Ano: I Número: 12
ISSN: 1983-005X
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O desenho do móvel, seguido de Desenho industrial
Joaquim Tenreiro, 1967

Os móveis modernos pioneiros de Joaquim Tenreiro (1906-1992) estabeleceram um patamar muito elevado para o design brasileiro em madeira. Por vezes levíssima, sua estrutura evidencia a força e a beleza do jacarandá da Bahia, dentre outras madeiras brasileiras. O conhecimento em profundidade do ofício da marcenaria sustentou admiravelmente a sua busca do novo.

Cada vez mais, a excelência das realizações do mestre é apreciada nacional e internacionalmente, conquistando ávidos colecionadores.

Os dois textos que seguem apareceram originalmente na revista Arquitetura nº 61, de março de 1967, e foram republicados no livro Joaquim Tenreiro – Madeira/ Arte e Design, organizado por Ascânio MMM e Ronaldo do Rego Macedo, lançado por ocasião da exposição homônima realizada na Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio, no Rio de Janeiro, em 1985.

Em Desenho do móvel, Tenreiro ressalta a importância do conhecimento das técnicas e procedimentos de fabricação para a elaboração consistente do projeto. Em Desenho industrial, argumenta que o projeto não é tarefa para amadores, seja ele direcionado à produção artesanal ou industrial. E manifesta sua inquietação quanto à atuação do designer generalista, que desconhece os meandros da fabricação moveleira. (Gilberto Paim)

O desenho do móvel

Seja qual for a profissão, não creio que possa ser ela exercida bem se os seus executores não estiverem imbuídos de uma consciência profissional autêntica.

Essa consciência profissional já por si só implica numa condição moral para a sua complementação.

De todas as profissões, aquelas pertencentes às artes plásticas são as que mais se enquadram nestes princípios.

Por isso, não é possível aceitar profissional que exerça determinada profissão, sem que lhe conheça os meandros e sem que tenha passado por aquele aprendizado normal, somente possível em alguns anos de experiência e ação.

Dos equipamentos de interiores, os móveis enquadram-se numa das profissões que mais exigem de seus executores.

É uma profissão que para descobrir-lhe o emaranhado de seus segredos, muitos e variados, a começar pelo próprio desenho ou melhor o risco, que é em si o instante mais exato da possível criação, exige tempo.

Mas criar um móvel, por exemplo, não é apenas aquele momento de "inspiração", aquele instante de imaginação formal, que fica marcado no risco, como criação, mas também aquele prolongamento que continua até a realização e até que esse móvel esteja em condições de função e utilidade.

Daquele risco inicial que originou a cadeira, há um roteiro enorme a percorrer, de elementos a coordenar até a sua conclusão. Há um ajuste de componentes técnicos, estéticos e outros, a começar pelo dimensionamento, resistência de materiais, lógica dos encaixes; mas uma cadeira é, antes de mais nada, um teorema de lógica.

Num móvel, como em arquitetura, o risco somente não chega, o desenho não chega.

Imaginar formas e formas belas bem concebidas, de boa imaginação e concepção plástica, não chega.

É preciso para fazer um móvel, sem dúvida, o risco, mas especialmente depois, o desenho técnico propriamente dito acompanha-lhe a confecção, mas acompanha profissionalmente, recebendo assim um consciente dimensionamento e condições técnicas coerentes, para que possa ser um móvel equilibrado.

Não é na oficina que se estabelecem as condições técnicas e dimensionais, nem o auxílio do operário dará ao problema maior consistência.

Porém, no desenho técnico, no desenho de prancheta é que deve refletir-se a experiência da oficina e é nessa experiência que o móvel pode e deve então atingir boa categoria.

É fora de dúvida que o móvel na complexidade e dificuldade da confecção não admite amadorismos.

A ajuda do operário pode ser valiosa se ele souber executar bem aquilo que foi indicado no desenho, mas pretender mais do operário é utópico.

É preciso não esquecer as gerações de operários que as oficinas tradicionais nos falsos estilos viciaram, e as características comerciais que as submeteram.

De pouco vale o operário para a ajuda teórica ou estética se o elemento básico, o desenho, não tiver atingido nível profissional.

Em suma: o móvel bom, consciensiosamente feito, não é fruto de improvisações nem tampouco da dubiez amadorista. 

 

O desenho industrial

O momento é do desenho industrial.

Há um intenso movimento em torno dele como acontece de vez em quando com esta ou aquela moda ou dança.

Ora é o rock and roll, o chá-chá-chá, o twist ou uma outra dança.

