Desenho Industrial
Julio Roberto Katinsky, 1983
Introdução
O desenho industrial não compareceu ainda integrado num conjunto maior da história geral da arte.
Seu estudo, em nossa cultura, sempre foi abordado através de monografias especializadas. Nesse sentido o livro de Nikolaus Pevsner, Pioneiros do movimento moderno, de 1936, continua sendo a exposição mais feliz e aqui também será utilizado como modelo.
Além disso, a introdução do desenho industrial como problema e discussão teórica é tão recente no Brasil, que necessitamos nos referir a fatos ocorridos na Europa e Estados Unidos, para situar corretamente os problemas aqui discutidos.
O desenho industrial é um capítulo ainda pouco estudado da separação ocorrida, a partir da Renascença italiana, entre o “projeto” e a “execução” dos objetos. Efetivamente é então que se identificam estes dois termos como complementares, sem dúvida, mas separados.
Podemos, em primeira aproximação, definir o desenho industrial como sendo o projeto de bens com vistas à sua produção através da indústria moderna.
E podemos assinalar o surgimento de um grande debate público onde os dois termos, “projeto” e “indústria moderna”, comparecem como preocupações centrais a partir de meados do século passado. Mais precisamente, a partir da grande Exposição de Londres de 1851.
Para clareza de exposição, dividiremos esse debate em quatro períodos: o primeiro, de meados do século XIX até os finais da década de 1880. Nessa década surge o Art-Nouveau se esgota entre 1910 e 1920. O terceiro período se inicia com as experiências francesas a partir de 1916 – Le Corbusier (1887-1965) – e alemãs, de 1917 – Walter Gropius (1883-1969), Mies van der Rohe (1886-1969) –, encerrando-se com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O quarto período principia no segundo pós-guerra e se encerra aproximadamente entre 1970 e 1975, com o fim da “guerra fria”. Daí em diante as discussões têm sido menos acentuadas, quase como se pretendessem todos ainda fazer um balanço das perdas e ganhos (1).
Antecedentes do Art-Nouveau
O primeiro período se caracteriza por uma série de iniciativas que vão confluir no Art-Nouveau. As principais são as seguintes: a crítica inglesa aos produtos da indústria com a reação pré-rafaelita e Arts and Crafts; a grande expansão da tecnologia provocada pela indústria do século passado, em particular a ‘engenharia civil’ e mecânica; finalmente, mas não menos importantes, a criatividade não institucionalizada, resultado do largo uso dos novos materiais industriais. Examinaremos um pouco estas tendências.
A crítica inglesa
A Exposição Universal de 1851 na Inglaterra revelara, aos olhos atônitos dos intelectuais mais sensíveis, as mais grossiras contrafações das formas do passado: colunas de ferro fundido imitando vagamente as formas de colunas gregas, dóricas ou jônicas, ou objetos de uso sobrecarregados com ornamentos pilhados principalmente do Rococó e Barroco. Sob esse ponto de vista, qualquer exposição industrial, mesmo atual, é um verdadeiro museu de horrores. Contra essa manifestação inequívoca de barbárie pronunciaram-se os artistas pré-rafaelitas, especialmente William Morris. Esses artistas dedicaram-se a demonstrar na prática uma outra atitude, procurando levar à vida cotidiana os seus ideais de beleza e aperfeiçoamento humano. Projetaram móveis, tapeçarias, vidraças (vitrais da tradição gótica), em oposição aos vulgares objetos industriais. Mas, se no início a crítica era eminentemente estética, insensivelmente William Morris (1838-96), pelo menos, terminou por criticar o sistema social como um todo, denunciando o modo capitalista de produção como o responsável pelo desconcerto. O poeta e desenhista inglês, no fim de sua vida, tornou-se admirador de Marx, amigo de Engels e outros socialistas notórios.
As posições de W. Morris, entretanto, permaneceram altamente contraditórias: socialista quanto ao modelo político e econômico, propunha um modelo de artista em que o consumidor quase se confundia com o produtor; na medida em que todos praticassem arte (inclusive nos utilitários) o artesanato poderia, talvez suprir todas as necessidades humanas.
O movimento Arts and Crafts (Artes e Ofícios), continuação do grupo pré-rafaelita, empolgou a imaginação de inúmeros artistas e cidadãos empenhados em levar os benefícios da ‘cultura e do progresso’ a todas as camadas da população. E é sintomático que, já na década de 1890, até mesmo em São Paulo era fundado o Liceu de Artes e Ofícios, para a ‘instrução popular’, pelos mesmos republicanos ‘históricos’ que iriam em seguida fundar a Escola Politécnica de São Paulo (2).
A expansão tecnológica
O segundo fator apontado, a grande expansão da tecnologia, é devido em grande parte, no século XIX, à atuação dos técnicos formados pelas escolas de engenharia. Estas, na sua quase totalidade, foram constituídas segundo o modelo francês da École des Travaux Publiques (seu primeiro nome), por Carnot e Monge, dois homens comprometidos com a Revolução Francesa. Seu objetivo primordial era dotar a França dos quadros necessários para o desafio econômico e comercial que representava a disputa pelos mercados com a grande potência industrial da época, a Inglaterra.
Este objetivo foi razoavelmente alcançado: graças à Politécnica, a tecnologia passa a ser, no século XIX, predominantemente francesa; ou se desenvolve sob sua influência (repetindo inúmeras escolas a receita francesa). Só no Brasil, país na época de 80por cento de analfabetos, fundam-se duas: a do Rio de Janeiro e a de São Paulo.
Entre os vários campos de brilhante atuação, a engenharia marcou vitórias expressivas também na construção: grandes vãos foram vencidos em obras mais institucionais que econômicas, mas que impressionaram seus contemporâneas: pontes sobre o Douro, Garabitt, a gigantesca ponte de Brooklin, ou a torre Eiffel.
Os artistas art-nouveaux chegaram a exaltá-los como ‘novos arquitetos’. Exaltação que perdurou nos historiadores da arte da primeira metade do século XX. Na verdade a tecnologia enquanto tal é alheia a qualquer pensamento estético(3).
