Ano: I Número: 1
ISSN: 1983-005X
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SOS Park Hotel

Gilberto Paim. Fotos: Nina Paim e Miguel Nóbrega.

Poucos exemplares da arquitetura moderna brasileira são tão unanimamente considerados obras-primas, nacional e internacionalmente, como o Park Hotel de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, projetado por Lucio Costa em 1940. O arquiteto tinha orgulho do pequeno hotel, cuja realização lhe trouxe muita alegria. A finalidade inicial do empreendimento era acolher os interessados na compra de terrenos de um loteamento residencial de César Guinle, e hospedar os novos proprietários durante o período de construção de suas casas. A qualidade excepcional da arquitetura superou em muito a sua função provisória.

O pequeno hotel de dez quartos foi erguido sobre uma nesga estreita e alongada de terreno em aclive, diante do idílico Parque São Clemente, idealizado por Glaziou na segunda metade do século dezenove, o mesmo botânico e paisagista que criou o Parque da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e o Jardim da Aclimação, em São Paulo. Durante a construção, Lucio Costa acompanhou a obra de perto, visitando-a todos os finais de semana. O cuidado e o apuro do arquiteto são muito evidentes.

O hotel funcionou ininterruptamente durante sessenta anos. Entre 1966 e 1999 foi arrendado por Irene Peterdi, de origem húngara, que soube criar uma atmosfera agradabilíssima. O carinho com o qual Irene Peterdi recebia os hóspedes e cuidava do empreendimento era tal que para muitos o Park Hotel era o Hotel da D. Irene. Sem falar no seu grande talento culinário. Reinava ali um bucolismo cosmopolita, em sintonia perfeita com a arquitetura.

Lamentavelmente, porém, o hotel encontra-se fechado há quase quatro anos, sem perspectiva de reabertura, carecendo de um leque de reformas estruturais, hidráulicas, elétricas etc... Em 2003 o IPHAN aprovou uma verba para a reforma do telhado a ser realizada com o hotel em funcionamento, porém demorou a liberá-la. A obra foi mal conduzida num verão excepcionalmente chuvoso, agravando a fragilidade acumulada ao longo de várias décadas e precipitando o seu fechamento.

Os herdeiros de César Guinle afirmam não dispor dos recursos para empreender as reformas necessárias e urgentes. A prefeitura parece não ter acordado para a gravidade da situação, talvez porque a economia da cidade não dependa essencialmente do turismo, com suas diversas indústrias têxteis e metalúrgicas. No entanto, o fechamento prolongado do Park Hotel estabelece um vazio desolador.

A peregrinação de profissionais e estudantes de arquitetura brasileiros e estrangeiros ao hotel é incessante. Maria Helena Guinle, proprietária junto com o irmão Luiz, reside em Nova Friburgo, e é consultada com freqüência sobre detalhes do projeto. Quase todas as semanas, o caseiro Elenio Lima, cujo pai foi cozinheiro do hotel durante a gestão de D. Irene, abre as portas aos visitantes e responde a um sem número de perguntas. Estudantes e pesquisadores fazem fotos, gravam vídeos e escrevem monografias. Alguns sugerem outros usos para o espaço. Mas a realidade é lamentável: o alpendre da entrada desmoronou; o assoalho de tábuas largas de eucalipto está sendo devorado por cupins; há infiltração nas paredes; os móveis desenhados pelo arquiteto estão vulneráveis.  

A combinação de elementos modernos e tradicionais da arquitetura colonial é conhecida na obra de Lucio Costa. Diferentemente do modernismo europeu, o modernismo brasileiro experimentou o rompimento com as regras acadêmicas e a liberdade daí resultante em estreita associação com a busca ou a invenção de uma identidade nacional. Esta inquietação se expressa claramente na obra de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila e Djanira, entre outros artistas e intelectuais.

No Park Hotel, temos estrutura aparente, mas de toras roliças de madeira; amplas vidraças, mas que incluem uma fileira de janelas guilhotina; muita luz, mas filtrada por venezianas de madeira ou cortinas de renda. A aparente simplicidade da arquitetura reserva uma experiência estética muita rica aos seus visitantes. Arquitetura e mobiliário propõe um jogo múltiplo de contrastes sabiamente orquestrado. Contrastes entre volumes, contrastes entre materiais, contrastes formais e cromáticos. Entre a pequenina recepção e o amplo espaço que reúne bar, sala de estar e refeitório. Entre o térreo de amplas janelas envidraçadas e o andar de varandas enfileiradas de treliça. No térreo, entre os espaços cheios (salas de estar e de jogos) bem plantados no solo e o espaço vazio intermediário no qual está situada a varanda suspensa. A parede em diagonal que estreita a sala de estar na proximidade da varanda introduz com maestria a irregularidade.

