O cartaz brasileiro na história do cartaz
Rafael Cardoso
“Cartaz. Impresso publicitário ou aviso, caracterizado pelo seu grande formato, e que se afixa nos lugares de trânsito ou de freqüência pública. (Do ár. kartas, papel.)”
- Frederico Porta, Dicionário de artes gráficas (1958)
O que é o cartaz? Não existe resposta unânime para essa pergunta aborrecida, motivo perene de discussão em cursos de comunicação visual. A definição citada acima representa o mínimo múltiplo comum, evitando sabiamente detalhar formatos e técnicas. Mesmo não havendo consenso, as tentativas de delimitar o que é ou não cartaz perdem importância diante de outra indagação de natureza histórica. Qual o futuro do cartaz? Sim, porque face às rápidas mudanças tecnológicas e sociais dos últimos vinte anos, já é possível vislumbrar um momento em que algumas variantes serão mais facilmente encontradas em coleções de museus do que nas ruas. Será? Depende o que se entende por cartaz. Para melhor estabelecer as bases dessa discussão, nada melhor que uma volta ao passado.
Vale registrar que é antigo o anseio de organizar cartazes em coleções. Uma das primeiras propostas para um museu do cartaz data de 1899, ou seja, praticamente contemporânea ao que a maioria das pessoas imagina ser o início da produção no gênero (1). Esse fato curioso indica que já era grande à época o universo dos cartazes, posto que não se pode criar um museu para abrigar aquilo que não existe. Na verdade, como se sabe, a história do cartaz não é tão recente assim. Mesmo sem levar em conta as diversas manifestações anteriores à industrialização, não resta dúvida de que floresceu ao longo do século 19 uma produção variada e sistemática (2). No entanto, perdura no imaginário coletivo o vício de associar a origem do cartaz ao trabalho de autores como Chéret, Grasset, Toulouse-Lautrec e Mucha. A visão do “cartaz moderno” como produto do final do século 19 e início do 20 deriva mais da museografia modernista do que de qualquer reflexão histórica ponderada (3).
Como veículo de comunicação de massa, o cartaz é fruto de dois fenômenos interligados – a industrialização e a urbanização. Do ponto de vista tecnológico, sua disseminação foi facilitada pelo barateamento do papel e pela gradativa mecanização da impressão de textos e imagens que colaboraram para a formação de uma verdadeira indústria gráfica no período entre 1830 e 1890, aproximadamente. A introdução da técnica do offset e o aperfeiçoamento da impressão fotográfica, nas primeiras décadas do século 20, marcam o amadurecimento dessa evolução (4). Do ponto de vista social, a crescente utilização do cartaz para transmitir informações é reflexo de novos costumes e hábitos. Pela primeira vez na história, nas metrópoles modernas surgidas nos séculos XIX e XX, as pessoas circulavam aos milhões por áreas extensas, indo e vindo entre a moradia e o trabalho, utilizando-se de meios de transporte como trens, bondes, ônibus e metrô. As vias e os veículos pelos quais transitava essa gente tornaram-se local por excelência para a difusão de informações de interesse coletivo. Assim, firmaram-se as pré-condições para o emprego generalizado do cartaz: os meios técnicos para sua produção maciça e um público sedento por absorver mensagens rápidas e sucintas.
Não se pode esquecer que o cartaz só tem serventia quando há algo para ser divulgado. Tradicionalmente, a comunicação por avisos postados em lugares públicos limitava-se a anunciar eventos próximos – em especial, entretenimentos – ou então, enunciados do poder constituído – em especial, decretos públicos. Na sociedade industrial, isto mudou. A separação cada vez maior entre trabalho e lazer, e a implicação concomitante de alguma sobra de dinheiro no bolso de cada um para o consumo de supérfluos, abriram toda uma nova dimensão para o cartaz, o qual passou a servir como veículo para anunciar também coisas que se poderia comprar. Esse aspecto publicitário veio se juntar às outras funções tradicionais, transformando-as e criando um novo regime de propaganda (em português, este termo abrange tanto o sentido político quanto o publicitário). De meados do século XIX em diante, a dimensão comercial assumiu uma preponderância nítida e contribuiu para redefinir tanto formato quanto linguagem do cartaz.
Pensando de modo amplo essas funções, torna-se possível apreciar melhor a inserção histórica do cartaz em suas diversas manifestações, que variam bastante de acordo com local e época. Faz todo sentido que a produção de cartazes floresça onde há uma forte motivação para propagar mensagens políticas (e.g., em Moscou por volta de 1917-1919), ou uma profusão de espetáculos e entretenimentos concorrendo para cativar a atenção do público espectador (e.g., em Paris na virada do século XIX para o XX), ou uma cultura publicitária intensa de venda de mercadorias (e.g., nos Estados Unidos, desde meados do século XIX). Em todos os casos, a aglomeração de grandes multidões transitando no ritmo acelerado da metrópole moderna é o fator decisivo para transformar o cartaz em veículo privilegiado para a transmissão de informações. Onde existem os outros componentes característicos da vida moderna – separação entre moradia e trabalho, vias e meios de transporte rápido, situações que reúnam um número significativo de estranhos, um sistema complexo de distribuição e comercialização de mercadorias, e uma hegemonia do espetáculo como lógica da organização social – ali tenderão a existir também cartazes.
