Sua reivindicação de um papel renovado do design em perspectiva democrática é desafiante. Em muitos aspectos poderia ser relacionada com a ideia de uma cidade social. Mencionando os excessos da privatização e o ataque a processos democráticos (sintomas ou até princípios da cidade neoliberal) o senhor advoga por uma redescoberta do conceito de democracia. O Sr. veria esta demanda ou a redescoberta da cidade como espaço democrático enquanto preocupação comum, além de sua perspectiva econômica e exploradora?
Minhas reflexões sobre democracia e design foram formuladas no contexto da Periferia. Certo, o peso pesado da política econômica neoliberal cai recentemente também sobre alguns países do Centro – ou dos Centros –, mas nem de longe se compara com tão desastrosas consequências como sobre aqueles países cujas estruturas democráticas são muito vulneráveis e que são desestabilizados quando se atrevem a resistir a interesses hegemônicos.
Nas últimas décadas, o conceito de democracia foi submetido a um processo de erosão que se manifesta de maneira exemplar na privatização de assuntos públicos, durante a qual recursos sociais foram transferidos em grande escala à esfera de interesses particulares financeiros e foram absorvidos por eles. No que se refere a interesses públicos da cidade, pode-se observar bem este processo de transferência de recursos e por isso é possível mobilizar um potencial de resistência.
Em compensação, quando em uma província da Cordilheira dos Andes, milhares de toneladas de cianureto altamente tóxico são misturadas anualmente com água de manancial para a exploração de ouro a céu aberto – que por boas razões foi proibida na União Europeia – , somente a população local diretamente afetada se defende contra a destruição de sua subsistência. Eu concordo que o espaço público, encolhido durante o processo de privatização, requer uma redemocratização.
O Senhor interpreta a democracia não simplesmente como o direito de escolher os representantes da dominação, mas como redução da dominação em si. Neste contexto, o senhor rejeita a ideia que isto deveria ser uma demanda normativa para o design. Por quê? Seria realmente suficiente «fomentar uma consciência crítica» – como o Senhor formula – no contexto de um regime obviamente poderoso de injustiça social em tantas áreas? Em um contexto fortemente normativo uma proposta contra-normativa poderia ser provavelmente bastante útil.
Considero a criação de uma consciência crítica como passo indispensável para uma prática projetual crítica. Mas deve-se levar em consideração que a transição de uma crítica que se detém no discurso a uma prática projetual é determinada por contingências que arrebata os puristas. Certo, para mudar situações sociais injustas podem-se apresentar exigências que são tão radicais que deixam tudo na mesma.
Tenho pouca estima pelo radicalismo verbal e pela gesticulação revolucionária, assim como pela instalação conformista no juste milieu. O Senhor menciona minha desconformidade com uma exigência normativa geral de como os designers deveriam se comportar em uma sociedade infestada por contradições. Esta formulação pode ser malentendida. Quero advertir sobre um risco: quem se atribui o direito de se apresentar com exigências normativas corre o risco de cair no papel do Grão-Inquisidor – e desta figura definitivamente não necessitamos. A normatividade deve ser, antes de tudo, desenvolvida na confrontação entre conceito e realidade. Ernst Bloch usa o conceito ‘latência’, do possível, do ainda encapsulado, que deveria ser aberto e estendido e que pode servir como antecedente para a normatividade. Por isso faço uso do conceito enfático de democracia como redução de heteronomia em qualquer área: economia, política, ensino, pesquisa, meios, prática da vida cotidiana, cultura…
Acho especialmente interessante seu argumento de que a democracia deveria possibilitar às pessoas «abrir um espaço para um projeto próprio». Usando o termo espaço, o senhor toca – talvez inconscientemente – a dimensão urbana e dos espaços. Tais espaços autodeterminados poderiam ser os fundamentos para uma cidade mais social. Como capacitar as pessoas para criarem estes espaços? Por outro lado, sua definição de democracia está vinculada a um projeto. Esta perspectiva da «projetualidade» constitui o centro das disciplinas de design. Isto implica que o design tem uma responsabilidade especial e possui o potencial para fortalecer a democracia, uma cidade democrática? Ou, mais ainda, que democracia é algo que deve ser projetado?
