4. Diferenciar por itálico ou bold um mesmo caracter.

5. Não compor senão excepcionalmente em capitular; sempre colocando espaços e ordenando cuidadosamente as proximidades.

6. Formar grupos; não mais de três grupos.

Bill talvez não esteja consciente da maneira como ele mesmo segue fielmente minhas "receitas", eu poderia quase citar todos os trabalhos tipográficos como exemplo desta adequação. É evidente que seguir regras racionais não é suficiente para fazer um de cada um mestre da forma. Haverá sempre maus imitadores. Eu não sou responsável pelos meus imitadores, e não posso considerar Bill responsável pelos seus.

Eu não sou um amigo do heimatstil. A tipografia tradicional que eu defendo não é a do heimatstil. Existe mesmo alguma coisa semelhante em nosso domínio. Nós já qualificamos na Alemanha de "reserva natural" os esforços de Rudolf Koch e seus discípulos (que conduziram ao "Marathon"). A estes pertencem também a Post-Antiqua e a Post-Fraktur, e três graus mais abaixo as bastardas góticas do III Reich (Tanenberg, Deutschland, National). Eu não posso suportar este gênero de caracteres. Eles correspondem à derrubada da crença progressita tingida de religiosa (crença que Max Bill representa), uma fuga sentimental em direção a um passado que não se pode ressuscitar (elas são, de resto também, "modernas").

Se a reaparição da tipografia tradicional foi um efeito da propaganda nazi, como Bill ousa pretender, a tipografia do mundo inteiro, sem excetuar a Rússia, teria sido vítima desta propaganda de décadas à frente. Eu não emprego e não encorajo outra tipografia senão aquela que, bem ou mal, é por todos praticada. Porque eu considero improdutivo eternizar no instantâneo um processo de limpeza que propunha a tipografia alemã, por volta de 1930. Bill insinua que o haviam difamado. No que me diz respeito, nada é menos verdadeiro. Eu não creio haver evocado em minha conferência o nome ou as obras de Bill, que eu aprecio sem restrição, como já expus mais acima. Antes de mais nada eu coloquei meus próprios trabalhos passados em tribunal, e não os dele. O que me desola acima de tudo é que me parece ter sido contestado o direito de criar como bem procuro fazer. Como artista, ele deveria saber que um criador não pode criar de uma maneira diferente do que ele considera justo fazer. O que se chama a sufocação da liberdade de pensamento e de criação artística se mescla de atividades turvas que nós consideramos como vencidas. Ele comete o mais alto crime porque ele arruína o nosso bem mais caro, que caracteriza a dignidade humana: a liberdade. É preciso talvez haver perdido uma vez a sua, como eu, para poder verdadeiramente medir seu valor.

 Ambas traduções fazem parte da monografia Tipos de razão apresentada por Mila Waldeck como trabalho de conclusão de curso na ESDI em 1997, sob orientação de Rodolfo Capeto.

  

Quem não se contradiz não diz

Mila Waldeck

 Publicado pela primeira vez em 1946 na revista Schweizer Graphische Mitteilungen, o artigo Sobre a tipografia foi escrito pelo ex-aluno da Bauhaus, fundador da HfG Ulm e pioneiro da arte concreta: Max Bill. Em linhas gerais, sua intenção era criticar alguém que abandona a estética modernista nas artes gráficas para se voltar para forma tradicional do livro. Nenhum nome é citado. Na ocasião talvez fosse redundante: a descrição bastou para que Jan Tshichold contra-atacasse com o texto Fé e realidade na edição seguinte. 62 anos depois, este debate permanece um emblema de conflitos não resolvidos no design – a tensão arte/indústria, novo/clássico, expressão individual/função social.

Vários anos e uma guerra separam esta discussão dos dois influentes escritos iniciais de Tschichold – Tipografia elementar, de 1925 e A nova tipografia, de 1928. Já no primeiro deles, nota-se uma manobra singular: formas tipográficas, dizem os parágrafos iniciais de Tipografia elementar, decorrem da evolução dos movimentos artísticos que aconteceram a partir do impressionismo. Um caminho traçado pelo modernismo e conduzido decididamente pelo construtivismo leva a obra de arte figurativa e não utilitária em direção à arte utilitária. Assim como, na história da arte, a pintura segue uma espécie de lógica ou vontade rumo à abstração, a tipografia e as artes gráficas reduzem seus elementos rumo à letra sem-serifa, às formas geométricas, à organização assimétrica do espaço.

Tudo isso talvez parecesse muito claro ao jovem Tschichold, mas ainda hoje soa inusitado se considerarmos que o não-utilitarismo é quase um imperativo categórico nas artes plásticas (1). As influências mais prováveis nos seus primeiros trabalhos teóricos são a Bauhaus, El Lissitzky, a vanguarda construtivista européia e Moholy-Nagy (a quem, aliás, é creditada a expressão "nova tipografia"). Todas estas fontes, ao que parece, inspiraram Tschichold a dissociar a arte do universo inefável e sublime para associá-la à realidade prática, à indústria e, portanto, à tipografia.

Mas essas idéias contundentes mudariam. Com a ascensão nazista, Tschichold foi preso e obrigado a deixar a Alemanha no mesmo ano – 1933 – em que a Bauhaus fechou. Gradativamente sua prática e teoria em tipografia se transformam: "não pode haver algo ‘novo’ no design de livros"(2), escreveria o autor de A nova tipografia. Nesse aparente processo de auto-contradição, Tschichold desloca a tipografia do plano das artes plásticas para o plano da escrita – da função visual para a confecção, a mais perfeita possível, de livros.

A razão deste deslocamento fica clara em Fé e realidade. Diferente do que supunham ou desejavam os construtivistas, nem máquina nem o "novo" são, em essência, bons. Por outro lado, o designer-artista não é engajado por multiplicar produtos belos e excelentes, ao menos não enquanto existir, por trás da fabricação destes produtos, uma rede de exploração e injustiça. Por tudo isso, na melhor das hipóteses, a tipografia cuida da multiplicação e preservação do conhecimento por meio da palavra impressa. O que, aliás, não é pouca coisa.

Ou seja, na segunda fase do pensamento de Tschichold vemos que a tipografia não deve mais ser arte ou vice-versa: deve ser uma prática exercida com o máximo de excelência usando as técnicas aperfeiçoadas ao longo do tempo pelas gerações dos mestres deste ofício. Aristóteles diria que dá na mesma (3). Mas isso foi no século IV A. C, bem antes de Gutenberg ou da bomba atômica. Em 1946, essa forma tão antiga de pensar e atuar era de fato original. E continua sendo.

Mila Waldeck, formada pela ESDI, é designer gráfica especializada na área editorial. Atualmente é editora de arte da revista Vogue.

Notas:

(1) Cauquelin, Anne. Teorias da arte, trad. Rejane Janowitzer, Martins Fontes Editora, São Paulo, 2005.

(2) Tschichold, Jan. A forma do livro, trad. José Laurênio de Melo, Ateliê Editorial, Cotia, 2007.

(3) Aristóteles. Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, Edipro, São Paulo, 2002.

 

 


Comentários

Rosangela Petta
26/09/2008

Muito consistente, sensato e iluminador o artigo de Mila Waldeck. Um bálsamo nestes tempos de alta ansiedade pelo novo que nada renova, deforma e desinforma. Rosangela Petta

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