Em 2008 a produção de impressos no Brasil completou 200 anos. Não que ninguém tivesse tentado essa façanha antes do século XIX. Desde o século XVII já havia gente se mobilizando para isso – o que indica que a população alfabetizada, embora rarefeita, justificava o investimento em tipos, tintas, papéis etc. As primeiras mobilizações, entretanto, acabaram sendo interrompidas, tendo como efeito – melhor dizendo, como causa – a concentração em Portugal da produção de impressos para o Brasil. Quando a corte portuguesa veio se concentrar no Brasil, Dom João VI fundou a Impressão Régia e finalmente inaugurou, de fato, o ofício contínuo das artes gráficas brasileiras.
O primeiro esforço documentado para iniciar este ofício partiu dos holandeses durante o governo de Maurício de Nassau em Pernambuco. O impressor Pieter Janszoon foi enviado da Holanda ao Brasil, devidamente equipado, em 1643, mas faleceu logo depois de chegar e não há sinais de que ele tenha tido sucessores. Do período de ocupação holandesa, resta um folheto supostamente feito em Recife em 1647 cujo colofon, entretanto, tem autenticidade controversa.
Cem anos depois, Antônio Isidoro da Fonseca, um dos principais impressores portugueses, procurou estabelecer-se no Brasil trazendo tipos de Jean Villeneuve, o pioneiro na fundição de tipos em Portugal. Não se sabe exatamente o que o trouxe para cá. Há razões para supor que Isidoro enfrentou dificuldades em seu país por ter publicado Antonio José da Silva, o Judeu, escritor que foi perseguido e queimado pela Inquisição em 1739. O fato é que em 7 de fevereiro de 1747 Isidoro estava no Rio de Janeiro, e imprimindo. Meses depois o perseguido era ele: o governo exigia seu retorno a Portugal, a apreensão de sua tipografia e avisava que impressor nenhum teria licença para trabalhar no Brasil (1).
A vinda da família real em 1808 mudou esse cenário, afinal o rei precisava da palavra impressa para reinar. O decreto de criação da Impressão Régia – a primeira gráfica brasileira não-clandestina – dizia que ali seriam produzidos com exclusividade papéis diplomáticos, leis e "quaisquer outras obras". Quaisquer outras obras que a censura permitisse, naturalmente. Tudo isso usando os tipos e prelos provenientes da Inglaterra que desembarcaram com a corte em solo brasileiro. O comando da nova empreitada coube a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra.
A trajetória de D. Rodrigo mostra como era a produção de livros voltados para o leitor brasileiro antes que a Impressão Régia funcionasse do lado de cá do Atlântico: tudo acontecia na Europa, de preferência em Portugal. D. Rodrigo teve diversos cargos políticos ainda em solo europeu, entre eles o de ministro de Estado da Marinha e Ultramar. Enquanto ocupava este ministério, fundou a Casa Literária do Arco do Cego, que funcionou em Lisboa de 1799 a 1801 e produziu com cuidado e qualidade mais de 80 publicações destinadas sobretudo aos brasileiros. Ali aconteciam todas as etapas da confecção de livros: impressão, gravura, encadernação e produção de tipos, que inclusive eram vendidos a outras gráficas.
O editor-impressor encarregado era o brasileiro Frei José Mariano da Conceição Veloso, que aliás foi parar em Portugal justamente para tentar publicar seu próprio livro, Flora Fluminensis. Em 1801, D. Rodrigo tornou-se Ministro de Negócios da Fazenda e presidente do Real Erário, passando a ser responsável pela Impressão Régia de Portugal, que então incorporou a estrutura da Casa Literária do Arco do Cego e contou com Frei Mariano como diretor literário. Acredita-se que os primeiros funcionários da Impressão Régia brasileira tenham sido formados na Impressão Régia portuguesa e na Casa Literária do Arco do Cego.
Em 1821, portanto às vésperas da independência, a Impressão Régia deixou de monopolizar a produção de impressos no Rio de Janeiro (2) e foi renomeada como Tipografia Nacional. O novo nome era simbólico: a multiplicação impressa de textos e livros, antes um setor controlado pela monarquia, agora seria um recurso difundido e livre. O fim do monopólio foi simultâneo ao fim da censura e logo em seguida já funcionavam sete gráficas numa cidade que antes só podia contar com uma. Essa expansão leva a crer que havia uma demanda por impressos que não estava sendo suprida.
A história da tipografia no Brasil mostra que, dificuldades à parte, existiam uma população interessada em ler e empreendedores interessados em imprimir antes mesmo que a Impressão Régia brasileira funcionasse. Há quem atribua a tardia estréia das atividades gráficas no Brasil à "predominância do analfabetismo"(3) no período colonial – o que seria inverter a ordem das coisas, já que o livro é que erradica o analfabetismo e não o contrário. Independente do artaso e do que o provocou, a estréia foi comemorada na época e os dois séculos que se passaram desde então já são uma história considerável.
(1) Antônio Isidoro da Fonseca voltou a Portugal e tentou obter permissão para trabalhar no Brasil, mas não a conseguiu.
(2) Fora do Rio de Janeiro, até 1822 havia uma gráfica na Bahia, fundada em 1811, e outra em Recife fundada em 1817.
(3) José Marques de Melo, em Sociologia da imprensa brasileira, escreve que a "predominância do analfabetismo" e o "atraso das populações indígenas", entre alguns outros fatores, geraram o retardamento da implantação da imprensa.
Bibliografia:
Bragança, Aníbal, Arco do Cego e Impressão Régia (Lisboa e Rio de Janeiro): sobre rupturas e continuidades na implantação da imprensa no Brasil, http://groups.google.com/group/cultura-letrada/files?hl=pt-BR
Hallewell, Lawrence, O livro no Brasil (sua história), São Paulo, Edusp, 1985.
Melo, José Marques de, Sociologia da imprensa brasileira, Petrópolis, Vozes, 1973
Semeraro, Claudia Maria, org., História da tipografia no Brasil, São Paulo, Museu de arte de São Paulo, 1979.