Ano: II Número: 19
ISSN: 1983-005X
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A Lei da Adaptação
Horatio Greenough, 1852
Tradutor(a):Marcello Montore

Se, como um primeiro passo em nossa busca pelos grandes princípios da construção, não fizermos mais do que observar os esqueletos e as peles de todas as espécies de de feras e de pássaros, de peixes e de insetos, não ficaremos, forçosamente, impressionados pela sua variedade tanto como por sua beleza? Não existe lei arbitrária da proporção, nenhum modelo inflexível de forma. É raro existir uma parte da organização animal que nós não descobrimos alongada ou encurtada, aumentada, diminuída ou suprimida, que não seja ditada pela necessidade dos gêneros ou das espécies, como poderá necessitar sua exposição ou seu trabalho. Os pescoços do cisne e da águia, apesar de diferentes em caráter e proporção, igualmente cativam o olho e satisfazem a razão. Nós aprovamos o comprimento do mesmo membro nos animais de pastagem e seu encurtamento nas aves de rapina. As canelas dos cavalos são finas, e nós as admiramos; o peito do cachorro da raça Greyhound é fundo, e nós o louvamos, lindo! Não é nem a presença, tampouco a ausência, dessa ou daquela parte ou forma ou cor que cativa nosso olhar nos elementos da natureza; é a consistência e a harmonia das partes justapostas, a subordinação dos detalhes às massas e das massas ao todo.

 

A lei da adaptação é a lei fundamental da natureza em toda estrutura. Ela modifica tão resolutamente um tipo de acordo com uma nova situação, que alguns filósofos declararam que sua intenção é a variedade de aparências; ela limita tão plenamente a mudança às demandas da necessidade que a aderência a um projeto original parece, para inteligências limitadas, imposta até às raias do capricho. O predomínio de regras arbitrárias do gosto produziu a contraparte da sabedoria, que se mostra em todos os objetos a nossa volta; nós amarramos a girafa no poste; nós raspamos o leão e o chamamos de cachorro; nós lutamos para amarrar, com cordas, o boi selvagem ao arado e fazê-lo gradar os vales depois de nós!

 

Quando o selvagem das ilhas do Mar do Sul dá forma à sua arma de guerra, seu primeiro pensamento é o uso. Seus primeiros esforços são para desbastar a lança e moldar um pegador conveniente; então a extremidade mais pesada toma gradualmente a forma do fio de corte, enquanto retém o peso que assombra. Em suas horas ociosas ele divide a superfície com linhas e curvas, ou trabalha figuras em baixo relevo que agradaram aos olhos ou que estejam ligadas à sua superstição. Nós admiramos sua forma eficiente, sua originalidade à moda Etrusca, seu perfil sutil e gracioso, no entanto negligenciamos a lição que ela nos pode ensinar. Se compararmos a forma de uma máquina recém inventada com o tipo aperfeiçoado do mesmo equipamento, nós observamos, à medida que em que acontecem as fases de aperfeiçoamento como o peso é reduzido onde a força é menos necessária, como as funções são feitas para aproximar sem obstruir uma a outra, como a reta se torna curvada, e a curva é endireitada, até que a máquina original e incômoda se torne compacta, eficiente e bela.

 

[...]

 

Agora vamos nos voltar para uma estrutura que a partir de sua natureza e usos nos impele a rejeitar a autoridade, e deveremos encontrar o resultado do uso viril do simples bom senso, bem como do gosto e do gênio, tão raros para exigir um termos específico. Observe um navio no mar! Veja a forma majestosa de seu casco à medida que ele avança pela água, observe a inclinação graciosa do seu corpo, a transição gentil de formas redondas para planas, o controle da quilha, o avanço da proa, a simetria e o rico traçado dos mastros e dos cordames, e aqueles magníficos músculos de vento, suas velas! Contemple uma organização que fica atrás apenas daquela dos animais, obediente como um cavalo, veloz como um veado e suportando a carga de mil camelos de mastro a mastro! Que Academia de Design, que pesquisa de esteta, que imitação dos gregos produziu essa maravilha de construção? Aqui está o resultado do estudo do homem sobre o grande abismo, onde a natureza fala das leis da construção, não na pena ou na flor, mas nos ventos e ondas, e ele dirige toda sua mente para ouvir e obedecer. Se pudéssemos levar para nossa arquitetura civil as responsabilidades que pesam sobre nossos construtores de navio, nós deveríamos há muito ter edifícios para os objetivos que necessitamos, muito superiores ao Parthenon, assim como o Constitution ou o Pennsylvania[1] estão para as galés dos Argonautas. Se nossos erros em terra firme fossem postos a prova da mesma forma que aqueles dos construtores de navio, pouco restaria para ser dito.