A criatividade não institucionalizada
Já desde as primeiras décadas do século, as grandes potências européias impunham e colocavam à disposição dos mercados mais distantes os novos materiais, produtos da indústria moderna: ferro fundido e vidros planos transparentes. O uso criativo do vidro transparente já é assinalado por Vauthier (1845-1916) no Recife, cerca de 1840 (4). O ferro fundido foi aceito assim que surgiu no mercado e foi largamente utilizado em construções freqüentemente provisórias, ou ‘desimportantes’ do ponto de vista da arquitetura mais comprometida com a ostentação das qualidades que os grupos dominantes pretendiam exibir.
Foram centenas de toneladas de ferro fundido, desembarcadas nos portos americanos, adaptado como grades para balcões, suportes de lampiões, postes e esteios. Configuraram as faces das cidades latino-americanas, ostentando um graça nos seus desenhos que perdura ainda em muitos edifícios; obra de artistas anônimos e já assinalada ainda em muitos edifícios; obra de artistas anônimos e já assinalada por Lúcio Costa (1902-) em seu clássico estudo: “Documentação necessária” de 1937”:
“Verifica-se, assim, portanto, que os mestres-de-obra estavam, ainda em 1910, no bom caminho, fiéis à boa tradição portuguesa de não mentir. Eles vinham aplicando, naturalmente, às suas construções meio feiosas todas as possibilidades da técnica moderna, como, além de fachadas quase completamente abertas, as colunas finíssimas de ferro, os pisos de varanda armados com duplo T e abobadilhas, as escadas também de ferro, soltas e bem lançadas – ora direitas, ora curvas em S, outras vezes em caracol e, ainda, várias outras características, além da procura, não intencional, de um equilíbrio plástico diferente.
A fachada da rua – como um ‘nariz-postiço’ – ainda mantém certa aparência carrancuda; mas ao lado do jardim, que liberdade de tratamento e como são acolhedoras; e tão modernas – puro Le Corbusier” (nota do autor acompanhando o croqui) (5).
Esses elementos industriais eram apostos pois a corpos de fábrica tradicionais, compactos, ‘pesados’, e conferiam ao conjunto um contraste, acentuando um aspecto aéreo, transparente. E essas varandas de ferro e escadas, justamente valorizavam artisticamentecollages e ao ready made. (porque eminentemente plásticas) esses produtos da indústria. Pode-se dizer que a indústria inglesa (ou continental) ‘vestiu’ as carrancudas fachadas coloniais a tal ponto que hoje, indo a Ouro Preto ou a La Paz, dificilmente podemos imaginar como eram essas cidades antes da Independência. Não se trata de abastardamento dos elementos industriais mas, ao contrário, de legítimo desfrute das novas possibilidades abertas pelos novos elementos fabricados. Esse apreço foi tão generalizado que, constata-se hoje, cruzou o Atlântico e através de profissionais recém-libertos no Brasil instalou-se também na África, com uma ‘técnica artística’ ou ‘projeto’ que irá obter grande ressonância no começo do século XX, na vanguarda européia.
Mas não foi só na periferia que se deu essa manifestação de criatividade. Fenômenos semelhantes terão ocorrido também na Europa com as mesmas características: edifícios provisórios, ou suficientemente ‘insignificantes’ para não despertar interesse de profissionais habilitados. Em seus projetos infelizmente pouco dessa intensa atividade criadora foi convenientemente registrado e documentado.
E de fato, pelo menos em um lugar, temos informações mais completas. Trata-se daquelas construções aparentemente utilitárias insignificantes como técnica e onde as preocupações da ‘grande estética’ estavam ausentes.
Como conseqüência do renovado interesse generalizado pelas ciências, principalmente experimentais, organizaram-se jardins botânicos em toda a Europa, onde se pretendia estudar a flora, não mais por desenhos ou espécimes mortos, mas através do ciclo completo da vida. O resultado mais palpável desses jardins pode ser exemplificado na aclimatação de uma espécie brasileira, a Hevea brasiliensis, a árvore da borracha, para o clima e a região da Malásia, aclimatação essa relaizada trabalhosamente na Inglaterra. Para conservar plantas de um clima tão diverso quanto o inglês, fez-se necessário construir pavilhões especiais que reproduzissem as condições climáticas das terras de origem dessas plantas exóticas. São as célebres estufas que caracterizam de tal modo os jardins botânicos científicos, que foram construídas até mesmo no Brasil.
Paxton (1801-65), por exemplo, o construtor do grande pavilhão da Exposição de 1851, era jardineiro e construiu previamente algumas das mais belas estufas conhecidas. E foi essa experiência concreta e até então anônima que o habilitou a construir o célebre pavilhão.
Alguns arquitetos mais sensíveis, como Labrouste (1801-75), tentaram, com êxito, absorver essas novas lições ministradas pela criatividade não erudita. Já no século XIX, sua biblioteca Sainte Geneviève foi projetada com um ‘envelope’ de pedra e alvenaria, sendo o interior liberado por finas colunas e abóbadas de ferro.
Mas foram os artistas art-nouveau que com mais franqueza e determinação absorveram esse novo modo de projetar.
O Art-Nouveau 1880-1914
O Art-Nouveau se espalhou pela Europa, tomando vários nomes e apresentando uma tal riqueza de soluções que é difícil, à primeira vista, reconhecer-lhe a unidade. De fato,na França e Bélgica chamou-se Art Nouveau, na Itália, Floreale, na Alemanha chamou-se Jugendstill e Sezession no Império austro-húngaro. Nos E.U.A., Escola de Chicago (6).
A despeito de estéticas (poéticas) regionais ou mesmo pessoais que não interessa examinar em detalhes aqui neste capítulo, podemos resumir as páginas precedentes, estabelecendo as fontes fundamentais do movimento Art-Nouveau da seguinte maneira: confluem para esse movimento a crítica universitária inglesa (e socialista), representada por William Morris; a tecnologia moderna representada pelos engenheiros franceses; e a criatividade não institucionalizada, representada, na Europa, por Paxton.
