Ano: II Número: 23
ISSN: 1983-005X
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Design empreendedor

Sara Goldchmit

Na prática tradicional da profissão, o designer é contratado para resolver questões propostas por clientes. Uma alternativa a esse modelo são os projetos de livre iniciativa, nos quais o designer é o seu próprio cliente: inventa produtos ou soluções para problemas que o preocupam e, só então,  oferece-os ao mercado. Ou seja, o termo empreendedorismo aplicado ao design não significa necessariamente administrar um grande escritório.

Essa inversão do modelo tradicional, em que o designer não espera ser solicitado para fazer a "embalagem" de coisas pré-definidas, mas é ativo no empreendimento de novos conteúdos é o tema do curso de pós-graduação "O designer como autor", dirigido por Lita Talarico e Steven Heller, na School of Visual Arts (SVA) de Nova York. Lita Talarico esteve em São Paulo participando da Brazil Design Week, no fórum "Políticas de ensino em design: a universidade e a realidade do mercado", onde mostrou alguns projetos criados por alunos da SVA e também uma seleção de trabalhos de designers profissionais que, do seu ponto de vista, são empreendedores. As ideias apresentadas fazem parte do seu livro The design entrepreneur: turning graphic design into goods that sell, publicado em 2008 pela Rockport Publishers.
 

Artes e ofícios

Criar e produzir objetos para o mercado não é uma novidade. No final do século XIX, artesãos do movimento Arts and Crafts liderados por William Morris manufaturavam uma gama extensa de itens – móveis, livros, tipografias, tecidos etc. – em reação aos problemas morais e sociais gerados pela industrialização. Inspirado por John Ruskin, Morris propunha a retomada da união entre as artes e os ofícios, a fim de superar a mediocridade dos produtos industrializados e o isolamento do artista em relação à produção.

Atualmente, diversos fatores podem justificar essa tendência ao empreendedorismo. Ellen Lupton, uma das profissionais retratadas no livro The design entrepreneur, ressalta que as transformações ocorridas no campo do design gráfico após a popularização do uso do computador na década de 1990 – com amadores tomando uma parte do mercado e o crescente interesse do público não-especializado em tudo que diz respeito a design – fez com que os profissionais fossem obrigados a repensar a sua atuação.

A atuação propositiva no campo do design hoje é bastante eclética. A seleção dos profissionais retratados no livro mostra diversas facetas do que significa ser um "designer empreendedor", na visão de Talarico e Heller. Destacam-se exemplos de:

– Ilustradores-autores como Seymour Chwast, Maira Kalman e Christoph Niemann;

– Designers que aplicam elementos gráficos em produtos, como Charles Spencer Anderson;

– Designers industriais, como Yves Behar;

– Fundidoras de fontes digitais, como a T26, de Carlos Segura;

– Agentes ligados à divulgação do design, à educação e à transformação social, como UnderConsideration, Ellen Lupton e Winterhouse.

A alternativa empreendedora, de acordo com Lita Talarico, oferece ao designer não apenas novas e diversificadas oportunidades financeiras, como principalmente lhe traz a recompensa de ser o autor da obra completa, em vez de submeter projetos visuais a objetivos e conteúdos com os quais pode discordar. Além disso, o impulso criativo que não é acolhido no ambiente corporativo pode tornar-se realidade em um projeto próprio.
 

Alunos engajados na transformação social

O direcionamento pedagógico do curso O designer como autor enfatiza projetos em que o design ajuda a promover algum tipo de transformação positiva na sociedade. O caso de maior sucesso do curso até hoje é um sistema de embalagens de medicamentos criado pela aluna Deborah Adler, em 2002. A aluna percebeu uma falha na comunicação visual dos remédios manipulados em farmácias: rótulos com informações confusas causam graves problemas a pessoas idosas, que tomam a medicação de forma errada.

Adler fez desse problema o desafio do seu trabalho de conclusão do curso. Posteriormente, em 2005, o projeto foi comprado e implantado em larga escala pela Target Pharmacy, sob o nome de ClearRx. No sistema ClearRx, o emprego da cor vermelha nos frascos atribui uma identidade forte às embalagens – como uma assinatura da Target (cuja marca também é vermelha). A forma da embalagem, que fica de pé sobre a tampa, pode ser facilmente manipulada e aberta, concentrando as informações mais importantes na frente. A ergonomia na leitura determinou a escolha de fontes de ampla legibilidade, em tamanhos hierarquizados de acordo com a relevância das informações. Um cartão removível contendo os usos e efeitos colaterais da medicação fica "guardado" na parte de trás do frasco. Aneis de cores variadas presos ao gargalo ajudam a identificar rapidamente a quem pertence cada remédio no ambiente da casa.

