Ano: I Número: 5
ISSN: 1983-005X
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Arte e arquitetura nos azulejos de Athos Bulcão
Ingrid Moura Wanderley (texto e fotos)

Dentro da produção moderna e contemporânea das artes plásticas e arquitetura brasileira, Athos Bulcão se destaca com uma obra que reclama justificados estudos e questionamentos. Considerado um artista múltiplo, pela sua facilidade em penetrar e trabalhar em diversas áreas das artes plásticas e também por possuir domínio de técnicas diferentes. Ao longo de sua carreira, além do exercício contínuo do desenho e pintura, elabora figurinos para peças de teatro, desenha capas de livros e revistas, trabalha com fotomontagens e cria séries “máscaras” e “bichos”.

É, no entanto, através da sua intervenção artística pelo uso de painéis de azulejos que ele alcança mais amplo reconhecimento. Compreendendo sua obra no contexto das artes e da arquitetura brasileira no século XX, a análise dos seus painéis de azulejos revela o intento de operar no sentido de uma integração com o espaço arquitetônico, dotando-o de um forte teor de uma arte pública.

Arte, arquitetura e arte pública

Uma forte característica da obra de Athos Bulcão é a opção por múltiplos materiais e suportes: papel, lápis, tela, tinta, cerâmica, concreto, mármore, gesso, massa de modelar, madeira. Porem, existe um alto grau de concentração para que essa multiplicidade alcance a uniformidade de sua obra. Trabalha com rigor e não se permite dispersar.

O primeiro contato com azulejo é quando começa a trabalhar com Oscar Niemeyer, aprende experimentando, errando, aprimorando o olho. Um dos primeiros trabalhos com azulejos é o painel para o Hospital Sulamérica (Hospital da Lagoa) em 1955, projeto de Niemeyer e Hélio Uchôa, no Rio de Janeiro, onde usa negativo e positivo de um desenho em azul e branco. O azulejo tem um desenho geométrico simples e já começa a ser encarado como módulo único e mutiplicável.

Em Brasília seus primeiros painéis de azulejo foram o da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima e o do Brasília Palace Hotel, ambos projetos de Niemeyer. O primeiro e único trabalho com simbologia figurativa é o azulejo da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, 1957, onde cria dois módulos sobre fundo azul de tonalidades diferentes e contornados por um friso branco, reforçando a idéia do azulejo como módulo, uma estrela de Belém na cor preta e uma pomba branca, posicionada para baixo. A pomba além de significar o Espírito Santo, faz alusão ao plano piloto de Brasília.

No painel do Brasília Palace Hotel, 1958 parte de conceitos abstratos com deslocamentos das formas, elementos rígidos com objetivo de não destruir a simplicidade do ambiente arquitetônico. São azulejos que carregam o mesmo princípio dos azulejos do Hospital Sulamérica, negativo e positivo em azul e branco, de um mesmo módulo.

Athos admite que começou a aprender e entender melhor a arquitetura com Oscar Niemeyer. Sempre trabalhando a convite dos arquitetos e amigos, dentre os quais se destacam Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, o Lelé; também trabalha em parceria com Sérgio Parada, Haroldo Pinheiro, Cláudio Queiroz, Persina, Glauco Campelo, Hélio Uchôa, entre outros.

O Teatro Nacional de Brasília é uma das obras mais citadas e famosas, que exemplifica bem o entrosamento do seu trabalho com a arquitetura, em cujas fachadas laterais desenvolve um painel com blocos de concreto, um jogo de luz e sombras. Neste relevo em concreto adota a idéia de cubos quadrados e retangulares monocromáticos em branco, utiliza o mesmo processo dos azulejos, ou seja, o ponto de partida é uma estrutura modular, neste caso um todo com partes medidas e coerentes, organizadas segundo relações numéricas, posicionadas proporcionalmente para serialização. Sob a incidência do sol do planalto de Brasília se estabelece um jogo de luzes e sombras, que transforma o painel a todo o momento, modificando suas formas de acordo com a luz, salientando os volumes e planos, multiplicando a linguagem da geometria (FREITAS, 1997).

