Em 1999, Rafael Cardoso publicou Uma introdução à história do design, livro que se tornaria uma referência obrigatória no estudo da atividade, agora em sua terceira edição.
Seis anos depois, em 2005, publicou o também referencial O design brasileiro antes do design, responsável por romper definitivamente com as barreiras modernistas para a legitimação de uma investigação histórica rigorosa sobre a profissão antes dos anos 1950.
Se esses dois primeiros títulos tiveram forte impacto sobre a compreensão histórica do design, Design para um mundo complexo tem tudo para exercer a mesma influência no campo das ideias e fundamentos capazes de enriquecer seu futuro.
Design para um mundo complexo não é, contudo, fruto de pesquisa recente. Suas principais questões vêm sendo elaboradas desde o final da década de 1990, quando o autor publicou o texto “Design, cultura material e o fetichismo dos objetos” (Arcos: Design, cultura material e visualidade, vol. 1, nº único, 1998), reelaborado anos mais tarde e publicado em inglês sob o título “Putting the magic back into design: from object fetishism to product semantics and beyond” (Art on the line, 2004/1 [2]).
Um aprofundamento ainda maior resultou neste que é o primeiro livro publicado no Brasil a tratar diretamente das questões vinculadas à semântica dos produtos e sua relação com a contemporaneidade.
Nesse sentido, Design para um mundo complexo faz excelente companhia a uma bibliografia que inclui autores consagrados como Klaus Krippendorf, Victor Margolin, Richard Buchanan, Henri-Pierre Jeudy, Donald A. Norman, Deyan Sudjic, Adrian Forty e Vilém Flusser – estes dois últimos com títulos publicados pela Cosac Naify (Objetos de desejo e O mundo codificado, respectivamente).
Do mundo real ao mundo complexo
Design para um mundo complexo atualiza a discussão proposta pelo quase homônimo Design para o mundo real, publicado há exatos quarenta anos, em 1971.
Seu autor, o designer norte-americano Victor Papanek, alertava para uma crescente perda de sentido de um design de matriz modernista crescente e perversamente estetizado em face de um mundo assolado pela miséria, exploração, violência e degradação, e conclamava os designers a saírem de seu universo auto-referente para projetarem soluções para o mundo real.
Constatando que os problemas apontados por Papanek tornaram-se ainda mais profundos, Rafael Cardoso procurou realizar ao mesmo tempo “uma homenagem e uma revisão crítica” à publicação original, aprofundando o ataque à noção modernista de função e atualizando o “mundo real” de então, cuja materialidade passou definitivamente a ser envolvida e permeada por uma camada de informação e imaterialidade.
Segundo o autor, para que o design possa ter qualquer efetividade sobre esta realidade, precisará necessariamente considerar sua complexidade, entendida como “um sistema composto de muitos elementos, camadas e estruturas, cujas inter-relações condicionam e redefinem continuamente o funcionamento do todo”.
Se muitos autores se contentam em exaltar a busca pela simplicidade como forma de ser do design (afinal de contas, “o design nasceu com o firme propósito de por ordem na bagunça do mundo industrial”), são efetivamente poucos os que se dispõem a enfrentar os desconcertantes dilemas colocados pela complexidade das aparências, das formas e dos significados.
Design para um mundo complexo é uma poderosa ferramenta teórica para tratar dessas questões, elaborada de maneira clara e acessível tanto ao leigo quanto ao estudioso.
Aliando raciocínio cristalino a insights bem humorados e diversos exemplos concretos, propicia uma leitura agradável, reveladora e profundamente rigorosa.
Não existe função, existem funções
O ponto de partida do livro é a desmontagem da relação unívoca e estável entre forma e função. No primeiro capítulo, intitulado “Compressão e complexidade”, o autor alerta para a confusão perversa entre função e operação, substituindo a primeira pela noção de propósito – ou a adequação de um artefato ao seu uso.