Esse projeto é um caso de sucesso, pois incrementou as vendas das farmácias da Target, promoveu uma melhora na saúde da população e também trouxe para a designer um reconhecimento importante no processo de transição da escola para o mercado. Nesse ponto, é preciso reconhecer que a visibilidade proporcionada aos alunos pela School of Visual Arts é invejável.

Dois outros projetos interessantes mostrados foram um simpático conjunto de tigelas cerâmicas e um conjunto de talheres e louças. As cerâmicas são empilháveis, dotadas de elementos gráficos coloridos, que indicam as medidas das porções dos alimentos, destinam-se a pessoas com problemas de obesidade. O segundo projeto que chamou a atenção é uma coleção de talheres e louças para pessoas com deficiências físicas, que tem como intuito não apenas torná-las capacitadas para a função de comer, como também proporcionar uma melhor experiência da refeição, através do uso de utensílios com maior valor estético do que aqueles normalmente produzidos para esse público.
 

Riscos da "aventura produtiva"

No artigo "Jovens objetos velhos" Ethel Leon alerta para os riscos da "aventura produtiva":

(...) são despejados, anualmente, milhares de jovens designers no mercado de trabalho, incapaz de absorvê-los a todos. É claro, as indústrias precisam de ‘criativos’, mas muitas delas mudaram-se para a China. É fato que toda padaria de esquina precisa de ‘branding’, mas uma marca ou um inteiro sistema visual podem ser gerados por default por jovens secundaristas hábeis em programas de computação gráfica.  Portanto, muitos jovens designers diplomados, sem querer submeter-se às agruras do mercado de computeiros, decidem tornar-se ‘empresários de si próprios’. Tudo isso é acalentado por uma literatura de auto-ajuda empresarial de estímulo às pequenas empresas, às oportunidades do mundo sem carteira assinada e sem direitos previdenciários. 

Os jovens têm idéias, muitas delas originadas em seus trabalhos de conclusão de curso, e  lançam-se na aventura produtiva. Só que não têm instrumentos de investimento de uma empresa. A saída: pequenos objetos engraçados, muitas vezes formados por componentes industrializadas de baixo custo, que têm uma atratividade, pois se espelham na produção artesanal exemplar de alguns stars do design que adotam estratégias semelhantes. 

E assim se forma a objetística, curioso amontoado de peças sazonais, muitas delas adeptas do fun-design (a exemplo da produção da empresa italiana Alessi) e que povoa feiras, feirinhas, lojinhas e butiques de museus e atinge, geralmente, um público também jovem, num circuito que se conecta ao do turismo e ao dos “eventos”.

(...) No entanto, a objetística está  longe de ser uma saída para o design brasileiro e de tantos países periféricos, onde ainda há tanto de essencial a fazer.


A crítica certeira de Ethel Leon à  onda de objetos efêmeros, desnecessários e de baixa qualidade alinha-se com os critérios de Lita Talarico e Steven Heller, que ressaltam:

o termo 'designer empreendedor' corre o risco de se tornar uma expressão da moda, que ilude qualquer um que desenvolve e vende qualquer bugiganga. De fato, há um rigor envolvido nisso. O designer empreendedor deve se comprometer em criar (e às vezes falhar) e achar um nicho para um produto que tenha algum valor (ao menos para certo público). Fazer qualquer coisa engraçada aleatória e colocá-la numa prateleira não é suficiente.

Certamente esta é uma discussão complexa: quais os limites que diferenciam uma bugiganga de um bom produto?

O exemplo que fica desses designers empreendedores é a disposição que mostram para inventar novos e valiosos conteúdos, aumentando o alcance e a responsabilidade de sua atuação profissional.

 

Para saber mais:

Curso "O designer como autor" – School of Visual Arts
http://design.sva.edu/site/home

Seymour Chwast
http://www.pushpininc.com/TheNose.html

Maira Kalman
http://kalman.blogs.nytimes.com/

Christoph Niemann
http://niemann.blogs.nytimes.com/

Charles Spencer Anderson
http://www.frenchpaper.com/popink.asp

Yves Behar
http://www.fuseproject.com/

T26
http://www.t26.com/

UnderConsideration
http://www.underconsideration.com/

Ellen Lupton
http://elupton.com/

Winterhouse
http://www.winterhouse.com/

Target Pharmacy
http://sites.target.com/site/en/health/page.jsp?contentId=PRD03-004319

Jovens objetos velhos
http://www.agitprop.com.br/ensaios_det.php?codeps=MTF8ZkRFeG
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Sara Goldchmit é designer gráfica, mestre em design pela FAU-USP e autora do blog Design Diário.


 

Mais informações: www.designdiario.com.br

 


Comentários

Renata Rubim
30/11/2009

Conteúdo ótimo, leitura fundamental!

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