Design, uma idéia feita?
Eduardo Côrte-Real
"Desenho (a arte do) - Compõe-se de três coisas : A linha, o grão e o grão fino; ainda o traço forte. Mas o traço forte quem o dá é somente o mestre."
Gustave Flaubert
Dicionário de Idéias Feitas
Por que que é que esta palavra design aparece sempre sublinhada em vermelho no meu processador de texto?
Se, no século XVI, Francisco d'Hollanda tivesse escrito em word com corretor ortográfico para português a palavra desegno, que tão esforçadamente procurava mostrar aos seus leitores, também daria erro. O Desenho era uma novidade de cem anos na Itália. Durante esse século (do fim do século XIV ao principio do século XVI), o disegno de Cennino Cenini, ainda preso à ideia de registro gráfico, veio a englobar o conceito de projeto.
As propostas de Hollanda, Vasari e Zuccari, entre outros, de definir desenho constituíam-no como um vasto sistema que albergava uma multiplicidade de atividades que faziam fé no registro gráfico como modo de atingir o controle formal para os objetos a produzir.
Na Espanha, onde a palavra dibujo se manteve, ao contrário do nosso debuxo (curioso, debuxo já não se usa, mas não aparece sublinhado), o diseño adquiriu o significado de design.
Tudo se parece jogar entre os prefixos de e di. Disegno, diseño, desenho, design, dessin soam como semelhantes. Design, na enciclopédia britânica é identificado como verbo, assimilado para o inglês médio através do francês.
Num dicionário da Internet encontro que designo, em latim, queria dizer: destacar, designar, descrever e definir. O que parece ressaltar destes significados é a sua relação com processos essenciais do pensamento humano.
Vamos então, tentar, a partir da tradução de designo, definir Design.
1º - Destacar:
O primeiro ponto de vista a partir do qual posso destacar aquilo que procuramos definir é o da ética. Na construção do homem moderno, sobretudo a partir de Leon Battista Alberti, os aspectos éticos foram sobrelevados. Na construção do humano como ser que projeta recorrendo à técnica e à arte (seria perigoso falar aqui de Estética), Alberti socorreu-se da virtude, virtús dos romanos, aretê dos gregos.
É claro, neste momento, que o primeiro modo de destacar que usarei se prende à história. Destaco a idade moderna e a idade contemporânea como períodos onde pode ser destacado aquilo que procuramos definir.
Os dois mais importantes tratados de Alberti: De Pictura (1435) e De Re AedificatoriaDe Pictura é a representação. Não a representação arbitrária e sensível, mas a representação como resultado da adoção de um processo maquínico indesmentível. Ao De PicturaSignum hoc loco apello quicquid in superficie ita insit ut possit oculo conspici". Este signum é traduzido pelo próprio Alberti para segno, ao que juntando o prefixo di, que indica acção, obtemos disegno. O disegno é, então a ação de produzir sinais-signos. Em segundo lugar, devemos a Alberti a definição e codificação da perspectiva. Embora a "invenção" perspectiva seja recordada sobretudo pela sua aplicação na pintura, ela comporta mais do que o seu destino pictórico. A perspectiva é a grande máquina do Renascimento porque normaliza a representação. Ao propor um método rigoroso de representação, mais do que obter verosimilhança para as obras pictóricas, a constuzzione legitima alarga a possibilidade de um mundo a haver através da sua visibilidade. As tábuas de Urbino, do círculo de Piero della Francesca, exemplificam este processo. Outro fato pertinente é o uso da aparelhagem conceptual da geometria euclidiana. Ponto, reta, plano e volume são os elementos da construção de um edifício abstrato, hipotético-dedutivo que constrói o mundo artificial. A possibilidade do projeto resulta da aceitação de um protocolo com o universo euclidiano como aquele que é logicamente válido para entender o espaço e aquilo que o povoa. Qualquer criação humana visível pode ser descrita à luz daquela aparelhagem conceptual até porque passa a ser feita com o seu concurso.
O trabalho de Alberti abre a porta ao projetista e, sobretudo, ao projetista, que usa recursos gráficos para projetar.
Consequentemente destaco de todas as ações humanas, as realizadas desde a idade de Alberti até hoje, que se caracterizam pela idéia de projeto. Dessas destaco, ainda, aquelas que aceitam o registro gráfico como o lugar onde é possível tornar visível o universo euclidiano.
