No final dos anos 1990, na Comissão de Eventos da Associação dos Designers Gráficos (ADG), Ricardo Ohtake me dizia que era impossível, naquele momento, fazer uma análise histórica do design no Brasil. Naquela época, não tínhamos condições de olhar a produção brasileira de design de longe para formar uma visão crítica. Pois bem, 10 anos se passaram, muitos bons livros foram escritos e hoje temos maturidade suficiente para fazer análises com precisão. Aproveito a oportunidade da bela exposição do Rico Lins para desmontá-lo (com o prazer de criança que desmonta brinquedo para ver o que tem dentro), para tentar entender que design existe lá dentro, ou seja, parafraseando o próprio Rico, que fronteiras ele trilhou nesses mais de 30 anos de produção.
Para começar a nossa viagem, é preciso dizer que o primeiro impacto é a sua imensa produção, fértil, feita de muitos trabalhos, que, por sua vez, são construídos por muitíssimas imagens, que se misturam, se repetem e se sobrepõem. Se Rico fosse músico, sua música seria barulhenta, estridente, ruidosa, feita de sampling: ritmos populares misturados com jingles, bossa nova e música erudita, um samba tocado num ritmo alucinado, no seu mais alto volume.
Rico estudou na Esdi, impregnada da estética concretista/funcionalista, mas obviamente não tira daí a sua inspiração. Como bem disse Agnaldo Farias, Rico é um designer onívoro, que se alimenta de qualquer estímulo visual. Para ele, a estética concretista tem tanta importância quanto uma textura na calçada, um velho anúncio numa revista, o rótulo de uma caixa de fósforo ou o movimento da tela da televisão. Todo e qualquer estímulo visual pode ser deglutido, digerido e expressado no seu trabalho. Acredito que da Esdi o Rico aproveitou apenas o aprendizado das etapas da atividade de projetar, além do contato com as grandes cabeças que lecionavam na época.
O trabalho do Rico é corajoso, inquieto e explorador, feito sem medo de errar, de refazer, de inventar e de se re-inventar. Aliás, esse é o segundo impacto que o seu trabalho nos causa.
O terceiro impacto é a sensação de atemporalidade. É difícil datá-lo. Fiquei pensando porquê. Depois entendi: seu trabalho não é calcado em estilos externos. Os estilos são fáceis de se rastrear, conseguimos datar um trabalho dsa décadas de 50, 60, 70 ou 80 só de olhar. O trabalho do Rico, não. Seu estilo é próprio, vem de dentro. É mais parecido com o trabalho de um artista plástico do que de um designer comum. E aí começo a decifrar o desafio proposto por ele no nome da sua exposição: “Uma Gráfica de Fronteira”.
A primeira fronteira que o Rico navega, é a fronteira entre o design e as artes plásticas. O designer trabalha de forma objetiva, visando resolver uma necessidade de comunicação do seu cliente. O artista trabalha de forma subjetiva, visando expressar seus próprios pensamentos e sentimentos. O trabalho do designer tem de ser entendido com clareza, o trabalho do artista pode ser interpretado de acordo com o universo interno de cada um. O Rico Lins é um artista que se expressa enquanto faz design. É o que poderíamos chamar de artista gráfico. Além dele, poderíamos citar, entre outros, Kiko Farkas e Vicente Gil. Os artistas gráficos focam com maior naturalidade no mercado cultural. A grande maioria dos trabalhos do Rico foram feitos para esse mercado.
Aí começa a segunda fronteira. Ela fica entre o design desenvolvido para a indústria cultural e o design desenvolvido para a indústria de bens de consumo e empresas de serviços. Do ponto de vista comercial, os dois tipos de trabalho são muito semelhantes. Os dois começam com um briefing objetivo e são remunerados pela complexidade do projeto e expertise do designer. Mas, do ponto de vista da execução, eles têm grandes diferenças. Essas diferenças acontecem por causa da mudança de atitude do público quando se defronta com um ou outro trabalho.
O projeto gráfico de um livro (ou revista, ou cd, ou programa de teatro, ou cartaz, ou qualquer outra peça gráfica do mercado cultural) pode ser permeado de “mensagens atravessadas, inesperadas e experimentais”, segundo palavras do próprio Rico. Essa mesma pessoa que comprou o livro terá uma atitude completamente diferente na hora em que estiver comprando extrato de tomates num supermercado. Estudos demonstram que uma pessoa demora de 4,5 a 6 segundos para fazer uma escolha na frente de uma gôndola. O designer corporativo não pode errar. Ele sabe quem é o possível comprador, qual a sua classe social, sexo, idade e comportamento. A mensagem tem que ser clara. Qualquer ruído derruba a venda. O possível comprador tem que entender muito rapidamente qual a categoria do produto, qual o nível de preço, qual é a marca, decidir se compra ou não, para imediatamente movimentar o carrinho e seguir para a próxima escolha.
Quando trabalha para a indústria cultural, o designer pode experimentar e explorar caminhos nunca antes percorridos. Já para a indústria de bens de consumo, acaba utilizando imagens conhecidas para poder comunicar-se rapidamente. A linguagem inovadora (e às vezes incômoda) aberta por um trabalho experimental de um designer cultural, muito provavelmente será utilizada tempos depois, já devidamente absorvida e requentada, por um designer corporativo. Não há juizo de valor nessas conclusões. Existem ótimos e péssimos projetos culturais e corporativos por aí.
Não há fronteira rígida, estanque entre o design cultural e o corporativo. Existe entre os dois uma espécie de “terra de ninguém”. Esse espaço é ocupado, entre outros, pela indústria da moda e da beleza, e por alguns setores de serviços. Essas indústrias absorvem mais rapidamente as linguagens e inovações estéticas oriundas do mercado cultural. Ainda aqui existe o espaço para as mensagens atravessadas e para as experimentações estéticas.
O trabalho de Rico Lins, que navega claramente no lado de lá da fronteira do design corporativo, consegue avançar até aí. Muito longe dessa fronteira, no centro do território do design corporativo, ou seja, nas gôndolas dos supermercados, não é possível haver experimentação gráfica radical e nem há espaço para a expressão pessoal de um designer. Provavelmente, daqui a uns 15 anos, as embalagens de sabão em pó e de extrato de tomate vão utilizar a linguagem gráfica exercitada na indústria da moda de hoje, que por sua vez foi criada e experimentada no mercado cultural de ontem. Eis a verdade!
Rico Lins é um grande desbravador de novas fronteiras estéticas dentro do território do design gráfico. Essa é a maior importância do seu trabalho. E graças à sua personalidade inquieta e extrema criatividade, ele faz isso de forma avassaladora.
Milton Cipis é formado em Comunicação Visual pela FAAP em 1979. É sócio da Brander e foi um dos fundadores da ADG - Associação dos Designers Gráficos. Em 32 anos de vida profissional participou de projetos para inúmeras empresas.