Ano: II Número: 15
ISSN: 1983-005X
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Produção do frio e estilos de vida
Tomás Maldonado, 1990
Tradutor(a):Ethel Leon

Para trazer um pouco de luz sobre esse argumento *, pode ser útil ilustrar como (e porquê) a produção do frio teve centralidade semelhante na dinâmica constitutiva do estilo de vida dos países industrializados. Embora estejamos familiarizados com eles, trataremos de ver novamente os traços históricos mais importantes. É indubitável que existe uma relação reciprocamente causal entre a primeira revolução industrial e os progressos obtidos na tecnologia térmica. Progressos, por sua parte, que se tornaram possíveis, em grande medida, graças aos novos conhecimentos científicos adquiridos no campo da termodinâmica (CARDWELL, 1971). Além disso, foram esses conhecimentos que abriram caminho para esta variante da tecnologia térmica que é a tecnologia do frio (resfriamento, refrigeração, congelamento, tratamento e acondicionamento do ar).

Dos muitos aspectos que se podem julgar como caracterizadores da civilização industrial, talvez o mais caracterizador seja sua formidável capacidade de manipular a energia térmica. Prova disso é, por exemplo, a importância que adquiriu, nos últimos dois séculos, o controle térmico do ambiente. Muitos historiadores se ocuparam do tema. Mas foi, sem dúvida, S. Giedion (1948), em seu livro bem documentado Mechanization Takes Command, o primeiro a destacar o significado da tecnologia do frio (1). Para Giedion, a tecnologia do frio é um dos fatores que tornou materialmente possível o surgimento do estilo de vida que distingue a sociedade industrial avançada. Um estilo de vida que se identifica historicamente com o processo de “democratização do conforto”. (MALDONADO, 1987)

Por democratização do conforto – em favor da síntese, permitam-me uma definição circular – entendemos a acessibilidade do maior número de pessoas ao maior número de bens considerados ‘confortáveis’. A partir da análise cuidadosa de tais bens, constata-se que boa parte deles estão, direta ou indiretamente, relacionados à tecnologia do frio. Consideremos a influência que teve a tecnologia do frio sobre a forma de cocção dos alimentos, e, portanto, sobre nossos hábitos alimentares. Foi esta tecnologia que permitiu criar, há pouco mais de 150 anos, a ‘cadeia do frio’, um eficiente circuito mundial de circulação de produtos perecíveis.

Entre os muitos elos desta cadeia, o refrigerador doméstico é o que se encontra mais próximo do destinatário final, isto é, do consumidor (2). Nos refrigeradores domésticos, a provisão do frio não provêm, como antes, do exterior, com a tradicional entrega de gelo em domicílio, mas sim do interior, graças à possibilidade de dispor, no próprio lugar, de energia elétrica necessária. O mesmo ocorre, por outro lado, com a produção de calor por meio da eletricidade (ou gás) para a cocção. Mas com uma diferença: enquanto nesse último caso, com a única exceção do surgimento dos infravermelhos, o fenômeno não teve consequências em nível sistêmico, no caso do refrigerador doméstico, as coisas se apresentaram muito diversamente. De fato, a produção autóctone de frio abria um vasto horizonte de possibilidades de aplicação.

A indústria capitalista não demorou a perceber. Seguindo um modelo que outras vezes fora validado (basta recordar, por exemplo, o descobrimento do transistor em 1949) a indústria busca desfrutar a fundo – e com grande alcance – todas as possibilidades de aplicação da nova tecnologia. O resultado, seria inútil negá-lo, é impressionante: nasce uma rede densa e articulada de interações entre produção, distribuição e consumo, na qual a tecnologia do frio é o constante ponto de referência. Sempre no campo alimentar, a produção e a venda varejista de produtos congelados geram uma série de processos de novidades em cadeia. A sensação que se tem é que esses foram orquestrados tendo em mente um único projeto global. Pode ser que esse projeto jamais tenha existido. É provável, sim, que tenha sido, como sucede muitas vezes na economia de mercado, uma espécie de ‘mão invisível’, de smithiana memória, que assumiu a direção coordenadora.

De todo modo, a sucessão de mudanças se realizou sem maiores dificuldades em nível do sistema. Embora tenham ocorrido algumas defasagens e obstáculos, estes foram logo neutralizados. E as mudanças em curso não eram de pouca monta. Tinham a ver com um amplo espectro de inovações: abarcavam desde os critérios e métodos de aprovisionamento da matéria-prima até os estabelecimentos de elaboração; desde as embalagens até os meios de transporte; desde os depósitos intermediários até as estantes de exposição nos pontos de venda. Mas outra inovação, e de real importância, também teve lugar nos refrigeradores domésticos, que se compartimentaram termicamente para garantir a conservação dos congelados.