2º - Designar (1443-1452) constituem-se como um manual de construção do homem como ser social, mais do que como tratados das disciplinas a que se dedicam. A questão central em devemos, primeiro, uma definição de desenho, quando Alberti escreve no início: "
Se aquilo que foi destacado for suficientemente compacto e repetível como experiência posso atribuir-lhe um nome. Ao propor um nome para esta ação destacada das outras, faço-o recorrendo a uma palavra de uma língua que não é a minha. Ocorre-me o D. Quixote de Menard do conto de Borges. Menard, francês, escreveu, nos anos trinta do século XX, um D. Quixote em tudo igual ao de Cervantes. Sem nunca esclarecer se este outro Quixote brotou da imaginação de Menard ou foi copiado, Borges, alerta-nos para o fato de, por ter sido escrito por um francês em castelhano clássico e no século XX, o livro ser em tudo diferente, embora igual.
Escolho então Design. Chegada ao inglês provavelmente por via normanda, a palavra terá ganho o seu sentido projetual pleno, sobretudo como resultado da querela sobre o disegno encetada no século XVI na Itália. No final do século XVI, artistas ingleses como Inigo Jones viajaram para a Itália com propósitos semelhantes aos de Hollanda. A querela sobre o primado das artes tinha-se esbatido, dando origem às academias del Disegno de Florença e Roma. Que palavra poderia Inigo Jones trazer para a Inglaterra que significasse disegno? As definições de disegno de Zuccari, ideólogo da Academia de Roma, aproximam-se de um sentido globalizante e divino. Uma palavra inglesa como drawing não poderia abarcar a multiplicidade de atividades que o disegno englobava.
Escolho design, no início do século XXI, porque alguém já o fez. Quase em todos os cantos do mundo, a palavra é reconhecida e é aplicada. Neste processo de aplicação viemos a encontrar-nos com a ruptura da demarcação que tinha feito anteriormente. Uso design para designar (a aliteração é irresistível) fatos, objetos e ações que ultrapassaram o registro gráfico e o universo euclidiano. Podemos dizer que a instabilidade do humano, criada desde o fim das Luzes e do início da Idade Contemporânea (também conhecida por Modernidade) e que se inaugura com o romantismo, com a designação abrangente de design, que se assume como um grande sistema interdisciplinar, se pacificará num paradigma semelhante ao criado pelo desenho para a Idade Moderna. De fato, ao fazermos o elenco de todas as atribuições da palavra design, reparamos que ela tende a absorver as artes visuais, as engenharias, a arquitetura, a biotecnologia, a ciência, o jogo e, obviamente, a participar decisivamente na criação da cibercultura. Em resumo abrupto, o design, hoje, participa de qualquer construção de mundo "artificial" sujeito a uma prefiguração a que chamamos projeto. Aquilo a que posso chamar design com segurança é todo o processo que produz uma representação de algo a produzir.
3º - Descrever
Tendo destacado algo passível de ser designado posso descrevê-lo. De certo modo, descrever implica regressar às razões que provocaram o destaque e a designação. Ao descrever percorro os limites do destaque para entrar na justificação da designação. A descrição aceita o destaque como limite do seu desenvolvimento. Descrevemos aquilo que foi destacado precedido da sua designação. No entanto, a descrição exige mais. Exige uma formulação de atributos internos que, ainda que provisoriamente, possam justificar tanto o destaque como a designação. Partindo do destaque, a descrição trata daquilo que é interno ou intrínseco ao destacado/designado. Por outro lado, a descrição de algo designado comporta sempre as limitações do conhecimento sobre aquilo que foi destacado.
Descrever o design, que, como vimos, designa quase tudo, parece ser tarefa impossível.
Descrever pode ter sido tarefa do desenho, mas foi, sobretudo tarefa da literatura.
Recorro a Italo Calvino e à Trilogia dos Nossos Antepassados. Escrita nos anos 1950, esta trilogia é constituída pelos livros: O Cavaleiro Inexistente, O Barão nas Árvores e O Visconde Partido ao Meio.
Descrever I O Cavaleiro Inexistente Próteses e Extensões
O cavaleiro inexistente é apenas constituído pela sua armadura. Externamente aparenta ser humano mas é apenas a sua "pele" defensiva. Ele simboliza todas as próteses e extensões do humano. Na armadura do cavaleiro estão simbolizados todos os objetos que em contato ou não com o corpo prolongam as suas capacidades. Esta é uma descrição de design que evoca o seu primeiro destino associado à segunda revolução industrial sob o império da produção em série e de massa. O cavaleiro inexistente é o Ford T ou o Fiat 600 alinhados na cadeia de montagem, vazios, mas já humanos (não posso deixar de sentir prazer quando as escovas da lavagem automática percorrem o dorso da minha carrinha Peugeot 505 e até um certo arrepio quando passam pelas cicatrizes dos erros de estacionamento).
O design construiu um homem contemporâneo inexistente sem a sua armadura de extensões. Só a armadura o mantém vivo e consequentemente humano.
