Ano: III Número: 32
ISSN: 1983-005X
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Bom senso global ou estratégia Gillette

Marcello Montore

Os mais velhos devem se lembrar daquelas lâminas fininhas de “Gillette” que apresentavam um desenho curioso e bonito no centro (fig. 1). Lembrei-me delas porque há anos li um texto que dizia que aquele desenho resultava de esforço para compatibilizar a lâmina com diversos aparelhos de barbear. Para ser honesto, já não me recordava bem da história. No entanto, ela nunca saiu da minha cabeça e recentemente procurei aquele texto ao relacionar seu conteúdo com o enorme transtorno causado pelo fato de, ao reformar minha casa, ter de trocar todas as tomadas pelo novo modelo proposto pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (Abnt).

Por que não adotar um formato que apresente o máximo de compatibilidade com os padrões mais comumente utilizados no país, o que, de certa forma, já ocorria (fig. 2)? Quão efetivamente perigoso é, hoje em dia, o uso das tomadas em relação a choques elétricos – existem estatísticas? Não é muito mais perigoso um fio desencapado? Que interesses estão por trás de uma mudança maciça desse dispositivo?

Primeira reação: inconformismo. Como vou ligar todos os meus atuais aparelhos nessas tomadas novas? Encho de adaptadores? Isso não seria mais perigoso do que ligá-los nas tomadas antigas que, aliás, nunca causaram problemas? Bom, fiz uma rápida pesquisa para me informar sobre essa mudança e algumas coisas interessantes vieram à tona.

A forma de divulgação do novo dispositivo (fig. 3) e os motivos expostos me pareceram fracos e insuficientes para justificar os transtornos. O alegado perigo de choques e mortes nunca foi demonstrado. Estatísticas servem para isso, e esclarecer a verdadeira dimensão do problema poderia ser um argumento muito forte em prol da mudança. Além disso, todo o processo pareceu mais uma jogada política da indústria para forçar uma mudança de padrão e consequentemente elevar suas vendas.

Outra alegação para a mudança é que o novo padrão evitaria ou reduziria fugas de energia e promoveria grande economia para o usuário e para o país – novamente como explicar para a população ou comprovar a afirmação? Ainda o fato de a Abnt vender suas normas e não divulgá-las sem custo é outro fator que depõe contra a instituição. Mas...

Ao pesquisar mais a fundo, li opiniões favoráveis e contrárias à mudança quase na mesma intensidade. O problema certamente carrega um teor de tecnicidade enorme, o que torna a discussão inacessível a leigos como eu. Mas alguns achados me surpreenderam positivamente.

Desde pelo menos a segunda década do século XX vem-se tentando estabelecer um padrão global para as tomadas e conectores – sem sucesso até o momento. Existem vários padrões no mundo. Muitos países dispõem de modelos próprios  (pino chato, pino redondo, dois pinos, três..) e tomadas (veja neste site ou na Wikipedia). Mas já não tínhamos um tipo de tomada que parecia compatível com os principais modelos de conectores?

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, em 1986, foi proposta uma padronização internacional pela International Electrotechnical Commission (IEC-60906-1) - veja aqui. Vinte e quatro anos depois, nenhum país chegou a adotá-la. Com essa mudança proposta pela ABNT, que entrou em vigor em 2009, o Brasil acabou sendo o primeiro país a implementar um padrão baseado nesse protocolo. Antes tarde do que “mais tarde”. Apesar da demora e de ter sido o único país a adotar o protocolo, isso aponta para um respeito à Comissão Internacional, demonstra vontade política de realizar a transição e avaliza o país para insistir nessa padronização por outros países.

A longo prazo, portanto, parece que teremos motivos para comemorar a mudança, apesar da forma como foi conduzida, isto é, em curto espaço de tempo e sem divulgação mais consistente.

E qual o estado daarte do design desses dispositivos? Qual sua funcionalidade e segurança? Em princípio, as tomadas padrão vão “esburacar” nossas paredes pelo recuo da conexão. Será isso aceitável? Nesse ponto entram os designers. Para minha surpresa, constatei que já foi criada uma primeira solução para o problema: uma conexão retrátil. Sem o plugue, ela se alinha ao espelho da tomada e, quando se conecta ao aparelho, recua para a posição correta.

Nessa busca acabei deparando com uma engenhosa solução de design para os plugues do Reino Unido, que privilegiam a segurança, mas ao custo de tamanho exagerado. A solução para esse exagero consegue reduzir o plugue de 4,5cm de altura para menos de 1cm (solução que pode ser vista neste vídeo).

E a história da Gillette, afinal como era mesmo? Bom... para quem está curioso, aí vai: no início do século XX, o processo de fazer a barba sofreu uma revolução com a invenção de um novo aparelho por King Camp Gillette. Os novos barbeadores que viriam substituir as navalhas apresentavam as seguintes partes: cabo, guarda e tampa. Entre a guarda e a tampa era inserida uma fina lâmina, com fio em apenas um dos lados. As primeiras lâminas Gillette (fig. 4) apresentavam três furos. A tampa, por seu lado, apresentava três pinos que encaixavam na lâmina e a mantinham no lugar. Tudo ia bem, uma vez que a Gillette, fundada em 1901, detinha a patente (fig. 5) desse tipo de barbeador. Até que em 1921 a patente expirou e outros concorrentes entraram no negócio.

Ainda na década de 1910, Henry Gaisman – outro empresário norte-americano – inventou uma lâmina com fio nos dois lados, mais flexível e difícil de quebrar que a da Gillette e que, obviamente, servia nos suportes daquela empresa, roubando uma parte de seu mercado. Gaisman chegou a propor uma parceria ou até mesmo a venda dessa patente para a Gillette, que a recusou.

Em 1928, Gaisman fundou a Probak e começou a fabricar barbeadores e lâminas similares às da Gillette. Suas lâminas (fig. 6) eram compatíveis com os barbeadores da concorrente. Porém, engenhosamente, seus aparelhos não permitiam o uso das lâminas Gillette. E tudo isso por causa da furação e do desenho do encaixe da lâmina no aparelho. O desenho aqui, é de fato, fator concorrencial, não na dita preferência do consumidor, mas no seu quase automatismo de sentido prático.

Gaisman e Gillette se degladiaram nos tribunais e com o processo pendendo para o primeiro, este conseguiu o que queria: um muito vantajoso acordo (para si, é claro) com a Gillette que acabou comprando a Probak e adotando o padrão das lâminas.

Em um mundo onde a velocidade com que as mercadorias circulam é enorme, a questão da compatibilidade se torna ainda mais premente. Teríamos nós saído na frente no que tange às novas tomadas?

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Marcello Montore, editor da AgitProp, é designer, professor da Espm e sócio da Vista Design e Comunicação.

 


Comentários

Marie
20/08/2010

Marcello bom dia! Tudo uma questão de intere$$e! sobre as tomadas não sei de fato, mais as lâmpadas ditas "econômicas" - (aquelas espiraladas) foi com certeza uma jogada política da GE. Primeiro eles demonizam as atuais, chamando os usuários de agentes anti-verde anti-planeta bla bla bla... O único jeito de entender a "tomada do poder" pelas empresas é ler/ouvir Olavo de Carvalho! Nova Ordem Mundial já está aí... ou vc ainda acredita em All Gore?

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