 

Em vez de forçar as funções relativas a todos os tipos de edifícios em uma forma geral, ou adotar uma fachada pelo simples prazer da aparência ou sem referência à distribuição interna, deixe-nos começar pelo coração como um núcleo e trabalhar de dentro para fora. O tamanho e arranjo mais conveniente dos ambientes que constituem o edifício a ser criado, a entrada de luz e de ar que se deve prover, assim, temos o esqueleto do nosso edifício. Não somente isso, nós temos tudo, exceto o acabamento. A conexão e ordem das partes, justapostas para a conveniência, não pode deixar de falar de suas relações e usos. [...]

 

Que campo de estudo se abriria na arquitetura civil pela adoção daquelas leis de distribuição e conexão, às quais nós temos aludido até aqui? O mero principiante não poderia mais agrupar um conjunto de ambientes sufocantes, mau ordenados e mau iluminados, e mascarar o caos com uma cópia vil de uma fachada grega, usurpando, assim, o título de arquiteto. Se essa conexão e proporção anatômicas já foi obtida em navios, em máquinas e, a despeito de falsos princípios, em algumas construções como pontes e andaimes – onde não respeitá-la seria altamente perigoso –, porque deveríamos temer seu uso imediato em todas as construções!

 

[...]

 

O desenvolvimento normal da beleza se dá por meio da ação para a completude. Invariavelmente, o desenvolvimento do embelezamento e da decoração é mais embelezamento e mais decoração. O reductio ad absurdum é suficientemente palpável afinal; mas onde estava o primeiro degrau para a decadência? Eu sustento que a descida começou quando da introdução do primeiro elemento inorgânico, não-funcional, seja ele forma ou cor. Se me dissessem que um sistema, tal como o meu, iria produzir nudez, eu aceitaria o presságio. Na nudez eu contemplo a majestade do essencial, em vez das armadilhas da pretensão. [...]

 

Beleza é a promessa da função. [...]

 

[...]

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[1] O USS Constitution é uma fragata norte-americana que foi lançada ao mar em 1797; e o USS Pennsylvania foi o maior navio de guerra construido pela marinha dos Estados Unidos e lançado ao mar em 1837.

Sobre o Autor(a):


Horatio Greenough foi escultor de tendências neoclássicas nascido em Boston em 1805. Em 1821 ele foi admitido em Harvard, onde pode se dedicar às suas paixões: as artes e os trabalhos da antiguidade. Estudou italiano e francês, com vistas a continuar seus estudos no exterior. Antes de se graduar, viajou para Roma para estudar arte. Ele trabalhou também por longo tempo em Florença onde se deu grande parte da sua vida profissional.

Publicado no ano de sua morte (1852), o livro The Travels, Observations, and Experience of a Yankee Stonecutter, de onde este texto foi extraído, afirmava que a beleza em arquitetura e design estava diretamente relacionada à função. Essa foi uma das primeiras afirmações sobre o que viria a ser a doutrina do funcionalismo, adotada no final do século XIX e início do XX. Vários arquitetos como o norte-americano Louis Sullivan (e posteriormente Frank Lloyd Wright) e o alemão Mies van der Rohe, por exemplo, a incorporaram em suas obras e em seus discursos.

Neste texto o autor formula a analogia entre a evolução biológica e a evolução do projeto, adotada por muitos dos arquitetos modernistas. Greenough afirma: "Em vez de forçar as funções relativas a todos os tipos de edifícios em uma forma geral, ou adotar uma fachada pelo simples prazer da aparência ou sem referência à distribuição interna, deixe-nos começar pelo coração como um núcleo e trabalhar de dentro para fora", e isso não é menos do que a filosofia da "arquitetura orgânica", tão importante na obra de Wright que, inclusive,dirá: "Construir organicamente é construir de dentro para fora, como faz uma árvore".

A conhecida afirmação "a forma segue a função", cunhada pelo arquiteto norte-americano Louis Sullivan em 1896, no seu artigo "The tall office building artistically considered" representa "o" moto da arquitetura e do design funcionalistas. Na verdade, o que Sullivan afirmou foi algo ainda mais enfático: que "a forma sempre segue a função". No entanto essas discussões e discursos são devedores de "a beleza é a promessa da função", afirmação feita por Greenough 44 anos antes de Sullivan.

(Marcello Montore)

 


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