Ano: III Número: 34
ISSN: 1983-005X
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Muletas

Ethel Leon

Usei muletas durante quatro semanas, depois de quebrar meu pé direito, singela fratura da fíbula. A partir dos limites em meu cotidiano, passei a entender a atitude de vários escritores que, desde os românticos, buscam na experiência vivida uma espécie de amálgama com as palavras.

Clarice Lispector, o mito diz e se espalha, fazia questão de viver situações temporárias como cegueira ou barata na língua. Li há muitos anos um livro de literatura romântica inglesa, cuja trama era muito próxima a Jane Eyre ( não consigo lembrar seu título ou autor), em que a heroína se fecha durante dias numa sala escura, com venda nos olhos, para entender as necessidades e desejos de seu amado, que recém perdera a visão.

Já no cotidiano mercantil, é compreensível por que os antropólogos /designers que pesquisam para grandes empresas são instados a se comportar como seus usuários-alvo, antes de projetar qualquer coisa.

Sempre vi pessoas andando de muletas e só agora percebi a severidade dos problemas a que são submetidas.

A muleta é suporte para distribuir o peso do corpo que só conta com uma perna para se locomover. Exige enorme esforço físico e de coordenação. Incomoda as axilas, no caso do modelo mais adotado. Tudo previsível, mas o pior, na minha experiência, foi ficar desprovida de minhas mãos. Sim, as mãos que seguram a muleta – seja na versão axilar ou canadense – são impedidas de exercer aquilo que, explique-se pela ontologia ou pela funcionalidade, seria sua ‘razão de ser’, ou seja qualquer manualidade. De carregar um copo d’água para o quarto, de segurar uma tesoura, de retirar alimentos da geladeira, de transportar o que quer que seja...

A muleta garante uma difícil mobilidade, mas, em troca dela, seu portador abre mão da grande singularidade dos humanóides – a coordenação fina, o uso das mãos, dos dedos. Ou você fica parado e usa as mãos ou anda e esquece delas. Somos remetidos ao tempo em que engatinhávamos, quando as mãos auxiliavam nossa mobilidade.

Andar de muletas exige esforço muito grande e consome grande gasto energético (e não vá alguém pensar em campanha emagrecedora e anticonsumista do tipo ande de muletas, sem poder carregar sacolas, ou seja, perca peso e deixe de fazer compras!)

Além disso, as muletas que vi e as que usei, feitas de madeira ou alumínio, tem suas traves e manoplas revestidas de poliopropileno. Em dois dias, eu já tinha as mãos vermelhas, irritadas e o calcanhar da mão direita inflamado. A solução caseira foi enrolar as manoplas em dois lenços de seda, e a alergia cessou.

Mas portar algum objeto continuou um problema. As roupas se adaptaram: calças, saias, vestidos e camisas com bolsos, muitos bolsos; bolsas só mochilas ou a tiracolo, até aí nada demais. Mas, como levar um cafezinho na mão, tirar um livro da estante e portá-lo até o sofá, de que jeito afastar o cabelo do rosto quando o vento bate durante aquela penosa caminhada.?...Só parando, apoiando as muletas, ou ao menos uma delas...

Entendi subitamente porque tantas pessoas que se servem de muletas – o Brasil tem enorme déficit de pernas mecânicas – portam tantos panos ao redor de si. Os panos são cabides, próteses que substituem as mãos em alguns casos. Um lenço envolvendo o pescoço vira uma espécie de tipoia para carregar objetos. Um foulard amarrado ao braço pode servir de base para transporte de pequenas cargas...

Não sou designer, mas aprendi com muitos dessa área que é errado fazer o raciocínio da emenda, acréscimo de partes num produto já dado. Quem faz isso, ensinaram-me, é engenheiro, que justapõe, acopla, soma, sem repensar o todo. Mas, como usuária limitada que sou, danei a acoplar, somar, justapor, pensar em ganchos, em pequenas hastes de alumínio, que anexadas às muletas serviriam de prateleiras, o que já resolveria o problema de, por exemplo, levar roupas para o banheiro...

Muitas vezes os designers pensam nas próteses (e aqui o sentido de prótese é de qualquer artefato que ‘prolongue’ nosso corpo, de um copo às palavras) como elementos isolados, independentemente de seu uso, ou melhor, querendo atribuir à prótese um poder que seria melhor cumprido por uma prática social.

No caso da muleta, tendo a me explicar. Um impedimento físico temporário ou permanente pode ser amainado por uma rede afetiva e ou profissional montada em torno de quem sofre o problema. Claro. (E estou longe de reclamar, tive todo suporte familiar, médico, fisioterápico de que precisei.)

No entanto, o que uma prótese deve fazer, nesse caso, é tentar chegar mais perto de restituir a condição pré-acidente. E, decididamente, as muletas não cumprem essa finalidade.

Uma fisioterapeuta muito tarimbada diz que, em alguns casos, sugere a cadeira de rodas no lugar das muletas, tais os desconfortos que as últimas acarretam. Os esforços sobre os braços e mãos, a postura reclinada que se deve ter para impulsionar o andar, tudo isso leva, muitas vezes, a dores musculares na região lombar ou mesmo cervical.

Outro dos problemas decorrentes do uso de muletas é que, ao poupar o pé machucado, sobrecarrega-se o outro que, muitas vezes, sofre um processo inflamatório, cuja cura depende de...repouso. Ou seja, andar com as muletas, além de tudo, induz, em alguns casos, a problemas no pé são, que poderiam ser evitados, caso o acidentado portasse sapatos com boa base e até mesmo uma calcanheira de silicone.

O apoio para quem depende de um pé só não se resume a uma muleta, mas a uma série de cuidados e pequenas atenções para todo o corpo. Cheguei a ver muletas de titânio, caríssimas e, portanto, inacessíveis à maioria, mas elas também não resolviam o problema das mãos.

É triste saber que as atividades projetuais tenham feito tão pouco por esse estado, permanente ou temporário, de tanta gente.

PS Num site francês há o anúncio de muletas com uma capa porta-trecos (foto 3), não consegui descobrir quem fabrica...

 


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