Chegou a vez do desenho industrial como uma dança qualquer.

E então é desenho industrial para isto, para aquilo e para nada.

Parece descoberta de cientista russo ou norte-americano.

Não é: é apenas desenho industrial e desenho industrial não é novidade, nem descoberta recente.

O desenho industrial é velho, tão velho como o homem, como o mundo e até um desenho da Idade Média pode transformar-se e ser aproveitado em sentido industrial.

Basta que se constate ser este desenho de objeto atenda às massas, às suas necessidades e haja interesse em ser planificado para esse fim.

Não é o desenho em si que é industrial e não é o desenho industrial uma fórmula de desenho especificamente industrial.

Há um grande equívoco, para muitas pessoas quando consideram que o desenho industrial seja um desenho dentro de certos limites e como se esse desenho somente seja industrial quando feito para atingir as classes populares apenas.

Desenho industrial é desenho do Mercedes, do Cadillac, do Lincoln Continental etc.

O que é industrial é a planificação desse desenho, o seu divisionamento em conexão com o sistema industrial que o vai executar.

O mesmo desenho planifica-se para indústria e para o artesanato e está nessa planificação aquilo que se quer atingir, isto é, as massas.

É claro que ninguém planificaria o desenho de um Cadillac para as massas populares. Este desenho mesmo industrialmente planificado somente o deve ser para atingir as massas mais favorecidas.

Um desenho para as massas populares ou para servir a certos requisitos de trabalho está fora das exigências sociais e não será planificado naquelas bases.

O que importa porém esclarecer é: não está no desenho em si o processo industrial. Em princípio o desenho consiste na invenção ou criação da forma, do todo, e é na planificação industrial ou artesanal que ele deriva a sua finalidade dirigida.

Mesmo a planificação será feita, ou é feita em função do organismo técnico, do equipamento industrial que vai executar.

Na planificação industrial, na aparelhagem técnica, na melhor capacidade de aproveitamento no maquinário e do operariado reside cada planificação industrial.

É claro que o desenho pode ser feito com vista a finalidades industriais e resultar num desenho específico e que atenda a determinada classe ou massa.

Uma coisa porém é certa de que quanto mais se tornar industrial tal desenho, tanto menos ele se prestará aos teóricos e às improvisações.

O que mais importa no caso é que o problema seja posto no seu devido lugar e seja objetivamente profissional, sem as frases empoladas, e ministrado por eternos amadores.

Na verdade sempre houve improvisações, porém os organismos de trabalho em si funcionam como filtros e acabam eliminando tudo o que não se integra a seu organismo.

Sobre o Autor(a):

A produção de Joaquim Tenreiro faz parte dos currículos de história do design brasileiro. Além de muito copiada, ela fez escola e influenciou mais de uma geração de criadores de móveis. O mestre português talvez suspeitasse desse êxito póstumo quando, algum tempo antes de morrer, tornaram-se freqüentes exposições, edição de livros e teses universitárias dedicados a ele, culminando no convite da empresa paulistana Probjeto, responsável pela edição de móveis modernos internacionais, para produzir uma de suas cadeiras, em 1989.

Nascido em 1906 na aldeia de Melo, em Portugal, Tenreiro, cujos pai e avô eram marceneiros, aprendeu desde cedo a lidar com diferentes madeiras e a entender que marcenaria é a arte dos encaixes, distanciando-se da carpintaria, onde pregos e parafusos são aceitos.

A ele não bastavam os conhecimentos transmitidos por seu pai nem os ensinamentos da escola fundamental. Em 1928, já casado e residente no Rio de Janeiro, começou a freqüentar o Liceu Literário Português onde aprendeu desenho geométrico. Passou a estudar também no Liceu de Artes e Ofícios. Aos poucos, consolidou sua verdadeira aspiração: tornar-se artista.

Foi empregado da Laubisch & Hirth (1933-1936); da Leandro Martins (1936-1940), onde colaborou com Maurício Noziers, com formação na Escola Boulle de Artes Aplicadas; e da Francisco Gomes (1940/1942). Em 1942 voltou para a Laubisch & Hirth. Nessas empresas completou sua formação como projetista de móveis ao dominar técnicas da marcenaria e ao aprender, como gostava de repetir, todos os estilos, Luís XVI, d. João V, Chippendale. Tenreiro aprendeu os estilos - que dominavam a cena dos ricos e das classes médias brasileiras do período - ao mesmo tempo em que os rejeitava conceitualmente.