Os santos e os deuses eram reconhecíveis pelos seus atributos. Na mitologia greco-latina e no conjunto dos santos apostólicos romanos nenhum é, por si só. Um objeto, uma pose, uma indumentária, uma ação culminante são determinantes para a sua representação. A função comunicativa dos objetos que possuímos têm o mesmo valor. Não esqueçamos que as representações dos deuses são realizadas por humanos. Basta pensarmos nos quatro evangelistas, sempre acompanhados dos seus entes de estimação. Não se pretende, consequentemente justificar a construção da armadura do homem contemporâneo com um desejo de divinização, mas sim um desejo de atingir os atributos dos deuses criados pelos homens para os reconhecer.
O kafkiano Gregor Samsa, transformado numa enorme barata torna eloquente o cavaleiro inexistente. Intimamente, ainda ele , Gregor não tem acesso à sua armadura. O conjunto dos objetos e dos espaços que constituíam a sua armadura são-lhe inacessíveis, mais valia que se tivesse tornado incorpóreo como o herói de Calvino. A história de Samsa ilustra quão ajustados ao nosso corpo estão os objetos, quão apertada é a vestimenta que julgamos múltipla e espaçosa.
Em Vitrúvio encontramos uma possível origem para a história do cavaleiro inexistente e para o incômodo de Gregor. O conceito de decor constituinte da categoria venustas, parte da tríade arquitetônica, postulava que a forma se deveria adequar à função comunicativa do edifício. Este conceito dá origem a duas palavras em português, decoro e decoração. Ambas as palavras, no seu uso corrente, desvirtuaram as sua origens. No entanto, julgo que o paradigma central do design industrial ou de produto é o decoro. É este decoro que reforça a estreiteza do fato. Os objetos ajustam-se, não só ao corpo, mas, sobretudo, ao que pretendemos comunicar. As cavalgadas do marketing e dos targets transportam o cavaleiro inexistente para toda a parte. A múltipla produção de objectos permite que cada um construa a sua armadura, tornando-se cada vez mais invisível substituído pelo sistema de objetos que a si associa.
O cavaleiro inexistente simboliza, também, a vaca e o burrico do presépio do design: a ergonomia e a antropometria. Não é por acaso que a primeira se desenvolve na guerra e a segunda na criminologia. Poucas atividades humanas esvaziam tanto o humano da sua individualidade. A armadura animada de Calvino é corretamente proporcionada e medida e as articulações permitem-lhe um desempenho ergonômico perfeito. Assim o fazem o Homem Invisível de H.G. Wells, Michael Jackson e Stephen Hawkins que são, afinal, a mesma pessoa e exemplares extremos do que pretendemos descrever.
Descrever II O Barão nas Árvores Cibermundo
O jovem barão decide, aos doze anos, passar a viver nas árvores e nunca mais por o pé na terra. Assim se passa a sua existência, sempre em contato com o mundo dos restantes humanos, mas onde os caminhos são mais curtos. Ele é ao mesmo tempo mensageiro e profeta. Na floresta, que cobre grande parte da Europa, ele se desloca na multiplicidade dos ramos onde é sempre possível encontrar uma ligação.
Para o designer o mundo é visto como um incomensurável conjunto de feixes de comunicação. À primeira vista este fato pode parecer resultar da generalização da world wide web. Na verdade, o universo www nasceu com o telégrafo e desenvolveu-se com a televisão. A www não passa de um telégrafo televisível ou de uma televisão telegráfica.
A produção de objetos de comunicação e a atribuição de valor comunicacional a objetos é que criou a possibilidade da web. O telégrafo permitiu a globalização de capitais e mercados. A televisão permitiu a consolidação do marketing e da publicidade.
A web não é mais do que a cristalização daquilo que já existia: um fluxo constante de significados no seio do mundo artificial. O design recria continuamente esses feixes de significados. O projeto conta com eles como parte essencial da sua estratégia. A representação de algo a produzir é, fundamentalmente, a criação de um feixe de significados. O designer opera, assim, num mundo abstrato de ligações comunicacionais que se realizam nos mais insuspeitos sistemas de objetos.
A design associamos, normalmente, a idéia de inovação. Esta não passa da reconfiguração de sistemas. Ao encontrar um caminho por entre a míriade das ligações possíveis que os ramos das árvores oferecem (um caminho mais curto que os terrestres) o barão opera num nível diferente do sistema de objetos vigente a que podemos chamar, genericamente, tradição. Os seus contatos com o mundo não-projetual são pontuais, interferindo e modificando a tradição, criando tradições provisórias através dos indícios do seu verdadeiro movimento. Quando se recolhe para as árvores, para o projeto, a visão que retém do mundo embaixo é fragmentada, resultante daquilo que é apenas visível por entre os ramos.
