Ano: IV Número: 44
ISSN: 1983-005X
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Viagem pelo tempo da gráfica brasileira
André Stolarski

Livro: Linha do tempo do design gráfico brasileiro Autor(a): Chico Homem de Melo e Elaine Ramos Editora: Cosac Naify

Postado: 16/04/2012

   

O lançamento do clássico História do design gráfico, de Philip B. Meggs e Alston V. Purvis, parecia ter sido o ápice do projeto que deu origem à coleção de design da editora Cosac Naify no início dos anos 2000.

Comprometida tanto com a produção de obras originais sobre o design gráfico brasileiro quanto com a tradução de obras fundamentais para o design gráfico, em geral inéditas no país, a editora conseguira, finalmente, publicar um de seus grandes clássicos, coroando quase uma década de esforços.

Essa conquista, no entanto, seria apenas o ponto de partida de uma aventura ainda maior, que extraiu sua força justamente das lacunas do trabalho recém-publicado. Notando a timidez da presença do design gráfico brasileiro nas páginas do livro, a editora Elaine Ramos sentiu necessidade de acrescentar a ela um anexo, na forma de uma linha do tempo do design gráfico produzido no Brasil.

Em vez de um anexo, o resultado dessa empreitada foi um trabalho de três anos, que se transformou num volume de setecentas páginas, com mais de mil e quinhentas peças gráficas, realizado por Chico Homem de Melo, responsável pela organização dos trabalhos e pelos textos que comentam e contextualizam as peças apresentadas, e pela própria Elaine Ramos, que também assina a organização do livro e seu projeto gráfico.

A apresentação do livro não deixa dúvida quanto à dimensão do resultado final: “Prepare-se para iniciar uma viagem. Há belezas de toda ordem, surpresas várias, algumas perplexidades (…) que compõem um panorama do design produzido no Brasil no período compreendido entre a primeira década do século XIX e a última do século XX. O conjunto é de tirar o fôlego. Ele exibe uma vitalidade insuspeitada, e permite examinar a cultura gráfica brasileira a partir de novos pontos de vista.”

Sem nenhum exagero, Linha do tempo do design gráfico no Brasil pode ser considerada como a obra de maior fôlego já elaborada sobre o conjunto da produção do design gráfico no país até hoje. Contudo, além de despontar como referência obrigatória para o seu estudo, Linha do tempo também traz a público, pela primeira vez, uma visão de conjunto com a envergadura necessária para inscrever definitivamente essa produção no panorama do design gráfico mundial, além de ampliar nossa própria visão e memória sobre ela, como frisa Chico Homem de Melo.

Nesse sentido, a obra faz parte da família de livros responsáveis por abrir as cortinas de vastos panoramas no design mundial, tais como o catálogo da exposição Graphic Design in America ou o livro Swiss Graphic Design.

Com efeito, o renomado crítico e historiador norte-americano Steven Heller, que assina o prefácio do volume, confessa: “(…) é esclarecedor constatar, pela primeira vez, a incrível e ampla diversidade do design gráfico brasileiro. Não fazia ideia de que o Brasil contava com um legado de design tão antigo, nem que este era tão rico em termos estilísticos e conceitualmente sofisticado. O que descobri, em suma, foi uma cultura visual distintamente brasileira entrelaçada com os estilos internacionais do final do século XIX e início do XX, como o art nouveau e o art déco, e também o modernismo inicial e tardio mesclado ao ecletismo norte-americano”. E arremata: “(…) cheguei à conclusão de que o design brasileiro (…) é uma espécie de tesouro esquecido. Este livro – e a sua cronologia – constitui uma contribuição fundamental para a história do design gráfico, pois a ela acrescenta este capítulo sobre o Brasil, que já não pode ser visto como um mundo paralelo ou perdido.”