Nenhuma dessas fontes entra simplesmente somando-se umas às outras, mas numa síntese que até certo ponto nega as premissas sobre as quais se apóia. Do movimento inglês, o Art-Nouveau aceitou as proposições de totalidade do projeto do ambiente humano. Mas ao mesmo tempo negou a obrigatoriedade de ‘salvação da arte’ pela recusa da indústria moderna.
Aceitou a tecnologia do século XIX, mas ‘desvirtuou-a’ na medida que a submeteu a um imperativo estético que lhe era alheio. Incorporou a estética não institucionalizada, mas a encaminhou para a individuação, para a caracterização do instante único da ação do artista ‘livre’ da sociedade burguesa. Há uma quarta fonte, subterrânea, que é o Neoclassicismo transmitido pela Escola de Belas-Artes e da qual nenhum artista escolarizado dos séculos XIX e XX escapa, mas que ainda não está suficientemente caracterizada criticamente.
O Art-Nouveau é o primeiro movimento de arte ocidental em que podemos caracterizar o desenho industrial. Há uma unidade fundamental na obra de seus artistas, que nos permite reconhecer as mesmas diretrizes estéticas: seja numa capa de livro, num móvel, num vaso ou jarra, ou numa grande construção, teatro, fábrica ou navio.
Dessas diretrizes convém destacar três, pois elas perduram até nossos dias. São as seguintes:
a) o objeto é condicionado (ou se cria ou se expressa) pelo material.
b) o ‘objeto’ é condicionado (ou se cria ou se expressa) pela estrutura.
c) o objeto é condicionado (ou se cria ou se expressa) pela função.
Estes três princípios se verificam não só nas obras como nos textos de seus mais categorizados representantes: Van de Velde (1863-1957), Sullivan (1856-1924), ou, no Brasil, em Dubugras (1868-1933). E são a contribuição permanente desse movimento para a estética do século XX.
O Art-Nouveau provara, pela sua difusão, que a ‘arte’ não estava morta na nova civilização emergente da indústria moderna. O passo seguinte, e obrigatório, seria a reorganização da ‘escola’, local de transmissão para as novas gerações dessa nova ‘arte industrial’.
É evidente que, perante os desafios enfrentados, a velha academia com seu ensino gradativo ancorado nas ‘artes do desenho’ não poderia prosseguir. Não poderia responder à intimidade dos materiais a que o novo projetista deveria se habituar. Nem às novas estruturas, a exigir outras considerações estéticas que não a memorização das proporções de antigos palácios. Nem às novas ‘funções’ propostas pelo cotidiano das novas cidades.
Mas é paradoxal que o Art-Nouveau tenha contribuído para renovar a escola justamente quando já tinha deixado de ser o movimento culminante da arte européia.
De fato, se considerarmos o início desse movimento (com as primeiras obras do barão Victor Horta (1861-1947), na Bélgica, nos meados da década de 1880, podemos assinalar seu apogeu na primeira década do século XX.
Em poucos anos, entretanto, o Art-Nouveau já era um movimento do passado, sendo trabalho de especialistas verificar os vínculos existentes entre os arquitetos e artistas que se destacaram no primeiro pós-guerra e seus antecessores imediatos.
Custa a compreender como um movimento tão promissor, cuja estética totalizante ‘resolvera’ um pesadelo de pelo menos cem anos (ou seja as relações da ‘arte’ e da ‘indústria’), se esvaziasse feito um balão de gás, melancolicamente, em tão pouco tempo.
Uma possível causa para esse fenômeno é que o Art-Nouveau não conseguiu estabelecer uma doutrina coerente e organizada sobre a cidade. Não há um ‘urbanismo art-nouveau”, como existe uma teoria (e prática) do desenho industrial e da arquitetura. O Art-Nouveau ‘permanece’ na cidade mas não repropõe a cidade. Ao contrário, ‘conforma’ a cidade existente sem lhe acrescentar nenhum ‘conteúdo polêmico’, por assim dizer. Esta afirmação é particularmente visível em Chicago nas áreas onde os arquitetos americanos companheiros de Sullivan mais atuaram – o compromisso dos edifícios com a trama das ruas é praticamente o mesmo que o de Paris de Percier e Fontaine.
Nesse sentido, podemos reconhecer que as grandes contribuições para ‘pensar’ a cidade não vieram das ‘áreas profissionais’ mas dos filantropos, dos socialistas de vários matizes e dos seus opositores conservadores, enfim, dos políticos.
Os arquitetos, grosso modo, no século XIX, ficaram ligados ou conservaram o ideário do Classicismo francês adaptado cenograficamente às novas necessidades, resultantes do contínuo crescimento urbano, principalmente na Europa.
Ora, é justamente nessa área que se situam as maiores preocupações dos arquitetos posteriormente agrupados sob o nome de International Style ou Racionalismo, nas primeiras décadas do século XX. Caricaturando um pouco, podemos dizer que o ideário art-nouveau mostrou-se capaz de resolver uma cafeteira ou binóculo, do ponto de vista de absorver a produção industrial; mas que foi incapaz de colocar essa mesma produção industrial a serviço da cidade. Denuncia-se assim o caráter eminentemente privatista do ideário art-nouveau.
Ainda que ostensivamente apoiasse a posição de defesa do projeto para o produto standard, Gropius centrava entretanto as mais altas preocupações da escola na arquitetura e urbanismo. Com o advento do nazismo os professores tiveram de emigrar e a Bauhaus foi fechada (não se coadunava com a política de expansão militar do terceiro Reich).
O arquiteto Le Corbusier, em contrapartida, em relação à pretendida contradição, de 1914 a 1916, nos projetos das casas DomIno, dava a primeira demonstração prática de unir elementos – tipo e projetos individualizados, singulares. Preocupação que conduziu com êxito até o final de sua vida (9).