Uso o termo espaço sem limitá-lo a seu significado em arquitetura e urbanismo. Mas estou de acordo que uma cidade social – aqui o termo ‘convivial’ cunhado por Illich é apropriado –, então uma cidade convivial se caracteriza por espaços autodeterminados onde são mediados interesses legítimos diferentes e até contrários. O Senhor pergunta o que os cidadãos deveriam fazer para criar espaços autodeterminados. A reposta é simples: mediante empenho político, longe do isolamento individual, afastar-se da crença de que se pode obter individualmente, através da instância do mercado tão euforicamente festejado, uma forma de convivência urbana, suportável e até livre de violência. Deve ser claro que isto não significa ‘gentrificação’ da cidade. Além disso: desconfiança contra uma managed democracy de acordo com critérios do business, e contra o marketing político que ocupa o lugar da política e com isso a decompõe.
Está longe de mim a tentação de superestimar o potencial democrático das disciplinas projetuais, sobretudo no contexto que foi denominado com o termo paradoxal ‘totalitarismo invertido’ (1). Mas opino que a democracia contém essencialmente um componente projetual. Infelizmente não vale a mesma coisa para o inverso. Não é verdade que cada projeto abrigue um componente democrático. Instrumentos de tortura – assim como torturas – são desumanos e antidemocráticos, pois apontam para uma incondicional submissão – o oposto do design.
Na caracterização dos traços dominantes do design, sua descrição do aspecto simbólico-semântico e do aspecto operacional-instrumental parece dar preferência aos aspectos operacionais. O Senhor menciona um martelo para pregar um prego em uma parede como algo que não pode ser captado por sua dimensão simbólica. O que quer dizer com isto? Precisaríamos de um novo equilíbrio. Pergunto se é necessário reforçar radicalmente o valor de uso do design? Eu defenderia este enfoque para o design de espaços urbanos e infraestrutura urbana.
Depende do peso atribuído à dimensão semântica dos produtos e construções. A mesma coisa vale também para o tema das emoções evocadas por produtos e edifícios. Os defensores do emocionalismo parecem ser alérgicos a tudo que se denomina com o termo da política econômica ‘valor de uso’. Certo, na área de produtos com interfaces digitais se abre um novo campo de ação para o designer; mas também interfaces devem ser submetidos ao critério do valor de uso e da funcionalidade, assim como um martelo.
Este novo tipo de produto e os modos de uso correspondentes não devem servir como pretexto para desvalorizar a dimensão material com desprezo e tratá-la como assunto secundário. No discurso de design uma das fontes de atração para emoções jaz no fato de que sobre emoções é possível farfalhar tão facilmente. Frente à devoção às emoções e ao correspondente experience design pode ser oportuno lembrar – como o Senhor faz – o indispensável substrato da infraestrutura urbana. Inflar a dimensão simbólica da arquitetura conduz a esculturas arquitetônicas que, com gesto arrogante, passam por cima das exigências de uso, por exemplo, de um museu. Neste tipo de arquitetura o capital simbólico festeja sua conquista máxima.
Com o conceito de ‘humanismo projetual’ o senhor vincula o design às necessidades de grupos sociais, sobretudo aqueles que são excluídos e discriminados dentro do regime neoliberal, com o fim de interpretar suas necessidades e de desenvolver propostas emancipadoras. Isto implica uma mudança radical com relação aos clientes do design que em geral são aqueles que podem pagar estes serviços. Como é possível detectar estas necessidades? Como os designers poderiam se conectar com grupos sociais que vivem e trabalham em sua maioria fora do milieu dos estúdios de design?
Fica em aberto se a atual fase do pós-liberalismo – não tenho certeza se este conceito já é aplicável – pode já falar de um novo cliente de trabalhos projetuais emancipadores. Seria já um passo à frente se encontrarmos clientes que encomendam designs que não gerem novas dependências. Um design controlado pelo marketing dificilmente poderá contribuir para produtos emancipadores. Também o enfoque do design de autor que põe o acento no indivíduo criador e não no grupo anônimo de usuários, dificilmente servirá para satisfazer as necessidades de grupos sociais fora do milieu dos estúdios de design. Se não me falha a memória, o conceito de ‘design participativo’ surgiu nos anos 1970 e foi praticado, sobretudo, na arquitetura e urbanismo. Tratou-se de incorporar grupos de pessoas diretamente expostas a projetos arquitetônicos e urbanísticos. Fica aberta a pergunta se com isto a atividade projetual foi socializada.