Dois séculos, dez capítulos e oito categorias

Linha do tempo… é organizada em dez capítulos. O primeiro é dedicado ao século XIX, o segundo às duas primeiras décadas do século XX e os restantes às demais. Esses capítulos, por sua vez, são apresentados ao leitor numa macroperiodização que os organiza em quatro eras: a da tipografia de chumbo (século XIX), a da ilustração (de início a meados do século XX), a da fotografia (de meados do século XX aos anos 1980) e a era digital (a partir dos anos 1990).

Cada capítulo é precedido por textos curtos, que contextualizam a produção do período e apontam seus principais pontos de interesse, acompanhados de uma lista de efemérides que situam o leitor num contexto mais amplo.

As curtas citações selecionadas para encabeçar os capítulos dedicados ao século XX (“Só a antropofagia nos une” [década de 1920], “E agora, José?” [década de 1940], “O tempo rodou num instante” [década de 1960] e “Viva vaia” [década de 1970]) também são reveladoras.

As obras reproduzidas no livro pertencem a oito categorias fundamentais. “Em primeiro lugar, as três categorias clássicas do design editorial: livros, revistas e jornais. (…) A elas foram acrescentadas mais três categorias consagradas nos compêndios de design e também no imaginário dos designers: sinais, cartazes e discos. Por fim, duas modalidades menos habituais, mas relevantes no contexto brasileiro: selos postais e cédulas (...) De fora, ficaram o design de embalagens, o design do ambiente e o design de publicações avulsas, tais como catálogos e folhetos. Cada um deles é um terreno tão extenso e, ao mesmo tempo, com características tão particulares, que se optou por concentrar as atenções naquelas oito modalidades mais identificadas como sendo o território estabelecido do design gráfico.”

Pluralidade, linguagem, prazer e método

Segundo seus autores, Linha do tempo… “está investida de uma visão que se pretende plural, empenhada em abrigar a dissonância e não apenas em confirmar certezas”. O resultado obriga não apenas a uma ampliação dos horizontes conceituais através dos quais se concebe o design no país, mas também do número de integrantes do time de seus grandes talentos, que ressurgem com força ao longo do livro.

Outro dado fundamental da obra é sua relação visceral com a linguagem. Na apresentação do livro, seus autores deixam claro que “a ênfase [de sua seleção] recai sobre a trajetória da linguagem, mais do que sobre a trajetória da profissão ou de seus profissionais.

Os comentários que acompanham as peças foram produzidos fundamentalmente a partir do contato direto com elas, e não com seus autores. Esses comentários privilegiam um olhar sobre o design próprio de quem está habituado a operar sua sintaxe cotidianamente – um olhar a partir de um ponto de vista interno à linguagem, por assim dizer.”

Por fim, arrematam: “Concebida e realizada por designers gráficos, esta obra é fruto também do prazer derivado do contato com esse mundo de publicações de sabores tão diversos. Sob esse ponto de vista, talvez seu objetivo último seja proporcionar prazer análogo ao leitor neste passeio por dois séculos de design gráfico produzido no Brasil.” O conjunto resultante é um manancial de descobertas e redescobertas.

É mesmo um prazer deixar-se arrebatar pelo Almanach litterario de S. Paulo, revisitar a produção de designers como Eugênio Hirsch, Fred Jordan e Carlos Clemén, deliciar-se com as sofisticadas construções de periódicos como S. Paulo, P’ra Você, Acrópole e Raposa, mergulhar em realizações editoriais como as da “Sociedade dos Cem Bibliófilos”, do livro A marca e o logotipo brasileiros, de Wlademir Dias-Pino, da coleção Giroflê Giroflá de Fernando Lemos, redescobrir marcas como a dos Móveis Artísticos Z e L’Atelier, e recompor uma miríade de memórias gravadas em capas de discos como Orfeu da Conceição e em cartazes de filmes como Bye-Bye Brazil ou Bahia de todos os sambas. Contudo, esse prazer é uma prerrogativa de praticamente todas as peças reproduzidas no livro: se o conjunto é muito variado, sua qualidade é surpreendentemente constante.