Entretanto, o vestígio do resultado da sua aparição, a nova tradição provisória, ganha autonomia e movimenta-se lentamente pelos caminhos da terra. A relação entre o Barão nas Árvores e os seus conterrâneos é, assim, sempre carregada de surpresas, de novas perplexidades. Embora haja sempre um preço a pagar pelas surpresas, o design encontrou o plano onde operar.
O designer decidiu nunca mais pôr o pé na terra porque não é deste mundo. É do mundo que há - de vir.
Descrever III O Visconde Partido ao Meio Arte e Ciência
O visconde, atingido por um tiro de canhão, vê-se dividido em duas partes. Esta catastrófica fratura separa-o na metade boa e na metade má. A metade má exerce a sua crueldade no governo do seu senhorio, provocando a miséria e o terror dos seus súditos. A metade boa regressa da guerra depois. A sua bondade, provoca também toda a sorte de acidentes e desgraças. Finalmente, por amor de uma donzela, defrontam-se em duelo. Feridos de morte, são salvos por um cirurgião inglês que os consegue recoser.
O visconde é o homem da Idade Moderna, inteiro como projeto, na Renascença, que, neste caso, a pouco e pouco se vai separando em arte e diência. O desenho tinha criado essa bela ilusão de que um homem completo e íntegro dominaria todos os aspectos do seu devir. Os desastres de Leonardo com a sua máquina voadora indiciavam já que ao segredo do vôo das aves não se chegava através do desenho. Por mais que conhecesse pelo desenho o maquinismo de funcionamento da asa, a diferença de pressão entre a face superior e a face inferior (razão da sustentação) não era visível e, consequentemente indesenhável.
Mais tarde, a ação conjugada de Lavoisier e Dalton conseguiu reunir a química, a matemática e a física criando um mundo onde o desenho não podia chegar. No início da Idade Contemporânea, a reação da arte surgiu com o romantismo que desferiu a machadada final separando as duas metades. O artista romântico fechou o seu campo à ciência franzindo o sobrolho às explicações.
O início da reunião deu-se através de uma visão do mundo natural que se tornou cultural: a teoria da evolução das espécies. A natureza que tinha sido o referente da harmonia e estabilidade formal passava a significar mutabilidade, transformação, morte e extinção, adaptabilidade. No final do século XIX o evolucionismo tinha já penetrado profundamente na cultura da sociedade da esfera protestante. Em certa medida, reforçava os aspectos do livre arbítrio. Embora arte e ciência não se tivessem recosido, os primeiros passos foram dados. A Bauhaus resulta de duas interpretações da teoria evolucionista. A de Alois Riegl, com a sua Kunstvollen (vontade da arte), e a de Max Nordau, com o seu Enfartung (degeneração), criaram condições para que a Bauhaus surgisse como adoção da primeira e reação à segunda. Esta reação comportava sobrelevar os aspectos éticos da produção que, através da técnica e da ciência, se deviam auto-justificar na forma.
Apesar deste início, cada uma das metades seguiu o seu caminho durante o século XX, fazendo maldades e bondades, mas sempre incompleta, fazendo os súditos sonhar com a plenitude dos desejos de prosperidade e paz que o jovem visconde inteiro tinha augurado.
É sedutor pensar que o cirurgião inglês se chama design. Parece ser o único capaz de saber tanto da anatomia de uma metade como da outra.
Nesta evocação não se pode decidir quem é o mau e quem é o bom. Na história de Calvino, o visconde volta a ser uno e completo embora enriquecido pela experiência do seu tempo de ser dividido.
4º - Definir
Se o cirurgião é o design, se o mau e o bom são a ciência e a arte, resta saber quem é a donzela que catalisa a união e, também, quem é o sobrinho narrador.
O sobrinho é a história, a contínua possibilidade de construir uma linha temporal através da narrativa.
A donzela é o deleite e a possibilidade de perpetuação. É o indefinível presente em cada ação humana. É a possibilidade de uma relação amorosa com o mundo que está para além daquilo que seria plausível pensar. É a venustas vitruviana, a Venus generatrix, o agente catalisador nas novas formas que buscam o tão indesmentível como inexplicável deleite na reprodução sexuada em que os opostos se misturam. Gerar o novo, ainda que participado pelo antigo, é, ainda, a condição essencial para definir design.
Em conclusão, para podermos definir o design poderemos dizer, então e agora que:
O design é o cirurgião inglês, que, na voz da história, cose pedaços do homem para que este se possa perpetuar… até nova separação.
Eduardo Côrte-Real é Doutorado em Arquitectura - Comunicação Visual pela Universidade Técnica de Lisboa. É autor do livro O Triunfo da Virtude, as Origens do DesenhoArquitectónico e de múltiplos artigos de pesquisa. É presentemente Presidente do Conselho Científico da Escola Superior de Design do IADE e pesquisador na UNIDCOM/IADE onde coordena a linha de investigação de Cultura Material e Ciências do Design.
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