Ano: II Número: 21
ISSN: 1983-005X
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O design do Saci

Daniel Brazil

Em janeiro de 1917 o escritor Monteiro Lobato, nas páginas do Estado de São Paulo, propôs uma pesquisa sobre o saci. Pedia que as pessoas enviassem cartas narrando ocorrências, episódios, “causos” sobre o mítico personagem.

O assunto virou livro (O Sacy-Pererê, resultado de um inquérito) e ajudou a consolidar as características de um dos personagens mais populares do folclore brasileiro. O escritor ganhou fama como autor de livros infantis, e o saci ganhou papel de destaque entre os personagens do Sítio do Picapau Amarelo.

Monteiro Lobato não sacou a história do nada. Intuiu um grande personagem a partir de relatos esparsos, muito disseminados no Vale do Paraíba (SP), onde nasceu. O duende pretinho de uma perna só, no entanto, é um típico exemplo de miscigenação, reunindo elementos de várias culturas em sua representação.
 
Os guaranis (1) contam histórias de um pequeno índio meio mágico, com o poder de se tornar invisível, que vive nos bosques e protege os animais, escondendo-os dos caçadores. Seu nome é Cambai ou Cambay, e curiosamente ele tem uma perna torta, e anda manquitolando. Vem daí a expressão cambaio, que em português significa manco.
   

É provável que a tradição guarani tenha sido adotada pelos escravos de origem africana. Para justificar objetos desaparecidos e pequenas traquinagens das crianças, nada melhor que um duende nativo invisível. Processado pela tradição oral ele se tornou negro, e passou a ser descrito com o barrete frígio vermelho, símbolo da liberdade, adotado pelos republicanos franceses que lutaram pela queda da Bastilha, em 1789.
 
América, África e Europa. Estava pronta a mistura capaz de definir um símbolo da nova cultura brasileira. Monteiro Lobato, grande nacionalista, é considerado com justiça o maior criador de sacis do século XX. Milhões de brasileiros leram ou ouviram suas histórias, e difundiram as peripécias do pequeno unípede nas conversas em torno da fogueira, nas salas de aula ou na cabeceira da cama. Nos anos 1960, o desenhista Ziraldo lançou sua versão de Saci Pererê em quadrinhos, com grande sucesso, até hoje lembrado.

A explosão midiática ocorrida a partir dos anos 1960, com a expansão da TV e a globalização dos meios de comunicação, fez com que uma nova onda cultural, globalizante e padronizada, invadisse o terreno da fantasia infantil com novos mitos. Fadas, duendes, dragões, elfos e elementais passaram a ocupar o lugar do saci e outros mitos brasileiros, como a mula-sem-cabeça, o boitatá e a iara, nossa sereia das águas doces.
   
No final dos anos 1990 um grupo de pessoas, preocupadas com a quase extinção do saci, criou a Ancsaci, Associação Nacional dos Criadores de Saci. Sediada em Botucatu, e tendo como patrono Monteiro Lobato, partia do princípio de que cada vez que você conta uma história de saci para uma criança, você está criando um novo saci, e assim ele se perpetua.
 
O movimento se expandiu nos meios acadêmicos, propícios a embates culturais. Em Botucatu, virou Festival Nacional do Saci, que acontece todo mês de agosto. Em outras cidades foram criados núcleos de defesa do folclore, envolvendo educadores, artistas e simpatizantes. Várias escolas, ocupadas pela invasão do Halloween, de origem americana, fizeram ações de recuperação do saci, com bons resultados.

Em 2003 foi fundada a Sosaci – Sociedade dos Observadores de Saci -, em São Luiz do Paraitinga, que promoveu diversas ações de impacto. O município criou o Dia do Saci, sendo seguido por outros, inclusive a capital do estado, São Paulo. Estabeleceu-se o dia 31 de outubro (data do Raloim gringo) como data de combate aos estrangeirismos, simbolizado pelo simpático perneta. Seus sócios acham que criar saci significa aprisioná-lo, por isso defendem a observação em seu habitat natural.
 
Mas o que isso tem a ver com design, objetivo principal desta revista? Primeiro, obviamente, por se tratar de um embate cultural, entre uma criação autóctone e valores disseminados sem critério pelos meios de comunicação.
 
Segundo, porque o saci vem sendo cogitado como símbolo da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. Grupos se mobilizam pró e contra, outros personagens aparecem, como o Pelezinho, de Mauricio de Souza. Uns dizem que seria ridículo um personagem deficiente representar o futebol, e argumentam que seria melhor adotá-lo nas Paraolimpíadas.
 
Há nesse raciocínio um grande erro conceitual. Ao saci, não falta uma perna. Na verdade, ele tem uma perna! Não ocorre a ninguém que uma cobra ou um peixe sejam seres “defeituosos” por não terem pernas. Ao saci, com seu design biológico perfeitamente adaptado ao meio em que vive, não falta nenhum membro. Ele se movimenta com mais agilidade e eficiência num bambuzal, onde se reproduz, que qualquer ser humano.
 
Desnecessário lembrar quantas criações exemplares do design se firmam sobre apenas um pé. Abajures, taças, pedestais e amplificadores são exemplos de elegância e precisão. Muitos fotógrafos preferem o monopé ao tripé, por sua leveza e praticidade. Cadeiras profissionais sofisticadas, como as de dentista ou de barbeiro, se assentam sobre um único e suficiente pé.
 