Período da ‘guerra fria’ 1945-1975
Após a Segunda Guerra Mundial, cogitou-se de reorganizar o ensino do ‘projeto industrial’, na Alemanha, encarregando-se dessa tarefa Max Bill (1907-), pintor, gráfico e desenhista industrial suíço. A escola oficialmente foi fundada em 1954. Nessa escola, levou-se a postura do projeto industrial para uma independência da construção corrente. Foi nessa escola que o ideal do produto standard (e do projeto para o produto standard) foi levado às últimas conseqüências.
Procurou-se definir o desenho industrial como atividade específica, sem vinculações com a cidade, mas tão-somente com o ‘mercado’, que nem seria nacional. É claro que eles não perceberam mas erigiram como fundamento de toda realidade de projeto o mercado multinacional. É interessante notar que nesse período são valorizados os arquitetos que recusam a utopia urbana, restringindo-se a projetos que acentuam seja a ‘estrutura’ como expressão, seja a poética dos materiais industriais ou mesmo tradicionais. São, nos E.U.A., os arquitetos Eero Saarinen (1910-61), Edward Stone (1902-), Louis Kahn (1901-). Na Inglaterra, o casal Peter Smithson (1923-) e Allison Smithson (1928-) e James Stirling (1924-).
Os arquitetos discípulos de Le Corbusier, como o japonês Tange e o brasileiro Niemeyer (1907-) sofrerão um tratamento discreto da crítica mundial nesse período.
A inviabilidade dessa solução aparentemente sólida e lógica já se mostrava nos primeiros anos da década de 1960, sendo a Escola de Ulm fechada em 1967. Seu término assinala a primeira derrota da ideologia da ‘guerra fria’, e a proposição insensata de reduzir todo o destino humano às projeções dos estados-maiores das grandes empresas multinacionais.
De 1967 em diante, nos grandes centros industriais não surgiram propostas globalizantes que merecessem discussão. Ao contrário, surgiram soluções ‘nacionais’, como o desenho industrial italiano, dinamarquês, sueco, inglês, japonês.
O interessante é que todos os países ‘vendem’, com um parque industrial muito menos potente que o americano, projetos industriais para os E.U.A.. Isso não deveria nos espantar pois a indústria mecânica, no começo deste século, era, no máximo, incipiente no Brasil e, no entanto, um dos mais imaginosos projetistas de aviões da época era um brasileiro. Refiro-me evidentemente a Santos Dumont, cuja importância não pode ser subestimada.
Algumas propostas, entretanto, e representando o inverso do ‘consumo compulsório’ do período da ‘guerra fria’, começam a ser ensaiadas: reciclagem de estruturas, fontes alternativas de energia, ‘tecnologias alternativas’, mais promessas que passos conquistados e definitivos.
A partir destas premissas, o exame dos acontecimentos no Brasil torna-se mais transparente.
Brasil 1900-1980
Já abordamos, de passagem, o ‘desenho industrial’ no Brasil no século passado. Entretanto forçoso é reconhecer que estudos monográficos detalhados, para cada área deste país imenso, não foram feitos. É certo que conhecemos as preocupações de Le Breton, logo no início do século, no Rio de Janeiro. Do conselheiro Ruy Barbosa nos comentários de 1882 sobre a lei da reforma do ensino primário ou de Manuel Quirino, na Bahia, nos finais do século XIX e começo deste século. Mas as pesquisas hoje mal se iniciam e podemos esperar que as universidades brasileiras contribuam, de forma substancial, para que esse quadro se esclareça com a precisão de que necessitamos (10).
O desenho industrial no Brasil, ou seja, o projeto para a indústria efetivamente começa, de maneira tênue, a ser discutido com a introdução do movimento Art-Nouveau. À primeira vista este movimento seria um ‘estilo’ igual aos outros do período ‘eclético’. E de maneira nenhuma pode-se compará-lo com o neoclássico, por exemplo, que se espalhou pelo Brasil inteiro. O Art-Nouveau teve alguma expressão em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas pode-se verificar que, mesmo nesses dois centros, o Art-Nouveau não cumpriu o papel que dele se poderia esperar, pelo menos se comparado ao seu similar europeu.
Mesmo assim, nos grandes ‘palacetes’ construídos em Higienópolis, Bela Cintra e avenida Paulista, na medida em que os arquitetos pela própria ‘coerência do estilo’, se encaminhavam para dotar todos os ambientes dos equipamentos compatíveis com as formas de edificação reencontravam, numa prática penosa, os problemas da produção.
É esse talvez o momento mais significativo dos Liceus de Artes e Ofícios. Em particular do paulista, fundado para ‘educar o povo’ em ‘ofícios dignos’. O liceu era simultaneamente uma escola e um local de produção, abastecendo a rica burguesia do café de equipamentos móveis de excelente qualidade (uma ‘qualidade’ até certo ponto inusitada no Brasil). Os modelos eram aqueles das melhores revistas importadas, ou desenhos dos primeiros arquitetos, como Victor Dubugras ou Eckman (1866-1940). Na verdade, nas primeiras décadas deste século, ter estudado no Liceu era não só uma honra, mas uma garantia de sólida formação profissional. Há trinta anos atrás, ainda o prestígio desses profissionais se fazia sentir, trabalhando esses antigos alunos do liceu principalmente na indústria da construção. De um antigo mestre da firma Ramos de Azevedo, ‘mestre do liceu’, ganhamos uma coleção de revistas Edilizia Moderna dos primeiros anos de 1900 e um exemplar, edição de 1889, do Traité d’architecture, de Louis Cloquet.
Na verdade, esses mestres devem ter sido os responsáveis pela difusão dos muitos ‘elementos’ art-nouveau em São Paulo, nas construções já da ‘classe média’, em inúmeros bairros periféricos a Higienópolis.
Mas o ambiente extremamente acanhado, em que as primeiras reivindicações operárias começavam a se fazer sentir, não seria de molde a propiciar um amplo debate sobre problemas que poderiam degenerar em constrangedoras descobertas sobre a própria situação social. E assim, o Art-Nouveau foi visto exatamente como foi: uma importação a mais do poderoso grupo dominante, como as francesas e a carruagem a explosão (11).