Para sustentá-la, a seleção das peças baseou-se em métodos rigorosos. Após longo trabalho de pesquisa preliminar, os autores empreenderam um longo processo de leitura comparada com ênfase na sintaxe, desvelando certos aspectos da linguagem gráfica que se alimentam de suas próprias questões, e que são em grande parte responsáveis pela surpresa e pelo prazer que caracterizam a Linha do tempo... Para que isso funcionasse, contudo, foi necessário lançar mão de um número de trabalhos “de cinco a dez vezes maior que o conjunto final selecionado”, cuidadosamente combinados e recombinados ao longo de meses.

Uma excelente descrição desse processo aparece ao final do livro, num texto intitulado “Crônica do processo de trabalho”, que também esmiúça a estruturação em décadas, a seleção de categorias, as frentes de pesquisa, o projeto gráfico, a redação dos textos e a própria leitura da linguagem.

O papel do texto e do projeto gráfico

O prazer da leitura da Linha do tempo… não se limita à seleção das peças individuais. Tanto os textos que as acompanham quanto seu arranjo gráfico são partes fundamentais dessa experiência.

Os breves comentários de Chico Homem de Melo, que acompanham todas as peças, fornecem chaves preciosas para estimular sua leitura, além de trazerem informações históricas relevantes e saborosas. Finalmente, não se pretendem neutros: apontam forças e fragilidades, expõem limites e diferenças de pontos de vista e não têm medo do humor e da ironia.

A sequência de apresentação das peças e as vizinhanças entre elas, fruto do trabalho de Elaine Ramos, não respeitam uma cronologia estrita, mas “são fruto de uma leitura acurada que entra no mérito da linguagem, visando, em última instância, potencializar a força do conjunto e de cada peça.”

A relação entre texto e projeto gráfico, por sua vez, foi tudo menos hierárquica: “Paginação e redação também se influenciaram mutuamente. A paginação, por si só, já sugeria o viés dos textos. De modo análogo, a redação dos textos deu margem a sugestões de mudanças na paginação, em função desta ou daquela ênfase nos comentários, ou tendo em vista outras possibilidades de agrupamentos que pareciam mais estimulantes.”

Um ponto de partida para novas pesquisas

Apesar de seu caráter único, Linha do tempo… não é uma obra isolada. Como atesta a vasta bibliografia cuidadosamente compilada por temas ao final do volume, ela foi precedida, acompanhada e complementada por uma série de obras de igual importância em regiões específicas, tais como os clássicos História da embalagem no Brasil, Momentos do livro no Brasil, A revista no Brasil entre tantos outros.

O fato é que, mesmo considerando todas essas obras, um levantamento como este apenas reforça a constatação de que há muito por ser estudado. De fato, diversos temas que apareceram durante a elaboração do livro indicaram fecundas linhas de pesquisa, tais como o imaginário carnavalesco, a relação entre publicidade e design nas décadas de 1940 e 1950 e o DIP, Departamento de Inteligência e Propaganda do governo Getúlio Vargas. Isso para não falar no vasto campo aberto à pesquisa dos autores e gêneros aí presentes.

Se Linha do tempo… é o resultado quase acidental da publicação de outro livro, parece também resultar em um poderoso ponto de partida para novas pesquisas.

Não por acaso seus autores finalizam o volume com estas palavras: “Por sua densidade, pela potência impressa nestas setecentas páginas, acreditamos que ele poderá servir de plataforma para novas investigações no vasto território do design gráfico produzido no Brasil.”
 

 

André Stolarski é designer formado em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Dirigiu o departamento de design e museografia do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de 1998 a 2000. É sócio-diretor da produtora Tecnopop, onde desenvolve projetos nas áreas editorial, expositiva e de identidade visual.

O texto apresentado foi produzido como release para a editora Cosac Naify.

 


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