Segundo Telles (1997), o relevo das fachadas do Teatro Nacional é considerado um momento de destaque na obra de Athos. Não só pela sua grandeza física, como também pela presença imponente do painel em relação ao edifício e também em relação à própria cidade.O painel define esteticamente o edifício, com sua forte presença ressalta a confiança que existe entre o arquiteto e o artista, onde é difícil saber o que pertence a um e o que pertence a outro, mas fica bem claro a perfeita comunhão de intenções.

Brasília, sem duvida, concentra maior parte de sua obra de integração com a arquitetura. Sua opção de se transferir para lá, escolhendo-a como sua cidade, em detrimento do Rio de Janeiro com todo seu fervor e agitação artística e cultural, demonstra a personalidade tímida e silenciosa do artista, cuja obra é reconhecida e elogiada pela maioria dos críticos de arte. É um artista que, no silêncio e exílio voluntário em Brasília, vem dedicando sua obra ao bem-estar do povo.

Transfere para sua criação as qualidades de seu caráter: afabilidade e cordialidade. Seus painéis de azulejos cumprem função especial em Brasília - cidade, às vezes, inóspita: aproximam, dialogam, oferecem sombra, proporcionam bem estar; não são colocados para preencher algum espaço não resolvido, são pensados desde o início do projeto do edifício (MORAIS, 1998).

Na maioria das vezes participa no projeto desde o início, o que, sem dúvida, ajuda na integração do trabalho. Muitas vezes, pela sua experiência, faz sugestões de cores e materiais que os arquitetos acabam aceitando plenamente e que realmente interferem no ambiente, sempre complementando para uma melhor solução arquitetônica.

É um artista com sensibilidade para trabalhos em espaços públicos, produzindo obras que se incorporaram à paisagem e se encontram acessíveis aos cidadãos, (FRANCISCO, 2001). É a favor da democracia, da arte social feita para o povo, talvez integrado também ao contexto político vivido por ele. Seu interesse e respeito focam-se no público que entra em contato com sua obra por acidente, no transeunte, a caminho de casa ou do trabalho, naquele que não tem conhecimento de artes plásticas.

A arte pública geralmente aparece para resolver uma carência ou um problema da arquitetura e do urbanismo, usa a pintura e a escultura sem perder sua autonomia, para adicionar beleza sem se confundir com a arquitetura e com o espaço público. As obras de Athos, por sua vez, vão ao encontro dessa situação comum. Seus painéis, relevos, divisórias, portas, paredes, não se afastam da arquitetura que os recebe, que os compreende. Seus painéis, pelo contrário potencializam a arquitetura Opta pelas formas abstratas em seus trabalhos de intervenção arquitetônica. Sua preocupação está em usar poucos elementos e uma escala perfeita e equilibrada. Segue a experiência de Fernand Léger, que prefere usar uma composição abstrata em grandes quadros e a figura humana em pequenos espaços (FARIAS, 2001).

Para Costa (1987) as obras de Athos “estão estética e filosoficamente, comprometidas com a proposta do projeto arquitetônico”, reafirmando seu valor e sua verdade. Não encara o espaço onde seu trabalho é inserido como suporte passivo ou como uma “oportunidade para investir no gigantismo” destacando individualmente seu produto. Ao contrário, a partir da arquitetura trabalha em função desse espaço, cria jogos de ver e pensar que aumentam sua riqueza e seu valor.