Contraste entre as tonalidades quentes do granito amarelado e da madeira amendoada e o azul cobalto de algumas esquadrias, painéis e treliças, assim como estofados. Notas complementares dão profundidade ao ritmo cromático: o preto na face externa do corredor dos quartos; o branco na caiação de algumas paredes; o verde nas cadeiras do restaurante, algumas poltronas e banquetas nos quartos. Em contraponto às linhas retas que definem os espaços a linha serpentina está presente na mureta baixa entre a sala de estar e o restaurante, no balcão do bar, no balaústre da escada, no viveiro de pássaros e no sulco sinuoso do jardim, como uma “calha” que recebe a água da chuva que cai do telhado.   

Lucio Costa não descartou totalmente o elemento ornamental, cuja presença se integra perfeitamente à arquitetura. Usou a treliça da arquitetura colonial que tanto admirava na varanda dos quartos, na porta corrediça entre a recepção e a varanda, na cerca do jardim. Se a trama perpendicular foi privilegiada na arquitetura moderna urbana, a trama “inclinada” da treliça, como em repouso, encontrou lugar no hotel serrano. O padrão em X, unidade mínima da treliça, se repete dilatado horizontalmente no estreito friso superior das esquadrias térreas, e verticalmente nas toras dispostas em dupla na fachada lateral.

Entusiasmado com o projeto, Lucio Costa desenhou a maioria dos móveis e luminárias. Sua filha Maria Elisa Costa supõe que foram realizados artesanalmente em pequenas marcenarias, serralherias ou oficinas de estofados. Para os quartos e respectivas varandas ele desenhou a cama de pés recuados que parece flutuar; a mesinha de cabeceira fixa de tampo sinuoso; mesas de apoio; a espreguiçadeira regulável; a banqueta para mala; o banquinho e as arandelas. Para a sala de estar: a lareira, a mesa de centro, as mesas de jantar, o bar sinuoso, os bancos altos, o sofá, as poltronas e as luminárias de ferro.

Todos os móveis são leves, confortáveis e bem proporcionados. A elegância discreta tem uma presença quase anônima. Ao comparar os esboços aos móveis efetivamente realizados, observamos o aprimoramento no sentido da adequação e da simplicidade. O arquiteto descartou a realização para os quartos de uma mesinha de apoio com estrutura tubular de ferro, que seguia a linguagem industrial de Marcel Breuer, em favor de uma mesinha redonda delicadíssima de dois andares em madeira.

Provavelmente alguns móveis foram apenas escolhidos por Lucio Costa, como as espreguiçadeiras engenhosas da varanda, usuais em transatlânticos. Ele escolheu junto com o proprietário a louça, a roupa de cama e as toalhas. Em todos os detalhes, privilegiou a simplicidade. Nada é mais distante desse “hotel de design” bien avant la lettre, do que a ostentação cenográfica de móveis e objetos, tão comum nos estabelecimentos do gênero que proliferaram nos últimos anos.

A poltroninha de madeira da sala de estar, de encosto reclinável e braços de tiras de couro, foi identificada no inventário como de um certo Peter Volko. Ela lembra a cadeira LC1 de Charlotte Perriand, Le Corbusier e Pierre Jeanneret, de 1928, porém é mais descontraída e confortável. Talvez seja uma versão simplificada da cadeira Safári desenhada pelo dinamarquês Kaare Klint, em 1933. De todo modo, a utilização da madeira, a feitura artesanal e o diálogo com o vernacular são algumas afinidades entre o mobiliário do Park Hotel e o design escandinavo da primeira metade do século vinte. 

O interesse crescente que o Park Hotel desperta nos estudantes de arquitetura e design deve-se em grande parte ao seu sábio anti-dogmatismo, que soube relativizar as premissas modernistas anti-decorativas e anti-artesanais de Le Corbusier e empregou abundantemente matérias primas locais como a pedra e a madeira.

O hotel é um tesouro único que precisa ser urgentemente restaurado e protegido. O Instituto César Guinle encaminhou ao Ministério da Cultura para inclusão na Lei Rouanet um projeto emergencial de restauro que foi elaborado por Gesto Arquitetura e Formarte.  É inacreditável que esta realização preciosa de um dos mais importantes arquitetos brasileiros, urbanista idealizador de Brasília e defensor do patrimônio esteja assim fragilizada e vulnerável, de tal modo invisível aos poderes públicos municipal, estadual e federal.

Gilberto Paim é ceramista e pesquisador em design e arte aplicada; autor de, entre outros, A beleza sob suspeita; o ornamento em Ruskin, Loos, Lloyd-Wright, Le Corbusier e outros, Jorge Zahar Editor,  Rio de Janeiro.

 


Comentários

Gloria
17/05/2009

É triste demais ver em que estado de abandono se encontra esse local tão lindo .Estive hospedada várias vezes nesse hotel onde D.Irene nos recebia com carinho e com uma comida sem palavras de tão boa e caprichada.Infelizmente, o governo, a cidade, a mudança,vai saber, a falta de interesse em reativar esse local tão privilegiado e maravilhosamente energético não estimula ninguém a transformá-lo num centro cultural ,museu o lá o que fosse. Nosso país não tem memória, lamentável.

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