Ziraldo sempre em cartaz
Guto Lins
Mais do que um livro genial, em Ziraldo em cartaz, para mim o mais bacana é a confluência de generosidades que ele contempla. Ricardo Leite, o autor, resume este espírito logo no início: "Nunca tive dificuldade em reconhecer e homenagear os meus heróis e o Ziraldo definitivamente tem lugar de honra nessa galeria”. E o retratado compartilha generosamente com o leitor seus ídolos, influências e truques.
Logo de cara, Ricardo abre o jogo e o coração: "Todo livro revela, disfarça e, na maioria das vezes, esconde emoções do autor. Este é diferente. Faço questão de alertar logo de inicio que se trata de um trabalho profundamente emocional, carregado de adjetivos e livre de preocupações acadêmicas"
Bendito seja este mix de emoção e generosidade explícita! Graças a ele, o livro pode ser navegado de diversas formas e por públicos mais diversos ainda. Diversidade, aliás, é a palavra melhor para definir o Ziraldão.
E, tem também uma generosidade agregadora implícita. Quando o Ricardo se coloca " livre de preocupações acadêmicas", acaba tocando em um ponto interessante. Ziraldo é um advogado diplomado e um designer autodidata. O seu sonho juvenil era ser 'affichiste' e teve que aprender tudo na marra, na raça. Foi se construindo e lapidando seu talento inato através do trabalho diuturno e da pesquisa prazeirosa, que o fez correr atrás de seus ídolos na Europa e nos Eua.
A partir dos anos 1960, com a criação da Esdi, o autodidatismo ziraldiano não era muito bem visto pelo sintetismo bauhausiano. Embora Ziraldo tenha feito cartazes com as mais variadas soluções e linguagens e, mesmo se tratando de um esteta e um tipógrafo de primeiríssima linha, sempre houve uma certa falta de sintonia e uma falta de reconhecimento do setor, digamos, acadêmico.
Este livro, talvez ‘sem querer querendo’, tenta corrigir este deslize histórico e preencher esta lacuna. Ricardo mostra de forma exemplar e até didática, a importância de cada faceta deste designer de mão cheia.
E que mão!!!!!
Cá entre nós, a série da Sharp tem ilustrações de fazer cair o queixo de qualquer um. O meu, pelo menos, já caiu diversas vezes. Aquarela, aerógrafo e lápis de cor utilizados com maestria. Trabalhos extremamente detalhados, ricos em texturas, lapidados pelo ourives madrugada adentro. Muitas vezes com o estúdio cheio de amigos, música e alegria. Nada que lhe tirasse a concentração. E ele confessa: “Nesta série eu tinha um prazer FDP de desenhar. Queria me superar a cada desenho".
Sim, o livro é pontuado por frases de ambos, Ricardo e Ziraldo, como se fosse um papo. Ou uma boa aula. No final do livro,inclusive, o autor disseca dois cartazes do mestre.
Citei a generosidade lá no inicio, como propulsora do livro, porque para mim, a característica mais marcante do Ziraldão sempre foi sua extrema, quase inesgotável, generosidade. Gênios não costumam ser generosos, mas Ziraldo é, e isto passa também em seu trabalho mostrado neste livro. É visível a generosidade e o respeito com o público-alvo. Ele se preocupa em 'ser entendido'. Na verdade ele precisa ser entendido. É visceral. Ele gosta de gente e quer se comunicar com o maior número possível de pessoas. Sempre. E com todas as limitações técnicas e/ou orçamentárias que pintarem.
O autor comunga da mesma generosidade quando diz "Como a popularidade de Ziraldo é grande e o público interessado no livro pode ser bastante variado, procurei usar uma abordagem que permitisse a compreensão por todos os leitores". E como o autor é simplesmente um dos melhores designers gráficos da atualidade, esta 'abordagem' permeia não só o texto como todo projeto gráfico.
E, para completar, uma terceira personagem entra em cartaz: Ana Maria Santeiro assina o projeto editorial. A idéia genial e original é dela. Foi ela quem pôs a pilha e aglutinou as generosidades do Ricardo e do Ziraldo.