Athos Bulcão atinge os preceitos necessários que são o de deixar o arquiteto e o edifício como autores e o artista, o colaborador, mas sabe tornar esta colaboração essencial (TELLES, 1997). Para Costa (1987), a integração das artes e da arquitetura ocorre quando o artista convidado a resolver certos espaços propostos pelo arquiteto, o faz de maneira harmônica, além de compor, a obra se confunde com o espaço criado pela arquitetura.
Autonomia e anonimato: processo de trabalho

Certamente deve ser conhecido pelos habitantes de Brasília, por ser o criador dos relevos do Teatro Nacional, e talvez eles não associem a seu nome outras obras que se espalham pela cidade, tão próxima das pessoas, tão familiar pelo contato cotidiano, que já nem percebem que se trata de obra de arte. A esse artista não interessa sua mitificação, há certa negação da autoria em sua obra, no momento que não assina seus painéis, na medida em que prefere o anonimato, deixando que sua obra seja consumida do jeito que planejou, ou não planejou, quando os operários interferem e contribuem na composição do painel. Nesse momento o artista se preserva, numa postura não vaidosa.

Na sua integração com a arquitetura firma sua marca própria, que se mantém inconfundível, ao mesmo tempo em que se desinteressa pela assinatura. Pode-se reconhecer seu trabalho independente da assinatura, ou seja, a sua assinatura está na combinação das cores, nos motivos geométricos, nos jogos e combinações da composição, na intenção da sua proposta de se misturar ao ambiente, de se integrar ao espaço.

O que marca grande parte de sua produção de painéis de azulejos, é a criação em série, com a utilização de elementos repetidos. É através do artesanal que nascem seus trabalhos, obedecendo a um método racional, partindo na busca de clareza e objetividade.

Nos painéis de azulejos, o módulo, a unidade mínima e indivisível se mantém, pois o desenho está sempre dentro dos limites da peça de azulejo, geralmente quadrada, 15x15 cm ou 20x20 cm. Porém, ao unir uma peça as outras quatro, e assim sucessivamente, o desenho se expande para ultrapassar os limites iniciais, ganhando escala imprevista, multiplicando-se virtualmente ao infinito e resultando na expansão do desenho para a escala urbana, sem perda de peso ou complexidade. Ao olhar, de imediato se vê o todo, em seguida se vê a parte, depois com um olhar mais atento se notam as relações estabelecidas entre eles, de uma análise combinatória que guia a composição. Em alguns painéis, a colocação resulta de um padrão estabelecido: 3 x 1, quando a cada quatro peças, apenas uma pode ter variações (NOBRE, 1999).

A combinação dos módulos na maioria dos painéis parece aleatória, mas surpreende à medida que mantêm certa uniformidade, tanto nas cores, como nas formas, resultados de trabalhos estudados para gerar composições desejadas. Em certos painéis, o desenho geométrico do módulo lembra um logotipo, em outros, os módulos encaixam-se formando uma seqüência geométrica. As linhas e curvas dos módulos, às vezes, dão continuidade, às vezes, rompem-se, os círculos nunca se fecham.

As fachadas da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, projeto de Niemeyer, também chamada a igrejinha de Dona Sarah, desencadearia o processo de abstração na sua obra de integração à arquitetura, abandonando o figurativo e sua subordinação ao tema e concentrando-se na operação de funcionamento do plano arquitetônico, fixando-se na geometria. Não chega a aderir às manifestações mais radicais do abstracionismo, instalado a partir dos anos 50, no eixo Rio – São Paulo. “A seu modo, e naturalmente informado pelos movimentos de renovação artística no Brasil, Athos Bulcão constrói uma obra muito pessoal, única, que ganha intensidade justamente em torno dos problemas inerentes à produção arquitetônica moderna em Brasília” (NOBRE, 1999). Suas intervenções abstrato-geométricas o colocam entre os maiores artistas da linha construtiva – concretos e neoconcretos. (1)

Seus painéis e intervenções são jogos visuais que perturbam o olhar, são jogos lúdicos, onde a genialidade é a simplicidade. Com padrões simples, consegue um resultado surpreendente. Os painéis geométricos geralmente são constituídos por módulos de formas fechadas, lineares ou circulares, polígonos complexos e coloridos. Curvas e retas, círculos e quadrados que se encaixam e desencaixam num ritmo alucinante e cortado, numa harmonia que seduz o olhar, pois numa desordem e combinação aleatória consegue manter uniformidade e equilíbrio.

