Um passo ao compasso
Fabíola Bergamo
Tantos anos desenvolvendo oficinas de design para o artesanato em vários lugares do Brasil, nas mais diversas situações, me ensinaram que a única coisa realmente previsível é que o imprevisível fará sempre parte do cenário.
Um lugar novo, uma comunidade que não foi antes visitada, por mais que tenham sido coletadas informações sobre a situação, sempre apresenta surpresas. Somente alcançamos a real dimensão do trabalho quando efetivamente já estamos no local.
Foi assim na última oficina que fiz em setembro. O objetivo era o de utilizar o papel artesanal de bagaço de cana e fibra de bananeira, desenvolvido por outra comunidade vizinha e, com ele, desenvolver produtos, prioritariamente caixas.
Local, uma comunidade rural a uma hora de Alta Floresta, norte do Mato Grosso. Um conjunto de sítios, 8 mulheres cheias de energia mas que nunca tinham realizado qualquer atividade na área da produção artesanal. Uma situação bastante particular, pois nas oficinas geralmente temos um ponto de partida, uma técnica que é de domínio do grupo. Neste caso o desafio era começar do zero.
Existiam duas possibilidades: uma, mais fácil, seria fazer alguns modelos de caixas, seus respectivos moldes e ensinar a essas mulheres como montar e revestir essas caixas. Muito pouco em minha opinião, o conhecimento agregado seria mínimo, o estímulo minúsculo. A outra possibilidade era a de passar ao grupo conhecimento suficiente para que elas fossem capazes de desenvolver qualquer modelo e tamanho de caixa. Dar-lhes ferramentas para que pudessem ter independência para criar.
Alguns pontos eram de fundamental importância para o sucesso futuro. Elas teriam de compreender os princípios básicos de geometria para construção de formas, o que possibilitaria ao grupo autonomia para o incremento de caixas em qualquer formato e tamanho. Um desafio interessante para uma amante das ciências exatas como eu, que durante a faculdade dava aulas de matemática e física, ensinar geometria básica a mulheres de 20 a 40 anos, com o ensino fundamental incompleto.
Ao mencionar a palavra geometria o pânico foi geral, mas nada comparado à satisfação dessas oito mulheres, e minha, ao verificar que depois de apenas quatro dias elas haviam compreendido completamente o processo.
Outro ponto importante era o entendimento das etapas de desenvolvimento das caixas, da elaboração dos moldes até o revestimento em papel artesanal. Não bastaria que elas executassem um conjunto de procedimentos previamente definidos e fixos. Dessa forma, elas poderiam melhorar continuamente os processos.
Nós que preenchemos nossas necessidades diárias com produtos adquiridos no supermercado, quanto aprendemos nesses lugares! Quando se tem terra e se sabe usar, quase nada é comprado. Arroz, verduras, frutas, basta ir até a horta ou pomar. Carne de frango e de porco, criação própria. O óleo usado na fritura vira sabão, e até a bucha para tomar banho e lavar a louça é colhida ali mesmo (sim a bucha é colhida). Por outro lado, matérias tecnológicas e especiais não fazem parte do cenário. Por isso toda a matéria-prima usada para a manufatura dos produtos foi escolhida por poder ser encontrada na região de Alta Floresta. Assim, o material de base achava-se sem falha na papelaria local e, para o revestimento, optou-se por um papel artesanal produzido pela comunidade de Estrela do Sul.
E finalmente, para criar a especificidade que considero tão importante em comunidades em formação, definir um elemento que diferencie os produtos desenvolvidos por esta comunidade das demais que utilizam as mesmas matérias primas e técnicas, e que funcionará como uma marca, tornando reconhecíveis, os produtos aqui concebidos. Para esse diferencial, nada mais adequado que usar para o acabamento elementos que já fazem parte do vocabulário das prendas manuais da comunidade, bordados – feitos com barbante de rami – comprado no armarinho local.
Como foi desenvolvido o trabalho
Dia 30/08, em Alta Floresta compramos o material complementar, depois viagem até a comunidade de Comunidade São Francisco de Assis, visita ao local onde seria feita a oficina.
Dia 01/09, já na comunidade, depois de entender um pouco mais sobre cada uma das participantes do grupo, foi feita a apresentação e capacitação para uso e conservação do material básico de desenho e montagem, esquadros, compasso, papel Paraná, cola, pincéis, papel artesanal. Comecei, então, as noções básicas de geometria para construção de caixas quadradas e desenvolvimento de uma caixa por participante em papel rascunho para verificar o nível de compreensão do que foi ensinado, marcação e montagem. Cumprida esta primeira etapa, elaboramos o molde definitivo da caixa quadrada. Cada participante desenvolveu e montou uma caixa em papel Paraná e depois a revestiu com papel artesanal.
Dia 02/09, foi a vez das caixas redondas, um pouco mais complexas, e das capas para blocos e agendas. Seguimos as mesmas etapas do dia anterior. Começamos também a desenvolver os bordados que seriam a “marca” da comunidade.
Dia 03/09, elaboração das caixas em formato de coração e definição final dos bordados, tipo de ponto e desenhos.
Dia 04/09, para verificar o nível de compreensão em relação ao que foi ensinado, dividi o grupo em quatro duplas. Cada uma delas escolheu uma das peças de bijuteria de sementes (colares, brincos e cinto) executadas por outra comunidade apoiada pelo Sebrae local. A proposta era que, sem ajuda, definissem o melhor formato para a caixa e fizessem o dimensionamento, desdobramento do molde, montagem, revestimento e bordado. O trabalho foi executado sem grandes dificuldades. Foi a confirmação, para mim e para elas, que estavam prontas para seguir adiante sozinhas.
No final da oficina, chegamos a um portfólio de produtos que incluia:
Caixas quadradas, caixas retangulares, caixas redondas, caixas em forma de coração, caixas para as bijuterias artesanais desenvolvidas por outra comunidade da região e capa para blocos, agendas etc. – todos com diversos motivos de bordado, selecionados entre as opções propostas pelo grupo e por mim e gabaritados.
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