Reciclando identidades: o marginal e o herói
Rico Lins
Meu olhar se voltou para as artes visuais ao mesmo tempo em que se voltou para o cartaz quando, nos apaixonados anos 60, ele reinava soberano. Fora as capas de discos e revistas ilustradas, a expressão única dos cartazes crescia à medida que a contracultura expressava seus sonhos, desejos e paixões. Nestes anos em que a vida começou a sentir mais pressa, a força desta expressão sintetizava numa mensagem direta e contundente enormes doses de poesia, iconoclastia, contestação e utopia, banhando o cotidiano de drama, de informação e de opinião, legitimando no espaço físico de uma folha de papel toda a revolução de um
mundo em revolução.
Se o cinema e a bossa eram novas, o que dizer do design, este rebento europeu na terra de macunaímas progressistas que buscavam no desenvolvimento industrial mais uma entre tantas expressões de nossa identidade e modernidade? Foi neste período que, sob os arcos da Lapa, surgiu impávida a ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), filha legítima de Ulm, neta da Bauhaus, marcada pelo compromisso ideológico com o progresso de um país em industrialização. E foi neste berço que, alguns anos depois, vim a praticar meus passos no terreno das comunicações visuais. Foi assim que, além de Havana, San Francisco, Quartier Latin, Hanói, Varsóvia e Arembepe, Ulm e Weimar passaram a fazer parte da
minha história e de minha geografia criativas.
Foi neste universo que meu olhar começou a se educar e, a partir dele, minhas referências, critérios e interesses começaram a se estabelecer. Mas meu contato com o cartaz se iniciou pela gravura, e não pela prancheta, nas aulas com Maciej Babinski e Evandro Jardim, no Ginásio Vocacional. A ESDI de Aloisio Magalhães e Karl-Heinz Bergmüller deu o primeiro grande passo no ensino do design no Brasil, que eu acompanhei. Acrescentou à experiência de Lina Bo e Pietro Bardi no IAC (Instituto de Arte Contemporânea) uma metodologia segundo a qual o designer teria total controle sobre o processo criativo, uma estrutura clara e ordenada num desenho lógico para resolver todos os problemas projetuais.
Do meu ponto de vista de aluno interessado mais na expressão do que na metodologia, via o compromisso com este modelo de país em industrialização excluir do processo o saber ou o fazer autóctones, presentes no IAC. O silêncio que separava a cultura popular da tecnologia naquele momento opunha bandeirantes da Gestalt a folcloristas nostálgicos, ofuscando, com uma certa vergonha e datada intolerância, o que hoje é considerado correto. Naquele ambiente, nem a experimentação de linguagens nem nosso patrimônio gráfico se
encaixavam ou encontravam legitimação. Ao lidar com a diversidade e a pluralidade de modo tão peculiar, a expressão pessoal perdia terreno para o pensamento projetual, e a prática do design se distanciava da das artes gráficas.
Compreensivelmente, os projetos de identidade visual e editorial – além do incipiente design de embalagens – destacavam-se, pois melhor expressavam este modelo. Criou-se assim uma espécie de cisão, que agrupava artistas gráficos e ilustradores de um lado e designers do outro. Não por acaso, o quase escasso registro de uma história do cartaz no Brasil encontra-se impresso nos livros de publicidade, e não nos de design. Esta dicotomia acabou relegando ao segundo plano expressões gráficas de linhagem mais livre ou híbrida, como o cartaz.
De lá para cá muita coisa mudou e, com a industrialização e, mais recentemente, a globalização, descobriu-se que o local não nega o global, e design é palavra que agora se fala nas novelas, se senta à mesa com conceitos como sustentabilidade e inclusão. Reconheceu-se enfim as qualidades dos modos de fazer brasileiros, que adquiriram expressão e projeção próprias.
O Brasil em Cartaz
O cartaz brasileiro é o retrato de uma utopia: não tem lugar social no orçamento ou nas paredes. No entanto, a força expressiva do cartaz reside, em grande medida, exatamente no fato de ser algo fora de lugar e, mais do que qualquer expressão gráfica, um catalizador do experimentalismo. Partindo do princípio de que a boa criação gráfica obedece a uma lei básica da física – atrito gera energia –, o cartaz brasileiro é uma de suas mais fiéis expressões. Por suas características intrínsecas de produção é marginal e herói. E assim se
traduz não apenas no espaço criativo, mas também no social, tecnológico e histórico.