O artista faz o desenho, olha, pinta na cartolina com guache e corta os quadrados (módulos) e começa a brincadeira, a arrumá-los em diversas posições, sempre no esquema de 4 x 4 (jogo de quadro), freqüentemente em combinações do verde-azul e amarelo-laranja (CABRAL, 2005).

Geralmente, faz composições de módulos que apresentem várias possibilidades. Nos painéis, usa de um a quatro módulos diferentes e um número pequeno de cores (no máximo cinco), sendo muito comum a presença de somente duas, dentre elas o fundo branco do azulejo (base esmaltada). Criou o “principio de composição” onde os operários é que fazem a criação da composição do painel de azulejos e usa em muitos dos seus trabalhos esse método.

Athos Bulcão é um profissional que sabe pensar a arte e a arquitetura, valorizando os espaços, criando uma identidade própria, usando a arte em função do espaço e dos usuários. Atento às influências do contexto artístico no Brasil, o artista opta por soluções geométricas como temas de seus painéis de azulejos comprometidos com a proposta arquitetônica do edifício; ele trabalha em função da arquitetura, destacando-a e valorizando-a.
Por opção, não assina seus painéis de azulejo, pois quer que sua obra se confunda com a paisagem da cidade, ou que se integre totalmente ao edifício onde esta inserida. Com apurado senso estético, educa a população que não tem contato com arte.

Em contrapartida a essa postura retraída e anônima, surge um grupo de pesquisadoras de Brasília com apoio da Fundação Athos Bulcão, inventariando as obras do artista: elaboraram o projeto Brasiliathos e um projeto de educação patrimonial, Circuito Educativo Brasiliathos, com objetivo mais amplo de sensibilizar a população para a valorização dos nossos bens patrimoniais, os riscos de depredação do patrimônio e importância da qualidade de vida gerada do aspecto artístico-cultural da cidade pela integração arte-arquitetura das obras do artista Athos Bulcão.

É interessante lembrar que as ações em favor de disseminação da cultura e incentivos a pesquisas e estudos artísticos e culturais ainda são poucos e pontuais no nosso país.


(1) Para entender melhor o conceito de arte neoconcreta, a qual perpassa o trabalho do Athos Bulcão, ver Amaral Aracy (coord.) Projeto construtivo na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.


Referências bibliográficas

CABRAL, Valéria.  Valéria Cabral: entrevista [abr. 2005].  Entrevistadora: Ingrid Moura Wanderley.  Brasília.

COSTA, Marcus de Lontra.  Athos Bulcão sinfonias da modernidade.  Módulo, Rio de Janeiro, n.95, p.32-37, 1987.

FARIAS, Agnaldo.  Construtor de espaços.  In: ATHOS Bulcão.  São Paulo: Fundação Athos Bulcão, 2001.  p.34-53.

FRANCISCO, Severino.  Habitante do silêncio.  In: ATHOS Bulcão.  São Paulo: Fundação Athos Bulcão, 2001.  p.322-335.

FREITAS, Grace.  Módulos em expansão. Correio Braziliense, Brasília, 1997. In: Textos críticos selecionados, Brasília, Fundação Athos Bulcão.

MORAIS, Frederico. Humanizador dos espaços de Brasília. Jornal de Brasília, 2 jul. 1998. Edição extra: Athos Bulcão 80 anos.

NOBRE, Ana Luiza. Athos Bulcão - Destino: Brasília.  Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, v.15, n.85, p.37-44, ago./set. 1999.

TELLES, Claudio.  Sintonia de arte e arquitetura. Jornal de Brasília, 1997. In: Textos críticosselecionados, Brasília, Fundação Athos Bulcão.


Ingrid Moura Wanderley é professora no curso de Design da Facamp, autora da dissertação de mestrado Azulejo na arquitetura brasileira: os painéis de Athos Bulcão, defendida na Escola de Engenharia de São Carlos, USP.

 


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