Não obstante, talvez a mudança mais importante é a que teve lugar na vida cotidiana. Antes de mais nada, mudaram nossos hábitos de consumo,  já que nossas compras são quantitativamente, cada vez mais concentradas e, precisamente por isso, cada vez menos freqüentes. Além disso, encurta-se, em alguns casos, o tempo pessoal que se investe na cocção dos alimentos. E ainda que possam parecer conquistas frívolas, em verdade não são. É precisamente mediante estas conquistas, aparentemente pequenas, que o frio, acessível para muitos, começa a interiorizar-se como fator de simplificação e de agilidade, isto é, como fator de conforto.

Sem dúvida, há uma área na qual a influência da tecnologia do frio sobre nosso estilo de vida é ainda mais notável. Refiro-me à difusão das instalações de ar condicionado. Como se sabe, o homem é um animal homeotérmico, ou seja, um animal capaz de manter constante a própria temperatura, independentemente de qual seja a temperatura ambiente. É supérfluo dizer que isso é assim até certo limite, passado o qual não há homeostase que valha. Mas esses limites têm uma relativa elasticidade que pode depender dos mais diversos fatores. Por exemplo, há pessoas que estão habituadas, por seu lugar de nascimento ou pelo ofício que praticam, a suportar condições climáticas particularmente duras. Outros fatores são as roupas e o equipamento dos quais podem dispor para proteger-se dos efeitos das temperaturas muito baixas ou muito altas. Não menos decisivas são, de acordo com o que expressou M. Mauss, as ‘técnicas corporais’, isto é, o conjunto de atitudes e posturas corporais que se adotam para tornar mais suportáveis as inclemências do clima. Os povos que habitam zonas tropicais nos dão excelentes exemplos nesse sentido.

A sociedade industrializada contemporânea encarou o problema do calor e do frio recorrendo ao controle artificial do meio ambiente, valendo-se, para este fim, dos aparelhos de ar condicionado e /ou os aquecedores. Para o tema que nos ocupa, o que nos interessa é a emissão de ar frio, porquanto, também nesse caso, se utilizam geralmente fluidos refrigerantes que utilizem CFC.

Aqui é imprescindível fazer uma distinção. Enquanto o esfriamento e o congelamento dos produtos alimentícios fazem parte fundamental de qualquer estratégia que busque eliminar a fome e a desnutrição no mundo, parece muito menos fundada a defesa  a todo custo das normas atuais de controle térmico ambiental. É verdade que a atual expansão da indústria eletrônica, a crescente informatização do terciário, a proliferação de centros de cálculo e de sofisticados instrumentos nos laboratórios de pesquisa exigem, cada vez mais, a manutenção de uma temperatura e de uma umidade relativas constantes nos locais de trabalho. O mesmo é válido para criar condições de habitabilidade em microambientes particulares, como por exemplo, as aeronaves.

Mas fora destas situações especiais, cujo peso quantitativo, por certo, não deve ser subestimado, será forçosamente necessário desestimulara refrigeração intensiva nos espaços residenciais ou de trabalho e nos veículos, apesar de estar tão arraigada em nosso estilo de vida, porque já não é mais compatível com as exigências da atual emergência ambiental. A menos que em prazo muito curto, possam desenvolver-se novos refrigeradores, com todas as virtudes e nenhum dos defeitos dos CFC. Além do mais, cada vez que se fala de combater um consumo de qualquer tipo, corre-se o risco de passar a ser rapidamente suspeito – e inclusive ser explicitamente acusado – de querer propor novamente uma austeridade de claro feitio moralizador. Além do fato que, no que concerne a mim, não é uma austeridade desse tipo que tenho em mente, reconheço que, em meu raciocínio, ficam abertas algumas questões de fundo, cuja existência seria ingênuo ocultar. Se se observa o que ocorreu nos países do Leste europeu, surge inequivocamente, que um fator importante de mudança não foi só o “desejo de democracia”, mas também e simultaneamente, o fascínio exercido do estilo de vida próprio da economia de mercado. Um estilo de vida que, precisamente, está centrado na expansão ilimitada dos consumos.

Em tal contexto, haveria que perguntar-se: Não é um anacronismo propor uma contração do consumo nos tempos que correm? Não é uma impertinência evocar a austeridade quando há povos que durante décadas (e também durante séculos) viveram em regime de ‘austeridade forçada’ e que agora buscam, com êxito ainda incerto, livrar-se dela? Há muito de correto nessa pergunta.