Diante desse pano de fundo, fica mais fácil entender a relativa defasagem entre a produção de cartazes no Brasil e aquela de alguns outros países. A primeira cidade brasileira a atingir o porte de metrópole – aqui entendido como correspondendo ao patamar de um milhão de habitantes – foi o Rio de Janeiro, e isto ocorreu na década de 1920. Embora o país já possuísse condições tecnológicas e artísticas mais do que suficientes para produzir cartazes – com sua tradição forte de litografia comercial no século XIX – o fato é que existem poucos exemplares conhecidos anteriores ao século XX. A explicação mais provável reside na ausência de um público alvo para esse tipo de comunicação. O Brasil de então era um país de poucos consumidores, e a elite da época não tinha dificuldade de obter informações através de outros canais e veículos menos populares. É significativo que a primeira produção sistemática de cartazes parece estar ligada às campanhas de saúde pública promovidas pelo governo brasileiro nas décadas de 1900 e 1910, como parte de seu conhecido esforço higienista. O combate à febre amarela, doenças venéreas e outros flagelos exigia, este sim, a comunicação rápida e facilitada para grandes parcelas da população, geralmente anônimas e pouco ou nada alfabetizadas.
Com o surto de industrialização e o boom econômico que se seguiram ao período da Primeira Guerra Mundial, o Rio de Janeiro e a nascente metrópole de São Paulo ingressaram definitivamente no regime cultural da modernidade. Um sintoma revelador dessa mudança foi o incremento significativo da indústria gráfica nacional, tanto em termos de quantidade quanto qualidade, com destaque para o projeto de livros e revistas (5). Avoluma-se também, a partir de então, a produção de cartazes de caráter comercial. Em pouco tempo, alcança destaque uma primeira geração de cartazistas renomados, que inclui artistas como Henrique Mirgalowsky, Geraldo Orthof, Ary Fagundes e Fulvio Pennacchi. Em pouco tempo, essa produção se consolida ao ponto de viabilizar exposições de cartazes, sintomáticas da abundância; algumas das primeiras destas foram realizadas no Rio e em São Paulo em 1933 (6). Com o surgimento definitivo de um público de massa, o cartaz passa a se viabilizar como veículo de comunicação. Nesse sentido, é notável que sua crescente presença na sociedade brasileira entre as décadas de 1920 e 1940 tenha-se atrelado bastante ao desenvolvimento de uma outra mass media – o cinema – com uma produção notável de cartazes para anunciar lançamentos de filmes.
A partir da década de 1950, o design brasileiro assume novos ares, de crescente profissionalização e racionalização. Foram varridos para debaixo do tapete do esquecimento coletivo os grandes artistas gráficos e ilustradores comerciais da geração anterior, abrindo caminho para a importação de um outro paradigma, ligado aos ideais construtivos que nortearam o Movimento Concreto nas artes plásticas. No Rio e em São Paulo, abriram-se cursos baseados numa noção alegadamente científica de planejamento da forma, inspirada naquilo que se fazia em Ulm, Alemanha, na famosa Hochschule für Gestaltung. Alunos egressos desses cursos montaram alguns dos primeiros escritórios brasileiros voltados especificamente para “desenho industrial” e “programação visual”, vistos como atividades técnicas e não mais como fazer artístico ou simplesmente comercial. É emblemático que o objeto símbolo dessa ruptura – anterior mesmo aos principais manifestos escritos do concretismo – seja um cartaz. Criado por Antônio Maluf para a I Bienal de São Paulo, esta peça (contida na presente exposição) é um enunciado poderoso da extensão das mudanças pretendidas (7).
Desde então, instalou-se na história do cartaz brasileiro certo dualismo. De um lado, cartazes criados por designers com formação superior, produzidos segundo os preceitos da “boa forma”, estes derivados em última instância do Estilo Internacional e da escola suíço-alemã de design gráfico (de Tschichold a Müller-Brockman). De outro lado, uma tradição eclética ligada à ilustração, às linguagens visuais de matriz vernacular e a uma estética publicitária cultivada dentro das agências pela classe de profissionais conhecidos, à época, pelo termo layout-men. Essa separação entre um fazer erudito e um outro empírico (na falta de palavra melhor) predominou entre as décadas de 1960 e 1980, atingindo por vezes um grau tão extremo que é possível conceber seus praticantes como pertencendo a castas distintas. Além de retardar o reconhecimento de alguns grandes nomes do cartaz brasileiro no período (e.g., J.L. Benício), a exclusão dessa tradição empírica também camufla questões importantes do ponto de vista técnico. A sobrevivência do chamado “lambe-lambe”, e seu predomínio em determinados contextos, aponta para uma história do design gráfico brasileiro ainda por escrever (8).