Concordo com sua rejeição a um discurso harmonizador e que o senhor insista nas contradições como algo fundamental para o design. Como tratar estas contradições quando o design de alguma maneira é sempre uma ferramenta de dominação e por isso produz estas contradições? Deveríamos torná-las explícitas em vez de resolvê-las? Deveríamos abri-las à negociação social ou deveríamos tomá-las como ponto de partida para uma reformulação, uma modificação de uma situação dada? A que se assemelharia um design orientado para o conflito?
A prática projetual está inevitavelmente exposta a contradições – por exemplo, entre carga ambiental e satisfação de necessidades. Por melhor intencionado que fosse o design sustentável, parece ter pouco alcance se se limita somente à natureza e ao consumo de recursos e se exclui a pergunta pela sustentabilidade social.
Eu não digo que o design é sempre um instrumento de dominação. Se é usado como instrumento de dominação depende de interesses político-econômicos. O design – assim como a ciência – pode ser uma ferramenta de interesses hegemônicos, mas não necessariamente é. A atividade projetual seria superestimada se supusermos que mediante a atividade de arquitetos, designers industriais e designers gráficos o potencial social conflituoso poderia ser reduzido diretamente. Mostrar contradições e explicitá-las ocorre em primeira instância no discurso crítico, isto é, mediante a linguagem. Partindo daí pode-se ver como traduzir projetualmente esta crítica discursiva. Isto acontece mediante níveis de mediação.
Um lema do street art sobre uma fachada de uma casa diz: «Luxo é vulgaridade». Se queremos projetar objetos de luxo e mansões bunkerizadas de luxo depende de uma decisão pessoal. Eu me oponho a um discurso harmonizador que se comporta como se nós vivêssemos no melhor dos mundos (divertidos). Além disso, oponho-me à subsunção do design ao marketing. Uma colega de São Paulo recentemente criticou a iniciativa de Cidades de Design (iniciada sob a tutela da UNESCO): «Trata-se de pôr em dúvida a apropriação de conceitos e fenômenos de interesse público por parte de pequenos grupos privados que se organizam para falar em nome do design, das cidades e da cultura sob o comando de uma legitimidade apoiada no poder econômico.» (2)
A contradição mais forte à qual a atividade projetual está exposta jaz na distância entre o que é tecnicamente factível, socialmente possível e ambientalmente desejável. Se olharmos, por exemplo, os festivais de design, surge a impressão que para os designers participantes aparentemente existem só duas classes de produtos: cadeiras e luminárias, complementadas com alguns acessórios de moda. Nos eventos promovidos na mídia, o critério do fun parece ocupar a posição dominante e se limitar à inovação do efêmero. Perguntas pelo sentido não parecem ser formuladas; incomodariam o âmbito de festa do mundo belo do design.
(1) Wolin, Sheldon S., Democracia S. A. – La democracia dirigida y el fantasma del totalitarismo dirigido, Katz Editores, Buenos Aires 2008.
(2) Berwanger, Ana Claudia, «O design e a cidade: considerações e perspectivas de análise», em: agitprop – revista brasileira de design, 28, 2010. http://www.agitprop.com.br/ensaios_det.php?codeps=Njl8ZkRGOA==
Iniciado em 2009, o programa Civic Cities se estabeleceu a partir do convite que o arquiteto e urbanista Miguel Robles-Duran fez ao designer Ruedi Baur para participar do desenho de uma nova cidade na Venezuela. Jesko Fezer é co-editor da revista política de arquitetura An Architektur que que também iniciou o campo para uma arquitetura de oposição.
A entrevista acima faz parte do livro Design, Cultura e Sociedade, a sair pela Editora Blucher. O artigo está publicado sob as normas do Creative Commons - Some rights reserved. NoComercial-CompartirDerivadasIgual 3.0 Alemanha