De guarda-chuvas e mochilas
Ethel Leon
Desculpem os leitores o tom bloguístico, mas hoje, como faço muitos dias, vim caminhando para o escritório. Chovia e portei meu melhor guarda-chuva, um masculino, que se abre automaticamente e não é do tamanho de um guarda-sol familiar nem daqueles miudinhos de carregar na bolsa.
Mesmo assim, êta objeto incômodo. Não à toa, Villém Flusser abre o primeiro texto da coletânea (a minha é uma edição antiga, francesa, Petite philosophie du design), falando tão mal dele. Parece de fato extraordinário que no mundo dos pequenos objetos eletrônicos ainda figure, inefável, o guarda-chuvas.
Até no nome ele é arcaico. Alguém ainda fala guarda-roupa? Guarda comida? Guarda-pó, de professor? Guarda-louça? Nem a profissão de guarda-livros existe mais. Da lista de guarda, talvez só guarda-costas mantenha seu uso comum, aliás, ampliado... O danado é tão conservador, que na reforma ortográfica pertence àquela classe de palavras que permanece com hífen.
A ‘sombrinha’ (sinônimo antiquado, de quando as mulheres se protegiam do sol) mantém uma mão tensa e ocupada. Ao ser fechada, desanda a pingar, molha as mãos, o chão, o balcão de recepção dos prédios... Quando aberto, nas ruas, ocupa um perímetro grande, e se choca com os pares. É tão incômodo, que sempre esquecemos dele, mas, diachos, dele necessitamos. E xingamos por tê-lo abandonado.
Incrível que até hoje alguém não tenha pensado em algo melhor. E não me falem de capas, anoraks, impermeáveis ou como queiram chamá-los. Mesmo que não portemos qualquer objeto nas mãos, a sensação da chuva caindo numa superfície que nos protege é desagradável. E, de todo modo, a maioria das pessoas carrega bens que perecem sob o efeito da água: documentos, dinheiro, contas para pagar, lenços de papel, maquiagem...
Nos últimos anos, a moda das mochilas pegou para valer. E os citadinos agradecem essa invenção dos alpinistas, popularizada pelos exércitos e que deixa nossas mãos, braços e ombros livres para pagar o ônibus (mesmo que seja para passar o cartão no leitor digital) ou comer ou segurar num corrimão ou apertar as mãos de amigo e dar forte abraço nos afetos.
A mochila prevê essas operações, é objeto de quem trabalha, estuda, precisa das mãos livres. Para quem ainda acredita no primado do funcionalismo-mor, repare: não é porque inventaram a mochila, que desinventaram a bolsa de alça, nem mesmo a bolsa de mão! Essa última, que a maioria só porta em dia de festa, demonstra a rara condição, da desocupação e também da despreocupação. Bolsinhas ou carteiras de mão são acessórios de quem está no ócio, quem tem a segurança de que ela não será roubada, talvez até porque carregue peças desimportantes. Mulheres portando carteiras sem alça geralmente estão acompanhadas de homens que pagam suas contas.
Há cerca de dez anos, a mochila se universalizou e tornou-se moda chique. Havia exemplares pequenos, de couro, as revistas femininas e de saúde a celebravam como o melhor dispositivo de distribuir o peso nas costas e poupar a coluna vertebral. Mas, ao popularizar-se, cavou seus nichos mercadológicos e saiu do circuito feminino. Desde então, mando trocar alças e encomendo a artesãos cópias das minhas mochilinhas de couro, delicadinhas na aparência, robustas e ‘cabedouras’ ou ‘cabeudas’. Nelas alojo tanta coisa...e nem parece.
De todo modo, as mochilas esportiva, jovem, para viajantes, para crianças continuam no mercado, em diversas formas e materiais. Agora, um substituto para o umbrela (sim, a palavra existe em português, consultem o Houaiss)...ainda está para ser inventado.
Guarda-chuvas são bons mesmo, me lembra Marcello Montore, no plural e em fotos. São objetos feitos para fotografar do alto. Desse ângulo, igualam as pessoas na sua humanidade, todas têm de proteger-se das intempéries. Perfazem balé aleatório de esferas côncavas de múltiplas cores, se filmados também de cima. Não à toa são objetos centrais de dois musicais impressionantes: Singing in the Rain e Les Parapluies de Cherbourg.