Tenreiro não se satisfazia com essas soluções de compromisso. Queria desenhar móveis modernos. Durante seus anos nas fábricas de móveis Leandro Martins, que pertencia a conterrâneo, o artesão acompanhou com atenção a obra do prédio do Ministério da Educação e da Saúde, que marcou a colaboração de Le Corbusier com jovens arquitetos brasileiros.

Uma das questões centrais dessa obra – os brise-soleils – e o novo repertório da arquitetura moderna brasileira, que buscou no passado colonial algumas de suas soluções, certamente não passaram desapercebidas a Tenreiro, que procurava no mobiliário a leveza visual, a concisão e o frescor propício para povoar interiores residenciais de terras quentes.

Cataguases foi o laboratório perfeito para Tenreiro. Além de desenhar os móveis da residência de Peixoto e de outras, Tenreiro criou o mobiliário do Colégio Cataguases, também obra de Niemeyer e do Hotel Cataguases, dos arquitetos Aldary Henrique Toledo e Gilberto Lyra de Lemos. A partir de seu contato com os arquitetos e com os clientes, ele percebeu que já havia um público para suas criações. Cataguases seguramente deve ter servido de exemplo de síntese das artes, ideal modernista de reunião da arquitetura, pintura, escultura e paisagismo na chamada ‘obra de arte total’.

Em 1943, Tenreiro se associou a José Langebach, fundando a Langebach & Tenreiro, oficina de móveis instalada na rua da Conceição, centro do Rio de Janeiro. Quatro anos se passariam até que os sócios inaugurassem uma loja na rua Barata Ribeiro, em Copacabana. Nesse período a Langebach & Tenreiro produzia ainda móveis de estilo, ao sabor dos clientes. Na loja, no entanto, Tenreiro pode apresentar ao público suas criações. E decidiu fazer de sua vitrine também um espaço de integração das artes. Os móveis eram ambientados no espaço, e não simplesmente amontoados. Tapetes, luminárias, arranjos florais, objetos de decoração e obras de arte integravam o espaço.

Em pouco tempo a loja tornou-se ponto de referência para as classes médias de mentalidade modernizadora. Tenreiro baniu os móveis de estilo, passando a apresentar apenas aqueles de sua lavra. E as criações iam-se sucedendo, expressão de sua pesquisa e de suas buscas formais. A Cadeira Leve, produzida em imbuia ou em pau-marfim, ganhou estofamento de tecido pintado por Fayga Ostrower com motivos afro-brasileiros, uma das menções explícitas de Tenreiro à necessidade de pesquisar aspectos da cultura brasileira.

Ele quebrou cânones da marcenaria dominante ao rebaixar a altura das mesas de 80 a 85 cm para 72cm. Buscou o conforto incessantemente e o adjetivo anatômico passou a fazer parte de seu vocabulário. Os encostos das cadeiras eram projetados para nunca encostar nos omoplatas, terminando abaixo ou acima deles. Em sua oficina, Tenreiro pode trabalhar com muitas madeiras brasileiras, peroba, marfim, cedro, óleo-vermelho, roxinho e jacarandá, a sua preferida. Avesso aos brilhos, desenvolveu um verniz próprio que não escurecia o roxinho. Suas técnicas de acabamento dos móveis eram tradicionais, como o verniz boneca. Mas na concepção a ousadia seguiu em frente.

Um de seus móveis mais espantosos foi produzido ainda em 1947, a cadeira de três pés. Feita de madeiras de distintas cores, promoveu o jogo ótico na mobília e é uma exibição de marcenaria. Objeto teatral, que buscou o equilíbrio em três pernas, propiciava o conforto das curvas suaves da madeira, sem qualquer vazio. Foi incorporada ao cenário da peça Da necessidade de ser polígamo, de Silveira Sampaio, que tratava de um triângulo amoroso.

O programa da loja e as encomendas de clientes faziam Tenreiro desenhar novas peças durante todo o tempo. Aficcionado por cadeiras, ele criou também mesas, consoles, mesinhas de centro e laterais, estantes, camas, armários, bancos e estofados.

Ethel Leon

 


Comentários

prof. john godfrey stoddart
09/01/2010

Otima informacao mas gosteria saber si voce poderia informarme do ano de nacimento y morte do nosso arquiteto Gilberto Lyra de Lemos y onde obter mais infor. sob ele. obrigadissimo happy new year ! jgs

Abilio Guerra
20/12/2008

Gilberto, Ethel e Marcelo, que belo número! Parabéns e, aproveitando a deixa, grande 2009 para vocês e familiares. Abilio Guerra

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