Ziraldo me disse certa vez: “Ideia? Eu tenho umas 300 por dia, o difícil é realizar”. E como o homem realizou nestes últimos 50 anos... Perdi a conta. É tão larga e acachapante a produção que seriam possíveis infinitas maneiras de categorizar e editar todo o material garimpado. A opção encontrada foi genial: os cartazes foram setorizados por semelhanças de seus "elementos gráfico-visuais, o que pressupôs uma análise técnica da cada uma das peças apresentadas". Ricardo analisa e compara diversos cartazes, mostra referências e pontua tudo com observações do próprio Ziraldo
O livro é dividido, então, em capítulos: ZIRALDO ANTES DO ZIRALDO mostra a fase inicial e a busca de um estilo próprio. ZIRALDO TIPÓGRAFO ilustra as soluções tipográficas geniais, influências e soluções. ZIRALDO ILUSTRADOR mostra a mão genial do mestre.
Ainda tem o ZIRALDO ENGAJADO com os diversos projetos com fins beneficentes, fechando com FEIRA DA PROVIDÊNCIA e a incrível coleção de cartazes feitos para o mesmo cliente, por 48 anos ininterruptos. Deve ser algum recorde. Esta série da Feira da Providência está no inconsciente coletivo de qualquer carioca, de qualquer idade. Um 'sistema' de design', conjugando ilustração e tipografia, com pequenas adaptações e ajustes, que funciona brilhantemente até hoje.
Comunicação direta com a mão inconfundível e identificável por cerca de três gerações.
E aí está outro grande diferencial: muitos dos cartazes já fazem parte de nosso consciente coletivo e, quase instintivamente, passaráamos ao largo, da mesma forma que relemos um texto já lido e relido. Mas, ao dar-lhes o destaque merecido intercalando-os com textos, comentário e análises técnicas, emocionais e históricas, tudo, mesmo o já visto e revisto, ganha novas cores.
Certa vez, ouvi dele: “ninguém sabe o trabalho que dá parecer que desenhei rápido”. E põe rapidez nisso! É quase impossível acreditar que alguns cartazes foram feitos quase no colo com o cliente/ amigo do lado, batendo um papo e tomando uns uísques. Rápido no gatilho e nas decisões. O Fortuna uma vez perguntou pra ele (tá no livro): “Pô cara, você tem certeza que esta é a melhor solução?” Sempre tinha. E o livro ainda tem o bônus de mostrar alguns cartazes recusados ou que nunca existiram como o que ele fez para Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber, ou o WAR, mandado para um concurso internacional e desclassificado por algum jurado ignorante.
Ziraldo, certamente é um dos artistas mais versáteis que o mundo já viu e o livro mostra isto de uma forma muito bacana, gerando hiperlinks históricos que situam o leitor. Além de ilustrador, designer e cartunista, vemos o Ziraldo autor de teatro e roteirista de cinema.
E, sob certo aspecto, até o Ziraldo negociante, como na passagem em que é citada a série de cartazes feitos para a Secretaria de Turismo do Amazonas nos anos 1970. São cartazes geométricos, sintéticos ao extremo. Um deles inteiramente verde com a frase bilíngue: Visite o Amazonas. E só. Chegou a ganhar um prêmio (que nem se lembra qual) e, ao receber os 'parabéns' de um designer suiço, respondeu "pelo prêmio?". "Não, não, parabéns por ter arranjado alguém que pagasse por cartazes como esses!". Ainda bem.
E ainda bem que arranjaram alguém disposto a editar esse livro.
Já que autor volta no tempo, aos seus 13 anos em uma visita ao Pasquim e abre o seu coração, farei o mesmo. Há alguns anos atrás, numa solenidade no Tribunal de Justiça do Rio em honra de seu cunhado (meu sogro), que estava se aposentando como desembargador, Ziraldo pediu o microfone, subiu na bancada e mandou ver. Após muitos risos e lágrimas, selou com a frase da noite: “Silvio, você é foda!”
Frase esta seguida de aplausos e urros de todos os presentes. Nossos senhores desembargadores engravatados, inclusive.
Nada mais me resta, pra fechar a tampa, além de plagiar o mestre: Ziraldo, você é foda!!!
Guto Lins é designer, ilustrador, escritor e professor do departamentos de Artes e Design da PUC-Rio
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