O meu ponto de vista é o do criador e se orienta pela expressão e pela surpresa. Ao ser convidado a montar esta exposição, ficou claro que meu olhar seria envolvido, incompleto, imperfeito e multifacetado. A responsabilidade de sistematizar de alguma forma uma expressão tão múltipla e dispersa como o cartaz brasileiro se valeu, portanto, de um olhar através da lente de um repertório específico num momento histórico definido.
Além disto, os cartazes da Mostra iriam conviver sob o mesmo teto com Chéret e Lautrec, Cieslewicz e Tomasewski, Tadanori Yokoo e Grapus, o que deu ao projeto não mais o lastro da referência individual, mas o da perspectiva histórica, da qualidade gráfica e da representatividade cultural. Estes foram, portanto, os critérios que naturalmente abracei ao aceitar este convite, critérios que foram divididos com Christelle Kirchstetter, diretora de grafismo do Festival de Chaumont. Para garantir uma representatividade que fosse além das minhas referências pessoais, o convite foi aberto e amplamente divulgado junto à comunidade criativa, que trouxe ao projeto não apenas um acréscimo de quantidade, mas de expressões.
Seja Marginal, Seja Herói
No mundo contemporâneo, cada vez mais o design se articula pelo equilíbrio entre
tecnologia, mercado e cultura. O conceito criativo do cartaz da exposição Brasil em Cartaz se resolve a partir de espaços gráficos definidos por esta reflexão: o lambe-lambe, o offset e a serigrafia. Sobreposição de linguagens e momentos tecnológicos que se interpenetram e se contaminam, como de resto fazem nas paredes de nossas cidades.
Como pregadores no deserto, os cartazes tipográficos resistem heroicamente em sua marginalidade. À margem do sistema produtivo, da indústria gráfica, da legislação urbana, do design e da propaganda, eles são pré-cartaz, pré-layout, pré-imagem, pré-tudo. Limitada às letras de madeira, às cores de impressão e ao formato do papel, a mensagem é textual, informativa, garrafal. Se respeitados estes limites, estão ao alcance de quem assim quiser: rápidos, baratos e descartáveis, desafiam teimosa e eficazmente a tecnologia, o
mercado, a cultura e a estética de elite.
Comparada com a rusticidade do lambe-lambe, a precisão do offset é numérica, quase abstrata; sua fisicalidade reside no seu total controle do processo, formatos, suportes e tiragem. Herdeiro direto da litografia, sua expressão atual é digital: não é mais limitada pela técnica, mas pelo espaço de veiculação e pelo direito autoral. Com infinitas possibilidades de combinação, manipulação e reprodução, imagem e texto se fundem na mesma plástica, onde sampling, movimento e ritmo são reais e literalmente recicláveis, móveis e sonoros. Com tantas limitações concretas à sua sobrevivência nos espaços urbanos atuais, a efemeridade intrínseca do cartaz se dissolverá, enfim, no lugar etéreo do virtual, incorporando à sua expressão som, animação, hiperlinks e desmaterialização?
A serigrafia é requintadamente camaleônica, se adapta primorosamente do manual ao digital com baixo custo, rapidez e sofisticação. Com o insinuante nome de silkscreen, é responsável, depois da litografia, por grande parte da produção gráfica de excelência. Na qualidade cirúrgica de sua tela de seda se projetaram do protesto de Maio de 68 ao requinte das tiragens numeradas em cores e papéis especiais, da nata do teatro alternativo à quadricromia industrial em grande formato, da pop art à produção de quintal. Democrática e aristocrática em sua expressão, conserva o caráter essencialmente artesanal onde qualidade, liberdade e limite encontram sua síntese.
E como tecnologia, mercado e cultura não se excluem, mas se completam, ao cartaz que traduz a exposição coube expressar este equilíbrio. Lambe-lambe, digital e serigráfico, são três cartazes que dividem o espaço da mesma folha de papel. Impressos um sobre os outros, convivem com a tolerância das linguagens, o atrito de expressões, a reflexão e o resgate de técnicas.
O texto acima, escrito em novembro de 2005, foi publicado no catálogo da exposição de cartazes brasileiros em Chaumont, 2006.
Rico Lins é designer e foi curador da exposição de cartazes brasileiros no Festival de Cartazes de Chaumont, 2006.
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