Quem cumpriu a função exercida pelo Art-Nouveau europeu, no Brasil, foi o grupo carioca de arquitetos reunidos em torno de Lúcio Costa, na década de 1930.
Sem esquecer a importante contribuição dos movimentos ‘neo-colonial’ e ‘modernista’, não há dúvida de que o ‘grupo carioca’ desempenha papel fundamental no desenvolvimento do desenho industrial brasileiro, primeiramente por defender uma teoria coerente do projeto com a indústria, fruto sem dúvida alguma da absorção das lições de Le Corbusier.
Diferentemente da Bauhaus, como já foi assinalado, Le Corbusier não só já tinha resolvido o falso dilema produto standard – produto singular, como, já àquela altura, tinha comprometido todo o ideário proposta para a arquitetura com a situação urbana.
Sintomático nesse sentido é que a geração mais velha dos ‘arquitetos modernos’ é toda proveniente do neocolonial, movimento que, independente de valorizações intelectuais ou estéticas, revela uma forte condicionante política: é a busca consciente (ainda que equivocada) de um ‘estilo brasileiro’, portanto comprometido com a totalidade da vida nacional.
Uma segunda característica do movimento moderno dos arquitetos foi a cerrada defesa do patrimônio cultural brasileiro, em particular, como é natural, dos conjuntos edificados e suas alfaias. Essa característica é fruto em primeiro lugar da relativa precariedade da intelectualidade brasileira, cuja formação maior era então jurídica e literária. Com efeito, na Europa, quem se levantou com veemência suficiente para alertar o público contra a dilapidação dos bens culturais forma os eminentes escritores Prosper Merimée e Victor Hugo na França, ou William Morris na Inglaterra.
No Brasil, foram os arquitetos modernos que mais de perto se empenharam na defesa e conservação do patrimônio, sem esquecer os nomes de Rodrigo Mello Franco, Paulo Duarte e Mário de Andrade. Mas pelas possibilidades de intervir na recuperação dessas obras, votadas ao abandono freqüentemente por uma mentalidade que se queria amiga do progresso, foram os arquitetos ligados ao grupo carioca que se destacaram.
Essa característica foi extremamente benéfica aos arquitetos brasileiros, na medida em que estabelecia um elemento de equilíbrio em relação às reais possibilidades do país, quebrando qualquer adesão às ‘ideologias de mercado’. Isto é, restabelecia as considerações da produção e da criação em um quadro mais amplo que o ‘aqui e agora’ pragmático e barbaresco.
Hoje, com a grande crise da eufórica economia de ‘obsolescência forçada’ a que assistimos, podemos avaliar todas as ‘vantagens’ que advieram aos arquitetos por essa atitude de defesa do patrimônio cultural.
Uma outra característica que distingue os arquitetos modernos brasileiros foi a valorização da criatividade não erudita e, neste caso, as atividades populares. Esse esforço é visível em quase todos os textos escritos nessa época e que representam um rompimento com a amaneirada mentalidade ‘erudita’ da época, geralmente servil aos modelos desembarcados no “último navio”, como diria o prof. Cruz Costa.
Essas proposições teóricas comparecem nos textos e, mais importante, foram testadas concretamente na prática das pranchetas. E podem-se traçar fios de evolução muito sensíveis no desenvolvimento de certas idéias, rejeição de outras, compondo um todo extraordinariamente dinâmico, em que a prática informa a teoria, mas esta por sua vez dirige e dá sentido a essa mesma prática.
Uma característica final, que sintetiza as acima mencionadas, é aquela que podemos chamar de a defesa de um ‘espaço do diálogo’.
Talvez pelo fato desses arquitetos e artistas viverem a realidade da ditadura do Estado Novo, assistirem à ascensão do nazismo e do fascismo, ou por acompanharem a polêmica artística européia, onde cada ‘capela’ procurava demonstrar que toda a história anterior da humanidade nada mais fora que uma simples preparação para a respectiva ‘poética’, o fato é que o movimento moderno brasileiro esteve mais atento às grandes carências nacionais, demonstrando uma grande flexibilidade para absorver criticamente essas experiências teóricas à luz de possibilidades atuais do país.
É evidente que, nesta etapa, a maior contribuição do desenho industrial se deu nos objetos para a indústria da construção, ou mesmo no incentivo a técnicas modernas. Desde as estruturas, onde se poderia já apontar uma escola brasileira de projeto estrutural, nos cerramentos dos vãos como esquadrias, placas de proteção (brises), ou mesmo materiais de uma incipiente industrialização, como o azulejo ‘recuperado’ dos melhores casarões urbanos ou o ‘cobogó’ das construções rurais. Mas não é só. Participava do mesmo processo o ‘equipamento’ das cidades (o S.P.H.A.N., do Ministério da Educação e Saúde, nessa época, foi uma conquista promissora). E o aparecimento de uma preocupação com o paisagismo se fazia sentir na figura ímpar de Burle-Marx (1909-), logo convocado para trabalhar em espaços públicos.
Os equipamentos dos espaços construídos também foram enfrentados. E é duplamente representativa a valorização do então artista plástico Zanine Caldas, que vai se dedicar nessa época principalmente ao projeto de móveis modernos industrializados.
Afortunadamente (ou obrigatoriamente), toda essa produção era precedida e acompanhada pela elaboração de textos, muitas vezes justificativos, mas que encerravam sempre uma preocupação de generalização, portanto, de teorização.
E óbvio que esses tetos eram avaliados pelas construções marcantes como os edifícios da ABI, do Ministério da Educação e Saúde, ou da Pampulha.
Mas também é certo que foram intensamente procurados para a compreensão do ‘milagre’ humano de criação que esses mesmos edifícios testemunharam.
Publicados em revistas técnicas, geralmente de pequena tiragem, forma continuamente reproduzidos nas escolas de arquitetura surgidas após a queda do Estado Novo. Nesse sentido, a coletânea Sobre arquitetura de trabalhos de Lúcio Costa, organizada pelo estudante Alberto Xavier e publicada em 1962, sugeria um legítimo campo de trabalho que não aconteceu: permaneceu fato quase isolado (12).
