Num país como o nosso, no qual a maioria da população tem acesso muito limitado ao consumo, a estratégia de distinção social ainda prevalece no consumo das classes médias e altas. Mas o panorama do consumo nos países ricos traçado por Gilles Lipovetsky é bastante diverso: cada vez mais segmentado, livre das atribuições honoríficas e dos condicionamentos de classe; alimentado quase exclusivamente pela busca individual do prazer. Não se trata mais de sociedade de consumo, mas de hiperconsumo, na qual a lógica econômica se submete à moda e à imprevisibilidade dos desejos. Os valores ascéticos e funcionais que moldaram o design moderno recuaram para o segundo plano, em favor da diversificação das experiências sensoriais e afetivas que fazem a felicidade do turboconsumidor.
Lipovetsky identifica três ciclos na era do consumo de massa. O primeiro, entre os anos 1880 e a Segunda Guerra Mundial, foi caracterizado pela produção em série de mercadorias padronizadas que, embaladas com o nome da marca, foram distribuídas em grande escala e a preço baixo. A automatização e a organização “científica” da produção segundo o modelo fordista reduziram significativamente os custos de produção, tornando os produtos industriais acessíveis a um número crescente de pessoas. O consumo conspícuo, no sentido atribuído por Veblen ( ver Padrões Financeiros do Gosto, seção Repertório, Agitprop/quinta edição), se generalizou como prática de distinção social.
No segundo ciclo, entre o pós-guerra e os anos 1970 a sociedade de consumo se realizou nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Com o poder de compra ampliado, as massas tiveram acesso a uma grande variedade de bens, assim como férias e experiências de lazer. O crescimento das vendas foi garantido pela “obsolescência programada” de produtos de qualidade incipiente e pelo lançamento contínuo de novos modelos. Nessa fase, a quantidade prevaleceu sobre a qualidade. As antigas resistências sociais e religiosas à frivolidade do consumo cederam progressivamente à sedução da publicidade e ao hedonismo da mercadoria. O dispêndio passou a prevalecer sobre a poupança.
O atual terceiro ciclo, denominado hiperconsumo, teve início nos anos 1980. Graças à informática e às novas tecnologias de produção, a indústria se adaptou às novas estratégias de segmentação dos mercados, investindo maciçamente na diversidade e na qualidade. O descarte não depende mais tanto da qualidade deficiente, mas da sedução dos produtos mais performáticos e atraentes. Indústria, publicidade e comércio correm contra o tempo para lançar novidades. Exemplo? A Zara renova mundialmente os estoques de suas lojas todos os meses. Em todos os setores a cronoconcorrência é brutal. Dos milhares de produtos lançados anualmente, uma pequena parcela, em torno de 10%, obtém sucesso.
A diferenciação vertiginosa dos produtos está em sintonia com os desejos mutantes e voláteis do novo consumidor. O prazer lúdico e subjetivo do consumo se tornou mais importante do que os seus aspectos honoríficos. Não se trata mais de comprar para se exibir, mas para viver experiências estéticas ou afetivas cada vez mais individualizadas: “O momento “pesado”, enfático e competitivo da mercadoria recuou um grau em favor de uma mitologia euforia e lúdica, frívola e juvenil.” (p. 41).
A possibilidade de experimentar novidades incessantes, sejam iogurtes, luminárias, carros, filmes, restaurantes, cafeterias, hotéis, academias de ginástica, tratamentos cosméticos ou medicinais, mantém viva a excitação do hiperconsumidor. Os mecanismos cada vez mais acelerados e complexos de projetar, produzir, distribuir, promover e comercializar baseiam-se no prazer proporcionado pela novidade, contra o tédio e a monotonia. Ao enfatizar os aspectos alienantes do consumo, as críticas de Marcuse, Packard, Debord, Baudrillard, Georges Perec e Naomi Klein teriam sido incapazes, segundo Lipovetsky, de admitir a positividade da experiência hedonística: “É preciso interpretar o apetite consumista como uma maneira, decerto banal, porém mais ou menos bem sucedida, de conjurar a fossilização do cotidiano, de escapar à perpetuação do mesmo pelas busca de pequenas novidades vividas. Através do ato de consumo, é a rejeição de uma certa rotina e da coisificação do eu que se exprime” (p.69). Ele nos remete sumariamente à afirmação de Freud: “a novidade constitui sempre a condição do gozo” (cit. p. 67). Que a complexidade da sociedade de hiperconsumo se sustente no desejo de contrariar o tédio por intermédio das novidades é, no entanto, uma hipótese frágil.