Mas as coisas se complicam ainda mais quando de um convite genérico para reduzir algum tipo particular de consumo, para o bem do presente e do futuro do meio ambiente, se passa a formular, em nome do mesmo interesse, um programa com objetivo muito mais ambicioso: obrigar a sociedade industrializada a abandonar totalmente seu estilo de vida. Objetivo esse que, com uma visão emancipadora de longo alcance, não pode ficar excluído a priori. O juízo seria diferente, no entanto, se se raciocinasse em termos de uma plausibilidade mais ou menos imediata. Desde sempre, os historiadores, sem que sejam necessariamente conservadores, nos ensinaram a não subestimar jamais a inércia dos estilos de vida. 

 



(1) A linha de pesquisa introduzida por Giedion foi continuada por R. Banham (1969) com ênfase particular no que se refere à influência que teve o controle térmico do ambiente na construção e na arquitetura.

(2) Nos Estados Unidos, a partir de 1915, o refrigerador doméstico, depois de muitas incertezas técnicas e comerciais, inicia sua carreira em direção à produção de massa, objetivo que alcança dez anos depois. Para sermos sinceros, ainda não se tratava de um frigorífico bem eficiente. Carecia de três condições fundamentais: um fluido frigorígeno com propriedades físicas necessárias, mas, que ao mesmo tempo, não fosse inflamável ou tóxico; 2) um material capaz de prover um alto grau de isolamento térmico num mínimo espaço; 3) um compressor com uma ‘anatomia’ e uma ‘fisiologia’ à altura das prestações esperadas (THEVENOT, 1984). Nos anos 1930, o advento dos CFC marcou o início de um novo período de tecnologia do frio. Os CFC se apresentaram como fluidos frigorígenos ‘ideais’ (elevada estabilidade química, boas propriedades termodinâmicas, não inflamabilidade e atoxicidade) Nas foi preciso esperar os anos 1940 para que o uso se generalizasse nos refrigeradores domésticos. No mesmo período, o compressor faz importantes progressos no sentido já indicado. Mais lento foi o desenvolvimento de materiais isolantes que, até os anos 1960, não tiveram uma solução satisfatória. E aqui, mais uma vez, a solução ‘ideal’ se deveu ao uso dos cfc como agentes expansivos dos materiais plásticos.



* Maldonado desenvolve o argumento de que o buraco da camada de ozônio é o resultado do estilo de vida dos países do Norte.



Bibliografia

BANHAM, Reyner. The Architecture of the Well-Tempered Environment. London: The Architectural Press, 1969.

CARDWELL, D.S.L From Watt to Clausius. London: Einemann, 1971.

GIEDION, Siegfried. Mechanization Takes Command. A Contribution to Anonymous History. New York: Oxford University Press, 1948.

MALDONADO, Tomás. Il futuro della modernità. Milano: Feltrinelli, 1987.

Sobre o Autor(a):

Tomás Maldonado nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1922. Cursou Belas Artes em Buenos Aires e participou ativamente dos movimentos de vanguarda artística, arquitetura e design na Argentina. Mudou-se para a Alemanha, em 1954,  e tornou-se professor da Hochschule für Gestaltung de Ulm, escola que dirigiu entre 1964 a 1966.

Mudou-se em seguida para Milão e foi professor da Universidade de Bolonha, presidiu o Icsid no biênio 1967-1969 e foi diretor da revista Casabella entre 1977 e 1981.  É professor emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires; é professor emérito e foi diretor do Departamento de Desenho Industrial do Politécnico de Milão. É autor de Escritos Preulmianos, Ambiente humano y ideologia, Vanguardia y racionalidad, El diseño industrial reconsiderado, Critica de la razón informática, entre outras obras.

Uma exposição de suas obras mais importantes, entre as quais suas pinturas, correm o mundo. Atualmente a exposição de Tomás Maldonado está na Triennale de Milão até abril de 2009.

O texto acima é o último capítulo do livro Hacia una Racionalidad Ecológica, publicado, pela primeira vez, em 1990 em italiano e, em 1999 em espanhol, pela editora argentina Ediciones Infinito. Nele, Maldonado discute vários aspectos das posições ambientalistas, e não foge à complexidade do tema, polemizando sobre direitos dos animais, o antropocentrismo, o ecofascismo e a ecosofia.

No texto que relaciona a cadeia do frio e os novos estilos de vida, cuja publicação em Agitprop foi autorizada por Tomás Maldonado, está o questionamento complexo da adoção daquilo que chamaríamos de componente indispensável da segunda natureza doméstica, a geladeira unifamiliar ou mesmo individual.

 


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