O período que sucedeu à queda do nazismo foi particularmente rico: a estética da arquitetura moderna firmou-se no Brasil, conquistando adesões significativas.
Particularmente em São Paulo constituiu-se um núcleo importante pelo nível de realizações e pela discussão das proposições do projeto e da indústria: Rino Levi (1901-65), O. A. Bratke (1907-), que já desenvolviam trabalhos contemporaneamente ao grupo carioca nas décadas de 1930 e 40. Mas o destaque maior, sem dúvida, deve ser feito arquiteto Vilanova Artigas (1915-).
Oriundo de um grupo de arquitetos ligados à estética do artista norte-americano F. L. Wright (1869-1959), aproximou-se do grupo carioca e foi seu mais arguto crítico. De fato, incrustado no pensamento de Lúcio Costa havia um vago etnocentrismo para explicar as diferentes tendências artísticas do passado. Trata-se daquelas considerações sobre arte em que o grande arquiteto divide a humanidade em dois grupos:
“Ter-se-ão desse modo estabelecido, finalmente, dois eixos culturais bem definidos quanto à concepção da forma: o eixo mesopotâmico-mediterrâneo, correspondente à concepção estática, e o eixo nórdico-oriental, correspondente à concepção dinâmica. Contudo, para melhor se apreender os caracteres diferenciados desse dualismo básico – ao qual se vieram apegar outros conceitos autônomos que, em diferentes regiões, culturas ou circunstâncias, puderam encontrar, nalgumas das variadíssimas expressões dessa dualidade, a forma plástica apropriada a lhes traduzir o conteúdo racional, ideológico, ou cultural...” (13).
A essa concepção dualista da humanidade o arquiteto Vilanova Artigas, em seus textos da época, principalmente em “Os caminhos da arquitetura moderna”, opõe uma vigorosa proposta de compreensão de cada movimento artístico através dos conflitos reais, desenvolvidos historicamente no interior de cada comunidade:
“Há ainda um número enorme de outras tendências. Imagina-se uma premissa, por absurda que seja, e sobre ela monta-se o edifício de uma ‘arquitetura’. Os exemplos que foram citados são suficientes entretanto para ilustrar o objetivo deste artigo, que é fundamentalmente o de mostrar que a obra dos arquitetos exprime ideologicamente o pensamento da classe dominante – a burguesia. E ainda mais, que nas circunstâncias atuais da luta entre as duas classes – a burguesia e o proletariado –, a arquitetura moderna tal como a conhecemos, é uma arma de opressão, arma da classe dominante, uma arma de opressores, contra oprimidos.” (“Os caminhos da arquitetura moderna” – 1952)
“A verdadeira consideração da existência do homem não está em usá-lo como padrão pela altura que tem etc., mas em libertá-lo das condições de luta pela existência que leva hoje em dia: livrá-lo dessa contingência que é viver dentro das leis peculiares ao reino animal, para proporcionar-lhe condições de vida realmente humanas. Transformá-lo em dono de suas relações sociais e em senhor da natureza.
Esta tarefa, a história confiou ao proletariado, que está a cumpri-la”. (“Le Corbusier e o imperialismo” – 1951) (14)
A linguagem pouco polida de fato chocou alguns espíritos delicados, mas seu trabalho teórico foi uma verdadeira golfada de oxigênio no ambiente da crítica de arte e arquitetura, que respirava um ar tênue de estratosfera, onde qualquer consideração sobre as realidades cotidianas era cuidadosamente atenuada, ou mesmo apagada.
As contribuições do arquiteto Artigas iniciam, publicamente, um esforço de compreensão do projeto e da produção relacionados com o momento político vivido em termos dos grandes organismos econômicos de um lado e as necessidades da população do outro. Não é necessário insistir na crescente atualidade desse pensamento que irá se desenvolver também nas décadas subseqüentes, principalmente na Europa.
Mas o desenho industrial, na década de 1950 em São Paulo, irá se desenvolver segundo novas linhas de trabalho, que vale ressaltar.
Uma primeira é a contribuição que se esboça em torno do Museu da Arte de São Paulo, em particular, de Lina Bardi (1914-). Resultado do mecenato tradicional, o Museu de Arte de São Paulo, fundado por Assis Chateaubriand e dirigido por Pietro M. Bardi, desenvolve logo no seu início um intenso esforço museológico onde sobressaem exposições de Richard Neutra (1892-1970) e Max Bill. Mas também exposições de móveis modernos e de “Figuras de Barro” de Mestre Vitalino (1909-63).
De todo esse trabalho participa Lina Bardi como arquiteta do Museu, projetando inclusive suas instalações. Funda também, com Gian Carlo Palanti (1906-77), o Studio d’arte Palma onde não só se preocupa com a produção contemporânea mas com a ‘adequação’ do ideário da cultura moderna ao Brasil. Abraçando com determinação romana sua nova pátria, Lina Bardi, que de início trazia rica bagagem européia, principalmente uma informação dos movimentos europeus e norte-americanos, sofreu uma notável transformação. Se nos anos 50, no plano prático do projeto, o que se nota em seu trabalho é uma filiação ao que de melhor se fazia e experimentava fora do Brasil, sua sensibilidade atenta não deixou de registrar um descompasso entre o que esse ideário poderia absorver e sua crítica ‘prática’ manifesta nos inúmeros exemplos de uma criatividade popular, marginal a esse grande mercado que demonstrava possibilidades insuspeitas. Assim, no dia 31 de março de 1964 a arquiteta pode apresentar em sessão memorável, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, um vasto painel de suas experiências no Museu do Unhão da Bahia, e dos seus planos para o futuro imediato. Durante os anos seguintes um pesado silêncio envolveu seu trabalho, somente quebrado em 1972 por um pequeno artigo sobre ‘desenho industrial na China’, onde faz uma crítica contundente à chamada ‘economia de consumo compulsório’(15).