À idéia do consumidor manipulado pelo marketing e pela publicidade, ele opõe a sua versão do consumidor bem informado, infiel às marcas, nômade, imprevisível, disposto a gastar muito pelo produto de luxo, e a economizar em tantos outros, ávido por expressar o próprio gosto e individualidade à revelia do pertencimento a uma classe social. As possibilidades de satisfação são infinitas quando o próprio ato da compra está envolto em atmosfera de prazer: lojas bem iluminadas, música ambiente, oferta diversificada etc. É no mundo do trabalho que o sociólogo encontra motivos para a angústia e descontentamento: taxas de desemprego elevadas, precariedade dos contratos; stress etc. Mas ele não relaciona, como Richard Sennett, a turboconcorrência nos bastidores da produção e do comércio ao mal-estar profissional.
No consumo regulado pelo princípio do prazer, os critérios racionais recuam. Que as novidades entraram em concorrência com o novo pretensamente definitivo dos modernistas não é exatamente uma surpresa – o fenômeno foi registrado em 1929 pelo designer belga Henry van de Velde (O Novo, seção Repertório, Agitprop/quarta edição ). Funcionalidade e ascetismo cederam ao amigável e lúdico. As qualidades sonoras, olfativas e táteis dos objetos romperam a primazia da visualidade. Não é o rigor da forma, mas a riqueza sensorial que atrai o neoconsumidor: “Quanto mais se alastra a cultura digital com seu alheamento do real, mais se intensifica a necessidade da densidade sensorial das coisas, o “soft touch”, o gosto pela sensualidade dos materiais” (p. 232).
No primeiro ciclo do consumo, o modelo doméstico foi o lar “burgues”, com a sua acumulação opulenta de signos de status. No segundo, idealizou-se a máquina de morar, baseada em princípios funcionais. Hoje, afirma Lipovetsky, busca-se o bem estar holístico, sensitivo e estético. Intimidade, conforto e segurança são os valores cultivados pela maioria. Espaços não compartimentados, arrumação personalizada, não esquemática, luz suave. As “regras do bom gosto” foram descartadas em favor dos estilos personalizados de decoração, distantes do “total look” padronizado. Contrariando as inibições modernistas, uma revalorização do decorativo está em curso.
O elogio tecido por Lipovetsky ao hedonismo esclarece sobre numerosas transformações do mundo contemporâneo, embora se assemelhe algumas vezes ao discurso da publicidade, que evoca sem constrangimento experiências sensoriais e existenciais que transcendem em muito o objeto ou a experiência de consumo. Além disso, a sua franca aceitação das satisfações proporcionadas pelo hiperconsumo esbarra na urgência planetária de conter o desperdício e encontrar soluções para o desenvolvimento sustentável. Se a racionalidade modernista ignorou a complexidade da vida humana e social, isso não significa que os valores críticos se tornaram supérfluos.
LIPOVESTSKY, Gilles. A felicidade paradoxal, ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 402 pp.
Gilberto Paim é ceramista e pesquisador em design e arte aplicada. Autor de A beleza sob suspeita, o ornamento em Ruskin, Loos, Lloyd Wright, Le Corbusier e outros, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000; e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Editora Viana Mosley, Rio de Janeiro, 2006.
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