Mas na vida cotidiana, nas calçadas estreitas, nas faixas de pedestres...ele é trombolho, isso sim. Não haveria meio de firmá-lo sobre um colar? Conectá-lo num aro como a um fone de ouvido? Acoplar a ele um apito para que nos lembrássemos de levá-lo conosco? Não seria possível um dispositivo que criasse campo hidrofóbico, espécie de aura à nossa volta, um pouco como Moholy-Nagy desejava as cadeiras, suspensas sobre jatos de pressão de ar?
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Comentários
Ethel Leon
29/10/2009
Renata,
Obrigada pelo envio desse link. De fato, ficar com as mãos livres é fundamental, mas não sei se essa hibridação de capa e guarda-chuva é eficiente. Curiosamente, a propaganda da empresa fala de esportistas e crianças...
Renata Rubim
29/10/2009
Ethel, acessa: http://www.ufocap.com/
Lembrei de você e deste texto quando vi!
Denilson Cordeiro
22/10/2009
Noto no seu texto um tom benjaminiano, que Benjamin, aliás, colheu e assimilou em grande parte de Proust. A desnaturalização de objetos cotidianos, a genealogia das suas denominações, a identificação de famílias de objetos, a peculiaridade exumada de seus usos e utilidades presentes e pretéritas. Projeto nas suas idéias um pouco de meus vícios de profissão e vejo no seu texto uma ótima aula, cujos títulos poderiam ser: 1) Princípios projetuais para jovens e não-jovens designers; 2) Desnaturalização e vivificação de objetos cotidianos; 3) Modos de se enxergar o que se tem diante do nariz; 4) Olhe à sua volta, caro designer! 5) Onde o simples é complexo; 6) Onde o perto é longínquo; 7) “Por que eu não tinha percebido?” 8) Piano, piano se va lontano! Começo desde já a exercitar a sua lição. E volto pra casa olhando pra tudo o que normalmente não via, ou não percebia. Em busca do tempo perdido...
Marcello Montore
19/10/2009
Delicioso comentário sobre os guarda-chuvas, mas achei muito injusto colocá-los em contraposição às mochilas (foi como entendi). Essas sim vêm ganhando espaço em tamanho, volume e capacidade de incomodar os outros. Vc já entrou em um elevador com um grupo de estudantes todos com suas mochilas nas costas? Mochilas, aliás, que nunca têm menos do que uns 30 a 40cm de “espessura”. Uma simples meia volta torna-se manobra arriscada (para os outros) quando a mochila esbarra em meia dúzia de pessoas – e seu dono, talvez desatento, talvez achando normal o contato indesejado, sequer balbucia um “desculpe”.
Gosto dos guarda-chuvas, talvez eles sejam como as bicicletas – tenham chegado a um “projeto climax”, não há mais nada a tirar, senão perderiam a função, e nada a acrescentar que não seja cosmética. Uma traquitana tecnológica para abrir mais facilmente talvez, um sistema de “encolhimento” para guardar na bolsa, mas em essência continuam os mesmos. Arrisco até a dizer que seu uso implica uma certa civilidade, uma vez que temos que deixar espaço para os outros passarem e vice-versa. Quase uma dança.
Por fim gostaria de lembrar do belíssimo filme “Mary Poppins”, baseado nos contos da escritora australiana P.L. Travers, lindamente adaptado pela Disney para a tela grande em 1964. O guarda-chuva torna-se um personagem do filme. Acompanha a babá-feiticeira Mary Poppins a quase todos os cantos, é transporte, proteção e confidente (o cabo é um papagaio impertinente com quem ela conversa no final do filme). Tem ainda a cena maravilhosa e muito bem executada (muito antes dos efeitos digitais) das babás, todas de negro, que saem voando com seus guarda-chuvas numa tempestade de vento, para que Mary Poppins chegue flutuando, leve e colorida, com seu guarda-chuva.
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