Como essa relação é bem mais aberta que a equação “a forma segue a função”, passa a ser possível demonstrar como diversos conceitos centrais ao design e tradicionalmente engessados pela função, tais como forma, olhar e significado, são de fato muito mais móveis do que se imagina, dependendo essencialmente de noções como contexto, tempo e memória.
Nesse movimento, a própria noção de função abre-se a uma ambiguidade e uma complexidade inimagináveis para o repertório modernista. O segundo capítulo, intitulado “A vida e a fala das formas: significação como processo dinâmico”, abre com uma afirmação tão evidente quanto renegada: “Não existe função; existem funções”.
E não apenas porque haja diversos usos para os objetos, mas sobretudo porque muitas de suas principais funções, mais que operacionais, são marcadamente semânticas. Noutras palavras, o que define e valoriza a avassaladora maioria dos artefatos com os quais nos relacionamos é aquilo que eles significam, e não seu mero funcionamento ou características de fabricação, produção e distribuição.
Mas quais processos definem esses significados? Qual o papel da aparência? Por que ela nunca é neutra? Qual o papel da memória? Porque ela é vital em nossa relação com o novo? Porque a forma dos objetos, ao invés de tender à homogeneidade? Os objetos podem ser considerados como linguagem?
As respostas a essas questões reforçam a riqueza do universo que se abre à atuação dos designers quando os significados estáveis são substituídos pela noção mais ampla de significação. “Trata-se de uma nova dimensão do pensamento projetivo, maleável, muito mais adequada para o mundo complexo em que vivemos”.
A sociedade dos gráficos iletrados
A constatação que se segue, contudo, é inquietante: por mais irrefutável e imperiosa que seja essa complexidade, somos incapazes de reconhecê-la ou de “atribuir densidade poética (…) ao universo material que nos cerca.”
Numa das melhores passagens do livro, Rafael Cardoso afirma: “Nossa sociedade industrial, cuja existência se pauta fundamentalmente em sua capacidade de produzir artefatos, resiste paradoxalmente a se engajar na tarefa de compreender o sentido dos mesmos. Mal comparando, somos parecidos com uma imensa gráfica que imprime livros sem parar, mas onde muito poucos sabem ler e a maioria dos funcionários nega a existência da leitura. O resultado é que estamos em processo de sermos soterrados, literalmente, pelo lixo que produzimos”.
Eis um dos propósitos centrais do livro: oferecer formas de pensar que permitam superar a inexorável transformação dos objetos em dejetos e a “defasagem entre a permanência dos artefatos e à mutabilidade das ideias”.
A esta questão, vital para o debate da sustentabilidade, o autor responde com uma visão renovada do ciclo de vida dos produtos, que enfatiza o pós-uso ou, nas palavras do autor, “o horizonte distante da materialidade que se recusa a morrer”.
Redes dentro de redes dentro de redes
Se a permanência da materialidade dos objetos se opõe à mutabilidade que caracteriza as ideias, esta oposição torna-se ainda mais abissal se considerarmos o tecido das redes de informação que se urdiu à nossa volta.
No terceiro capítulo do livro, “Caiu na rede é pixel: desafios do admirável mundo virtual”, a contribuição de Design para um mundo complexo está em desvelar sua estrutura, não de um ponto de vista tecnológico, mas histórico e visual.
Por outro lado, a internet tornou-se complexa a ponto de não ser mais inteligível. Tornou-se “meio, e não coisa”.
Em ambos os casos, seja pela sobreposição e interconexão de redes, seja pela imensidão imaterial de sua estrutura, a conclusão é a mesma: a importância do design como construtor de interfaces nesse meio complexo é imensa, e é preciso superar certa visão da internet que “costuma passar quase que exclusivamente por seu desenvolvimento tecnológico como sistema de informática”.
Que ninguém espere, no entanto, um receituário de dispositivos visuais para webdesigners. A ferramenta para enfrentar a questão é, mais uma vez, teórica. Para poder prosseguir, é preciso, antes, entender a “lógica de visualidade errática da rede”.