Em um artigo publicado na revista Experimenta (2), o designer italiano radicado em Madrid, Pierluigi Cattermole, justifica conceitualmente a criação de uma luminária de leitura com a ilustração de um curioso ancestral do saci, encontrada por ele num livro de História. Um ser estranhíssimo visto pelos primeiros exploradores do extremo sul do continente americano no século XVII. Foi chamado de patagon, “grande pata, pezão”, e usava o pé para se proteger dos raios solares.

Um saci hermano, típico ancestral do nosso saci, mais uma prova documental de que ele é de origem sul-americana. Nosso caro Pierluigi, estudioso da teoria do design, demonstra, talvez sem o saber, ser um legítimo criador de sacis. Ou observador, como querem os bravos militantes da Sosaci.
 

 


(1) Cambay (versão guarani do saci): Jekupé, Olívio. O Saci Verdadeiro, editado pela Associação Guarani Nhe'em Porã, 2003.

(2) Patagon: Cattermole, Pierluigi. Un Ser de Una Sola Pata, artigo publicado na revista de cultura e design Experimenta n. 41,  2002, Madrid.

 


Daniel Brazil é roteirista e diretor de TV.

 


Comentários

Thiago Vaz
13/10/2009

parabéns, Daniel Brasil, por acentuar os Ís de todos os sacis, uma vez que publicamos algo em relevancia da sua existencia, material ou não. Achei muito bom o seu texto, acho que seria interessante fazer a publicação em meu blog: http://eosaciurbano.wordpress.com o que acha? pode ser!?

Dinho Nascimento
13/10/2009

Olha!Todos nós que andamos com os pés na mata ,pulamos de um pé só no chão de brincar (queimada) e que conhecemos um pouco da nossa historia dos mitos e lendas do Brasil, desde os tempos de criança.Temos um saci dento da gente,ou no nosso imaginário (pelo menos eu tenho). Já fiz e gravei músicas p/o Saci Pererê..Então, meu voto sempre foi do Saci.E agora c/a Copa de 2014 será mais ainda. Saudações Sacizistas, Dinho Nascimento.

Bruno Porto
23/09/2009

Outra ligação com as artes gráficas: a SOSACI possui uma bela exposição itinerante com desenhos de Saci, doados por ilustradores e artistas visuais como Airon, Angeli, Bruno Liberati, Bruno Porto, Cris Eich & Jean Claude, J. Bosco, Jal, Verde, Marcelo Martinez, Marco Carillo, Marcos Cartum, Maringoni, Newton, Ohi, Orlando Pedroso, Paulo Caruso, Salvador Messina, Samuel Casal, Vinícius Voguel, Will, Xalberto, Zé Mário, Zélio e, claro, Ziraldo.

Lucas Nanini
23/09/2009

Lendo o texto do meu camarada Daniel Brazil descobri que meu conhecimento sobre sacis é parco. Acho que aprendi mais lendo este texto do que nos meus 34 anos de vida. Sou um defensor do Saci como um dos principais símbolos da cultura brasileira, por isso sou a favor de que usemos um sacizinho com gorrinho verde-louro como símbolo da Copa do Mundo de 2014. Concordo que ele TEM uma perna e não que lhe falta a outra. É lendo textos como este que me deparo com uma curiosidade ainda maior sobre o tema abordado. Parabéns pelo tema, parabéns pelo desenvolvimento do tema, parabéns pelo texto! Um abraço! Lucas Nanini

Almir Almas
20/09/2009

Daniel, muito bom. muito bom. o saci é perfeito.

Carlos Mauro
20/09/2009

Muito bom o artigo, Daniel. Essa história de que o saci é deficiente por que tem um só pé é uma coisa de louco... afinal, por definição, saci tem um pé só...se tivesse dois, aí é que seria deficiente... Quem inventou essa história só pode ser ruim da cabeça ou doente... do pé!

Cachoeira
19/09/2009

Grande Daniel, maravilha de texto, viva o Saci, e em tempos de Dunga com sua ode aos pernetas, o Saci, com certeza, tal como os diversos acrobatas da bola que encontramos pelas ruas com suas intermináveis embaixadas, será o melhor mascote para 2014, roguemos aos designers que criem um belo Saci boleiro!!! Gde Abs.

Medina
18/09/2009

Dá a dez pro Saci!

neuzza pinhero
18/09/2009

seu texto vem-que-vem, feito pluma no pulso do vento leve Sempre fico tão feliz quando leiomeenleio sim, sim, como diz o Fábio, viva o Saci, a Medusa, Shiva e todo o panteão dos mitos, Origem! abçs admirados!

Fábio Brazil
18/09/2009

Daniel, sempre uma delícia ler seus textos - com uma capacidade de pesquisar o "inútil" de dar inveja à Ciêcia Inglesa. Só um reparo, sob o olhar dos católicos, às cobras, faltam pernas e braços, perdidos pela ancestral Serpente lá no Édem. Por isso, católicos morrem de medo delas, que sob essa ótica, buscariam vingança, claro. Você tem toda razão! O Saci tem o número de pernas que precisa ter, como Shiva tem o número de braços que precisa ter e a Medusa os cabelos que merece. abs, Fábio.

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