Ano: III Número: 26
ISSN: 1983-005X
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Garoupa na nota de cem

Ethel Leon

No dia 3 de fevereiro, o ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou mudanças nas cédulas do real. As modificações, explicou, foram feitas para dificultar falsificações e também para “acompanhar a tendência de outros países”.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, reiterou a necessidade de atualização, mas garantiu que, apesar das mudanças, foram preservadas as características visuais das cédulas.

Segundo as autoridades, as novas notas têm padrão de impressão superior às antigas e alguns elementos de segurança como a marca d'água foram redesenhados para facilitar a identificação pela população e dificultar a falsificação.

A estabilidade e valorização da moeda e a crescente participação de empresas brasileiras em negócios internacionais são as razões apresentadas para as mudanças. Além disso, reconhece o ministro, ao ser introduzido em 1994, o real foi projetado de forma rápida e agora é possível ter cédulas com “características de longo prazo”.
Nas novas notas de R$ 50 e R$ 100 há uma faixa holográfica, o que, de acordo com o Banco Central, é um dos mais sofisticados elementos anti-falsificação existentes.

Em desenvolvimento desde 2003 pelo Banco Central e pela Casa da Moeda do Brasil, as notas incorporam mudanças reivindicadas por organismos de defesa dos deficientes visuais: as cédulas têm distintos tamanhos –  elas aumentam segundo o valor –  e marcas táteis.

Henrique Meirelles disse à imprensa que houve preocupação do governo de não criar confusão no reconhecimento do dinheiro. As cores foram mantidas, assim como as figuras que ilustram as cédulas – imagens de animais da fauna brasileira. No entanto, há todo um redesenho feito em cada uma das notas.

A frente delas manteve a efígie da República, mas ganhou o valor da nota por extenso, além de figuras relativas ao habitat do animal correspondente. No verso, as imagens de animais sofreram modificações e estão agora na horizontal.

O Real e os designers

Introduzido em 1994, o real teve as moedas modificadas em 1998. Na época, a Casa da Moeda abriu concurso para a participação de designers brasileiros. No final do processo, o projeto escolhido foi o do pessoal interno da Casa da Moeda. No caso atual, dispensaram-se as formalidades externas e a equipe da Casa da Moeda conduziu as modificações, pelo que se depreendeu das declarações oficiais.

Em 1998, quando as moedas (e não as cédulas) foram modificadas, houve explícito cuidado com as condições de reconhecimento. Diferentes metais, tamanhos e formatos, ou seja com recursos da ergonomia visual, como gostam de dizer os especialistas.
Com as novas moedas paramos de sofrer confundindo valores, deixando de conferir trocos ou optando por prestar atenção neles e, com isso, ajudando a criar grandes filas atrás de nós.

A moeda de um país, seu meio de circulação, é um dos objetos mais difíceis, delicados, complexos e importantes de projetar. E, talvez tivesse sido proveitoso que a Casa da Moeda abrisse algum tipo de participação aos designers – se não um concurso público, ao menos uma rodada de seminários de recomendações.

Pois, além das preocupações de condições de reconhecimento e uso pela maioria, o dinheiro nacional reafirma a imagem que seus usuários fazem a respeito de si próprios. Ou seja, aspectos simbólicos têm muita importância nessa visualidade. 

Alguns diriam que a moeda é um dos mais importantes símbolos de nossa identidade nacional, assim como a bandeira e o hino. No entanto, atualmente, temos de reconhecer que a disputa das moedas no mundo fez o que parecia impossível acontecer: alemães e franceses têm a mesma moeda, o euro. Apesar de manterem suas respectivas bandeiras e hinos nacionais.

Talvez devêssemos recuperar a história recente do dinheiro brasileiro, que mudou muito em função das sucessivas desvalorizações da moeda.

O caso Aloísio Magalhães

O caso mais conhecido e estudado no meio dos designers é o das cédulas projetadas por Aloísio Magalhães nos tempos da ditadura militar. Magalhães modernizou o dinheiro, ao acabar com o tradicional frontão central que celebrava um personagem da história do país.

Em continuidade à sua pesquisa dos assim chamados cartemas, desenhou cédulas como cartas de baralho, com metades iguais, pensando na natureza primordial do dinheiro – a de meio de troca, a materialização de uma relação. Desse modo, pensou em facilitar a vida dos caixas de bancos, que sempre vemos ‘arrumando’ as cédulas nas posições corretas. 

Magalhães também traçou nova caracterização visual. Saíram os personagens chapa branca e entrou a construção de uma imagem de povo formado por diferentes etnias. Houve quem visse nisso atitude quase subversiva: dar vez às ‘raças’ que construíram o Brasil. No entanto, esta era a mentalidade de muitos documentos oficiais dos governos militares. Havia que manter a idéia de nação baseada nessa união das ‘raças’.

Como diz o sociólogo Renato Ortiz, “os parâmetros raça e meio fundamental o solo epistemológico dos intelectuais brasileiros de fins de século XIX e início do século XX” (1). Em plena ditadura militar, ainda segundo Ortiz, o Conselho Federal de Cultura manteve esta tradição do ‘sincretismo racial’, de uma pretensa brasilidade genuína em que as diferentes ‘raças’, branca, negra e índia teriam construído, em irmandade, o Brasil.

Nas propostas para o real, lá em 1998, alguns designers tomaram o mesmo partido do euro, ou seja, privilegiaram monumentos arquitetônicos construídos. Outros preferiram as paisagens reconhecíveis do Brasil. Outros ainda basearam-se na pura geometria, alguns na fauna e na flora...

O Banco Central e a Casa da Moeda mantiveram os animais nas cédulas. Em tempos de fracasso da Conferência de Copenhague e com os vai e vens da política ambiental brasileira, a permanência dos animais soa demagógica, embora simpática. Com a matança desenfreada dos peixes, em oceanos em que a pesca predatória é contínua, não é curioso termos uma garoupa na nota de cem?

Ou será que contemplamos a ilegalidade visível e popular do jogo do bicho
–  cuja capilaridade e eficiência são conhecidos de toda população urbana –  e mantemos os animais em homenagem a nosso gosto pela contravenção tolerada?


(1) Ver Renato Ortiz. Cultura Brasileira e Identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.15
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Comentários

Ethel Leon
26/04/2010

De fato, prezado Abel, faltou mesmo a data. Os projetos das novas cédulas do cruzeiro substituiram o cruzeiro novo e datam de 1970. Teriam circulado até o cruzado, em 1986.

Abel Prazer
24/04/2010

Faltou destacar o período (início e fim) em que circularam as cédulas desenhadas (designenhadas) pelo Aloisio Magalhães. Considero importante a informação diante das outras datas mencionadas no texto. Abel

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