De meados da década de 1980 para cá – ou seja, a partir da redemocratização política –, o design brasileiro vem tomando um rumo diferenciado, afastando-se da rigidez doutrinária do período anterior e buscando uma reaproximação com a cultura majoritária do país, esta marcada por uma longa história de abertura para todas as influências e pela apropriação antropofágica das diferenças (no sentido preconizado pelo escritor Oswald de Andrade, na década de 1920). Pode-se dizer que houve, nos últimos quinze a vinte anos, uma passagem do sectarismo para o sincretismo. A presente exposição, com sua habilidade de conjugar as diversas facetas da experiência do cartaz no Brasil, é fruto e agente dessa mudança. A partir de iniciativas como esta, será possível começar a pensar o que é o cartaz no Brasil e de que forma a experiência brasileira pode contribuir para uma melhor compreensão desse magnífico fenômeno mundial.
Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte e do design. O texto acima foi publicado originalmente em francês no catálogo da exposição de cartazes brasileiros de Chaumont, 2006.
(1) Margaret Timmers, org. (1998). The Power of the Poster (Londres: V&A Publications), p.12.
(2) Ver, entre outros, Victor Margolin, Ira Brichta & Vivian Brichta (1979). The Promise and the Product: 200 Years of American Advertising Posters (Nova York: Macmillan), pp.7-20.
(3) Ver Stuart Wrede (1988). The Modern Poster (Nova York: Museum of Modern Art), pp.11-20.
(4) Rafael Cardoso, org. (2005). O design brasileiro antes do design: Aspectos da história gráfica, 1870-1960 (São Paulo: Cosac Naify), pp.160-161.
(5) Ibid., pp.96-196.
(6) Silvana Brunelli Zimmermann, “A inserção de Fulvio Pennachi na propaganda brasileira dos anos 30”, In: Os “reclames” de Fulvio Pennachi: Primórdios da propaganda brasileira (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005), p.99.
(7) Ver Aracy A. Amaral, org. (1977). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962) (Rio de Janeiro & São Paulo: Museu de Arte Moderna & Pinacoteca do Estado). Ver tb. Rafael Cardoso, “Tudo é moderno; nada é Brasil: Design e a busca de uma identidade nacional”, In; Lauro Cavalcanti, org. (2004). Tudo É Brasil (São Paulo & Rio de Janeiro: Itaú Cultural & Paço Imperial), pp.81-92.
(8) Norberto Gaudêncio Junior (2005). “Lambendo os muros da cidade”, Tecnologia Gráfica, n.45 (maio/julho), pp.40-43.
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Comentários
J G Fajardo
27/03/2010
Benício, este artista gaúcho o primeiro a influenciar-me profissionalmente, ou, no que viria a ser futuramente minha profissão. Ilustrador e pintor . Ganhei, em 1978, um livro que me "apresentou" vários excelentes artistas, dentre os quais, Benício. O livro em questão é "Mestres da Ilustração", coordenado pelo desenhista e ilustrador português Jayme Cortez, edição de 1970. Artistas como E. T. Coelho, José Lanzellotti, Manuel Victor Filho, Getúlio Delphim e Benício impressionaram-me. Especialmente este último. Achei incrível seus trabalhos, suas criações, suas soluções. Como nessa época eu ainda morava no interior, e não existia computadores, nem internet, muito menos bancas apropriadas de jornais e revistas, somente cinco anos depois, em 1983, pude estar próximo de um ambiente desejável. Tempos depois, pude finalmente conhecer, pessoalmente, J L Benício, na agência Artplan, Lagoa, Rio. Vi originais à guache sobre papel schoeller hammer montado, bem resolvidas ilustrações pintadas para comemoração dos 180 anos do Banco do Brasil. Aquelas visões entusiasmaram-me bastante. Mostraram-me que era possível fazer coisas incríveis, com talento acreditado e bons materiais. Mais dois encontros aconteceram anos mais tarde, onde pude conversar com ele e obsvervar melhor seu arsenal de arte. Pois, enfim, Benício é patrimônio nacional, deve ser preservado, mostrado, cultivado, exibido, enaltecido e conhecido de todos os brasileiros. Depois os outros. Eu sou um atuante pintor retratista e de coisas afins. Dou aulas de pintura e desenho em atelier, na Tijuca, Rio. Trabalhei também como ilustrador para Almanaque Casseta e Planeta, Ciência Hoje da Crianças, A Little Brazilian Cookbook, Jornal Batucadas Brasileiras, etc. e etc. Obrigado pelo espaço neste charmoso blog.
J. G. Fajardo
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