Uma outra linha de desenvolvimento iniciada em São Paulo é centrada no movimento concretista, principalmente na figura do pintor Waldemar Cordeiro (1925-73). Esse movimento tem um interesse todo especial pois marca a abertura, o espraiamento das discussões sobre arte e indústria para grupos não diretamente ligados à arquitetura.
Com efeito, até então a discussão da ‘arte’ com a ‘indústria’ estava restrita aos arquitetos ou estudantes de arquitetura. Mas o movimento concretista, ainda que não tenha contribuído diretamente para o desenho industrial, através de ‘projetos’ de seus membros, contribui também, a seu modo, para a ampliação do debate, envolvendo artistas e escritores como os poetas concretos. E é difícil negar que o movimento concretista paulista tenha provocado o aparecimento do movimento neoconcreto carioca, cujos desdobramentos, até certo ponto mais fecundos, examinaremos em seguida ao apresentar a contribuição do movimento moderno brasileiro para o ensino.
Com exceção da mais que centenária Escola de Belas-Artes do Rio de Janeiro, todas as outras escolas de arquitetura surgiram na esteira do Êxito nacional e internacional da moderna arquitetura brasileira. Ora, estes artistas estavam também empenhados em uma luta antiacadêmica. Tratava-se, pois, ao se criarem estas escolas, de evitar a ‘armadilha’ acadêmica. É evidente que as experiências da Bauhaus e do Institute of Design (Illinois) repercutiram aqui. Entretanto, a solução encontrada foi original e merece um destaque, pois apresenta matéria para pesquisas agora e no futuro imediato.
Já chamamos a atenção para o modelo de ‘ensino técnico’, devido em grande parte ao gênio de Monge e seu rebatimento no plano da atividadade artística, com a Bauhaus.
Mas a proposta politécnica peca, no campo artístico, pelo menos por ser uma solução unilinear, válida sem dúvida em um período de tempo, mas não válida sempre. Se não vejamos: basicamente constitui-se de disciplinas gerais comuns a todos os cursos, para depois se desdobrar em aprofundamentos cada vez mais restritos e precisos. Os cursos básicos, como a base de um edifício, devem ser sólidos e enterrados. O estudante, em princípio, depois de passar por eles, não mais vai se preocupar em continuamente retornar a estudá-los.
Ora, com a rapidez com que a ciência avança no mundo contemporâneo, essas bases costumam se esboroar muito cedo: quem hoje ousaria afirmar que a geometria descritiva é o instrumento básico (formativo e informativo) de todas as especialidades de engenharia? (no momento 164 especialidades, segundo o CREA de São Paulo).
Um curso assim pensado se cristalizaria em pouquíssimos anos e seria mais um resto arqueológico a conservar.
Para a condição da arte essa cristalização seria ainda mais danosa. Aliás é o que se verifica na Bauhaus e em Ulm. Inicialmente os cursos genéricos seriam ‘psicologia da percepção’, com teorias sensório-motoras e da Gestalt. Já em Ulm, no final, seria a ‘teoria da informação’, com resultados em ambos os casos bastante discutíveis como base de uma educação criadora.
É o caso de se perguntar, diante da ‘insegurança permanente’, qual a atitude a adotar? Retornar ao esquema ‘belas-artes’ que afinal dera tão ‘bons resultados’ durante tantos séculos? Esta foi uma opção seguida até mesmo por antigos professores da Buhaus, como o eminente pintor Paul Klee (1879-1940) (16).
A solução adotada no Brasil parte de uma proposta inicial de Lúcio Costa e é mais a colocação do problema de ensino, que sua solução.
“Daí a necessidade de ser recuado, no currículo, o início efetivo da prática da composição, disciplina mais a trabalho de atelier, sob a supervisão de um mestre arquiteto com o auxílio de assistente e a cooperação dos professores das demais matérias interessadas no desenvolvimento de cada tema.O número desses ateliers poderá variar conforme as conveniências do ensino”(17).
Essa proposta sofreu um amadurecimento ao longo dos anos, sendo particularmente desenvolvida na FAU/USP, com a colaboração de inúmeras pessoas mas, sem dúvida, com a participação intensa do arquiteto Artigas.
Pode agora ser assim resumida:
O dado fundamental do trabalho criador será o ‘projeto’. É ele que organiza e direciona todos os esforços, pois a prática multicentenária nos ensina isso: do geral para o particular e vice-versa. Mas a contribuição de Artigas vai mais além. Pois a pergunta que se coloca em seguida é se estamos tratando de uma simples transposição de ‘mecânica’ de um procedimento corriqueiro em qualquer escritório em qualquer parte do mundo. E a resposta é que ‘projeto’ não está comprometido tão-somente com uma situação momentânea, mas vincula-se ao conjunto de aspirações coletivas que, em cada caso e em cada instante, nós podemos identificar e para as quais iremos dar respostas provisórias e, até mesmo, quando for o caso, pessoais, individuais.
Salta à vista o paralelismo entre esta postura aqui descrita e boa parte das proposições do filósofo alemão Martin Heidegger. Perante o espetáculo da vida contemporânea, o pensador reconhece como único ponto seguro a permanente insegurança do homem no mundo. E é a partir daí que propõe também como essência do homem seu existir e redescobre a noção de projeto (jogar para frente). Essa postura, que nega o futuro como ‘dado’, como ‘administrado de antemão’, e portanto repropõe a liberdade em oposição ao barbarismo tecnocrático, encontra sua única e possível brecha, nesse calabouço em que nos situamos, na criação (18).
Mas o paralelo termina aí. Para Heidegger esse universo está centrado no indivíduo isolado e não histórico. Para nós o existir-no-mundo é coexistir, é a solidariedade de todos os homens que se reconhecem mutuamente como sujeitos da liberdade, e não com objeto das estatísticas do ‘perfil do consumidor padrão’. Ou, como diz Flávio Motta (1923-) é “fazer se fazendo”, ou ainda, na escrita pachola de Mário de Andrade:
“Nós temos que nos conformar com a nossa mestiçagem tanto de sangue como intelectual. Nós nunca seremos arianos, e talvez graças a Deus! Brazil builds é um livro que nos regenera em nosso valor normal. Nós não somos nem melhores nem piores que as outras nações, e estamos vendo que uma China de possíveis decadências é capaz de um levantamento sublime que nos enaltece a todos.
