Aqui vai uma reclamação atrasada. Só recentemente li A Fera na Selva, de Henry James, edição comemorativa da Cosac Naify, de 2007. A novela é belíssima. Já o projeto gráfico...
Todo jovem designer já ouviu alguém dizer que um livro é um projeto inteiro, capa, lombada, miolo. E que é trabalho complexo e único, pois nele reside a possibilidade de apreensão do texto.
Essa explicação vale para muitos projetos que estão no centro de ações fundamentais. Um livro de estudos com gráficos, tabelas, textos de vários autores, em diversas línguas, por exemplo, é um deles. A sinalização mal feita num aeroporto, um pictograma incompreensível em país de língua estranha, uma cadeira de auditório da qual você quer sair cinco minutos depois que sentou são projetos a serem estudados um a um, por mais que dependam de elementos industrializados.
Mas, convenhamos, a padronização relativa da maioria dos impressos, satisfaz nosso olhar, nossa leitura. O historiador Michel Pastoureau diz em seu livro Noir, que a cor negra se espalhou no mundo com vigor graças à imprensa. Ver o mundo em preto e branco tornou-se um hábito, uma forma estandartizada de reconhecer informações. E, convenhamos novamente, qual o mal disso?
Se o que estou lendo não é um tratado contemporâneo de anatomia, repleto de informações visuais, e sim, um livro de literatura, a maior ou menor dificuldade da leitura está no texto e somente nele. Ou nas minhas habilidades para lê-lo. Inda mais quando o livro é fininho e contém uma novela.
Henry James tem sido muito mal traduzido (ver, por exemplo, a versão de A Taça de Ouro, da editora Best, vergonhosa) e dá gosto experimentar a prosa de José Geraldo Couto, tradutor encarregado da novela na Cosac Naify.
A editora brinda os leitores com texto crítico de Modesto Carone. O papel da capa parece seda e é um prazer tê-lo nas mãos, prazer que raramente sentimos, especialmente com as capas meio envernizadas, plastificadas da maioria dos livros. O papel da cobertura desta edição homenageia a delicadeza da peça literária.
Infelizmente nos demais aspectos, o sofisticado projeto gráfico do livro acaba atrapalhando a leitura, mais do que favorecendo. A novela fala de um amor possível, mas tornado impossível graças à dificuldade de seu protagonista de enxergar além de si, de seus temores... Se no início do livro, esse encontro amoroso surge como possibilidade – mas já carrega seus entraves – ao longo da novela vai-se desenhando sua condenação à inexistência.
O projeto gráfico optou por reiterar essa impossibilidade crescente, fazendo cada partição do texto ser impressa em papel couché, num degradé do cinza claro para o escuro. O último capítulo tem papel cinza chumbo e as letras, para serem enxergadas, passam do preto para o branco.
O papel couché com seu aspecto - visual e tátil - liso ao extremo, ligeiramente brilhante, não nos convida a sublinhar a lápis, comentar nas margens. Ele afasta, como superfície a óleo, é chique, é impessoal e corporativo. Tem essa aspiração a parecer sempre novo, recém-impresso, diferentemente de outros papeis que não escondem sua porosidade e a ação do tempo sobre eles. E o tempo, na novela de James, é essencial.
Já a gradação do claro para o escuro, além de apenas reiterativa, retira da novela sua sutileza, as elipses das falas, os não ditos, o que parece mas não é. A progressão cromática das páginas esvazia a tensão do texto, se a ela atentarmos – e o que parece fazer é nos incomodar com as folhas mais escuras... Pois na trama, mesmo a protagonista tem esperanças na realização do amor e faz gestos para tentar vencer aquela barreira soturna, antes de desistir de vez. A interpretação do projeto gráfico nos dá a história antes de a história se processar por si própria, pela ordenação das frases, dos parágrafos, dos capítulos.
Não fossem apenas os papeis couché de diferentes cores, a editora insiste em nos presentear, e a capa se abre em tamanho de pôster, com a foto de um homem e uma mulher, um de frente para o outro. Eles se tocam com os braços, mas a lombada fica exatamente onde seria o encontro de seus rostos. De novo, a afirmação da impossibilidade de realização desse amor. Mais uma vez, a imagem apenas ilustra, enfraquecendo a situação dramática do texto, aquele ‘quase’ encontro.
Há algo óbvio nesse aspecto ilustrativo, ornamental, em que a imagem apenas vem confirmar – e o faz destituída da tensão geral do texto – o que as palavras dizem. A estranheza é que a impossibilidade se dá na lombada, aquele lugar do livro em que as folhas se juntam, são coladas, em que o livro vira livro e deixa de ser folhas ao vento. A lombada é o que torna um texto um livro. É também o índice pelo qual leitores localizam volumes em bibliotecas. E aí que reside a impossibilidade? Justamente naquilo que liga? A reiteração (relativa à impossibilidade do amor na trama) se faz pelo paradoxo?
Norberto Chaves e tantos teóricos do design costumam dizer que o projeto é bom quando parece não existir. Pois, no caso, quando chegamos ao fim do texto de James, dá um alívio encontrar em edição corriqueira o belo posfácio de Modesto Carone. Fiz com esse livro algo novo, logo que acabei a leitura da novela, engoli o texto crítico. Só depois percebi que a avidez correspondia a um alívio visual da página branca e letra preta e não à minha curiosidade pela interpretação crítica da novela.
A Cosac Naify, que tanta contribuição vem dando ao design, não só pela publicação de livros na área, mas também pela edição de seus impressos, parece ter caido no erro corriqueiro da facilidade interpretativa e da abundância dos recursos.