Aqui, Rafael Cardoso lança mão da “suspensão da descrença”, conceito talhado pelo poeta e filósofo inglês Samuel Taylor Coleridge no início do século XIX: “Nessas linguagens visuais, tudo que se vê, é aceito como premissa. Tudo que é visualizável se torna possível. (…) No admirável mundo virtual, as regras do velho mundo físico não se aplicam da mesma maneira. Apenas, as estruturas visuais se repetem, e é esta repetição que garante o êxito da empreitada. Seduzidos pela memória cada vez mais distante da verossimilhança, permitimo-nos nos entregar com maior abandono à suspensão da descrença, na esperança ilusória de que venha a ser permanente”.
Abaixo o ensino! Viva o aprendizado!
Para enfrentar esses desafios, o livro propõe novos valores para o design e seu aprendizado, começando com dois tópicos complementares: “Abaixo o ensino!” e “Viva o aprendizado!”.
No primeiro, um ataque à compreensão da história do design como história de suas escolas, algumas questões sobre a regulamentação da profissão e uma visão positiva do aumento do número de escolas de design no país.
No segundo, uma defesa da complementação do ensino com uma prática essencialmente ampliadora de fronteiras para a profissão, que não pode ser vista “como um corpo de doutrinas fixo e imutável, mas como campo em plena evolução”.
E se o design “tende ao infinito – ou seja, a dialogar em algum nível com quase todos os outros campos de conhecimento”, ele pode ser tudo menos cosmético: “A formação de um designer pensante – legado [da Escola] de Ulm – ainda é uma meta a ser perseguida com seriedade por todos que se interessam pelo ensino do design.”
Um comentário sobre o projeto gráfico
Assim como ocorre com diversos outro títulos da editora, o projeto gráfico de Design para um mundo complexo merece um comentário à parte, a começar pelo papel no qual é integralmente impresso, conhecido como Kraft Ouro.
A substituição dos papeis comumente utilizados nos miolos de livros por essa variedade empregada na indústria de envelopes é, a seu modo, um comentário sobre nosso costume de destinar certos materiais a certos usos pelo engessamento de suas funções.
Não se trata, contudo, de simplesmente utilizar um papel “estranho”. Se os envelopes contêm mensagens, e se alguns papéis são mais utilizados para a fabricação de envelopes, eles passam também a significar “embalagem”, independentemente de sua configuração como envelope.
Assim, além de reforçar o caráter de mensagem que permeia todo o livro, o projeto induz a outra experiência fundamental: a leitura se produz numa embalagem (a teoria), que se relaciona de forma sempre incerta e incompleta com seu conteúdo (a realidade).
Dois dispositivos visuais aprofundam e reafirmam esse comportamento: por um lado, todas as imagens – mesmo as fotografias e logotipos – foram transformadas em ilustrações em preto-e-branco desenhadas à mão, próximas de esboços; por outro, a capa e as demais seções do livro são identificadas e permeadas por uma padronagem hexagonal que, multiplicada, produz uma imagem semelhante às “redes dentro de redes dentro de redes”.
Mensagem, embalagem, esboço e rede, o projeto gráfico de Design para um mundo complexo pode ser finalmente entendido como uma metáfora material que transforma em experiência de leitura a afirmação de Aldous Huxley escolhida como epígrafe para o livro: “Nossas teorias mais refinadas, nossas descrições mais elaboradas são apenas simplificações cruas e bárbaras de uma realidade que é, em suas amostras cada vez menores, infinitamente complexa”.
André Stolarski é designer formado em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Dirigiu o departamento de design e museografia do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 1998 a 2000. É sócio-diretor da produtora Tecnopop, onde desenvolve projetos nas áreas editorial, expositiva e de identidade visual.
O texto apresentado foi produzido como release para a editora Cosac Naify.