O homem é um só e se as nações são piores ou melhores isto é questão das espécies dirigentes, dos governos, que ora são esclarecidos, ora são infamantes. E quando são infamantes, o que nós temos a fazer, não é nos infamarmos conformisticamente com eles, mas botar para fora os governos ruins”(19).
Inverte-se assim a função da escola: no passado (quer fosse o modelo ‘belas-artes’ ou ‘politécnico’) ela tinha a pretensão de estabelecer as regras da atividade artística no interior da prática social. Agora ela será receptiva à expansão das propostas sociais, e nessa receptividade, estranhamente nas suas respostas, é que comprovará sua criatividade. Não é difícil perceber que esta proposta pulveriza qualquer determinismo histórico, mas também recupera os modelos ‘politécnicos’ e ‘belas-artes’ como um simples caso particular (20).
Assim, em 1962, após maturação de quase 14 anos, a FAU/USP instalou um grupo de disciplinas voltadas para o desenho industrial, reagrupando as antigas disciplinas de ‘composições decorativas’, propondo entretanto um quadro mais amplo de atuação e pesquisa, qual seja o objeto da produção industrial moderna. Mas ao mesmo tempo reunindo as antigas disciplinas de ‘plástica’ e ‘desenho industrial’ no grupo de disciplinas de ‘comunicação visual’, onde os processos tipográficos modernos se faziam presentes. No Rio de Janeiro, o procedimento foi um pouco diferente. Talvez devido à tradição mais antiga e mais sólida de Escola de Belas-Artes, fundada no Império, por isso mesmo mais conservadora, a preocupação em incorporar a indústria moderna ao projeto conduziu a se organizar uma escola que rompesse radicalmente com os padrões existentes.
Assim fundou-se a Escola Superior de Desenho Industrial, tentando seguir o modelo de Ulm. Este modelo alemão não foi totalmente implantado por razões óbvias: pensado para uma situação muito particular do pós-guerra europeu, num meio social totalmente diferente, já de início apresentava dificuldades de organização bastante penosas. Mesmo assim, cumpriu seu papel de estimular um debate que ainda conseguiu ser extremamente criador, como registraram os trabalhos escritos de artistas ligados à ‘vanguarda’ carioca, particularmente o pintor e gráfico Rogério Duarte (1939-) e o poeta Ferreira Gullar. Estes artistas empreenderam um esforço significativo para desfazer as mistificações correntes nesse debate que, em última instância, toca tão perto o correto encaminhamento da autonomia nacional. Seus trabalhos situam-se nos finais da década de 1960, precisamente entre 1965 e 1968, e se encaminhavam para um promissor diálogo abruptamente silenciado a partir de 1969 (21), como não poderia deixar de acontecer, quando o avanço das multinacionais tornou-se sereno e a importação do projeto se tornou uma insolente realidade cotidiana, a ponto de sensibilizar até mesmo um ministro de Estado, o Sr. Severo Gomes, que, por sinal, foi rapidamente expelido do corpo decisório maior, considerado talvez um corpo estranho.
A partir dessa data, a desinformação se instalou de tal modo que as jovens gerações se questionam até mesmo se existe uma atividade de ‘projeto’ brasileira (22).
Esta é uma dúvida que denuncia a mais completa desestruturação do pensamento no Brasil nos últimos anos. Como observa o arquiteto Abrahão Sanovicz (1933-):
“O projeto, em geral, é demonstração e exercício da soberania. É através dele que podemos contribuir para racionalizar os caminhos para o desenvolvimento, o que só poderá ser alcançado através do contínuo exercício profissional dos técnicos brasileiros. Este cuidado com o projeto nada mais é do que a visão histórica, com a devida antecipação, do desejo de equipar nossas cidades (edificações e urbanização), nossa paisagem (estradas, pontes, viadutos, planos regionais) com obras esteticamente belas, programática e tecnologicamente funcionais, para que nossas cidades e seus entornos se tornem agradáveis para o uso e a vida” (23).
Duvidar dessa condição, é duvidar da humanidade possível de milhões de pessoas.
No entanto é compreensível que esta desesperança se instalasse: nos últimos anos o projeto incorporado ao ‘pacote fechado’ foi tratado como mercadoria, condição ideal para o tecnocrata irresponsável.
Com efeito, a ‘responsabilidade’ na mercadoria é de quem vende não de quem compra. Principalmente em um ‘mercado de oligopólios’ como o atual.
De outro lado, à ‘irresponsabilidade’ do tecnocrata junta-se a inconsciência cívica visceral do industrial brasileiro, como observa o cientista J. Reis:
“Existe por outro lado, em nosso meio, uma longa tradição de indústria sem pesquisa própria, à vida de comprar tecnologia fora e revendê-la com lucro, sem o menor interesse em criar algo novo, ainda que tecnologia intermediária ou coisa parecida. Dessa indústria provém, muitas vezes, o mais forte clamor contra a ciência básica e a tecnologia do mesmo tipo aqui desenvolvidas. É que ela deseja, na verdade, depender de laboratórios de análises e testes oficiais, em lugar dos que poderia montar, sem perceber o maior alcance do caminho seguido pelos verdadeiros pesquisadores, seja em ciência seja em tecnologia. Livre-nos Deus da ciência comandada por esse espírito exclusivamente utilitário e imediatista”(24).
Na verdade, ainda que tenham surgido exemplos de desenho industrial, não só no ‘eixo tradicional’ São Paulo e Rio, mas em outros centros como Belo Horizonte e Porto Alegre, por exemplo, também é inegável que esses exemplos não passaram de fenômenos isolados contra a corrente. O único fenômeno, do ponto de vista de ‘projeto’, exaltado nesses últimos anos, foi o da indústria bélica. Retiramos do noticiário dos jornais este fato:
“Além das quatro versões de carros de combate sobre rodas, a linha compreende ainda caminhões pa
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