Ateliês (cada vez mais) singulares
Gilberto Paim
A Inglaterra foi pioneira não apenas na Revolução Industrial, mas também no movimento de Artes e Ofícios liderado por William Morris, que buscou conter o avanço irrestrito da industrialização sobre o fazer artesanal.
No campo da cerâmica, seu grande sucessor foi Bernard Leach, que, após longo aprendizado no Japão, promoveu vigorosamente a cerâmica artesanal a partir de seu ateliê em Saint Ives, na Cornuália. Fugindo da ameaça nazista, a austríaca Lucie Rie e o alemão Hans Coper encontraram em Londres campo propício à floração de seu talento. Na segunda metade do século XXe, a presença de cursos especializados em escolas de arte e design como Royal College, Central, Harrow e Camberwell,e o apoio de instituições como Crafts Council e Crafts Potters Association contribuíram para a riqueza ímpar da cerâmica inglesa moderna.
No livro Modern british potters and their studios, o jornalista e curador David Whiting apresenta um painel diversificado da cerâmica inglesa atual, abordando a obra de 24 criadores/realizadores de diferentes gerações, alguns menos outros mais conhecidos, dentre eles Jane Hamlyn, Gordon Baldwin, Daniel Fisher, Jennifer Lee, Sara Radstone e a brasileira Carina Ciscato, que reside em Londres há onze anos. Cada capítulo compreende um comentário bem informado e contextualizado sobre um ceramista e sua obra; retratos, imagens de ateliê e cerâmicas.
Whiting agrupou os ceramistas em três diferentes seções segundo o foco principal, porém não excludente, de seu trabalho: a arte da função; o recipiente escultórico; a figura e o objeto. As fotos de Goldmark informam com sensibilidade sobre a natureza criativa de cada ceramista e sua organização de trabalho, incluindo escolha de materiais, equipamentos, ferramentas, fontes de iluminação etc.
Dentre os livros sobre cerâmica predominam os manuais técnicos, que raramente destacam os ceramistas ou seu ambiente de trabalho. Esses manuais mostram com riqueza de detalhes as técnicas de modelagem e os tratamentos de superfície desenvolvidos por ceramistas profissionais, mas deixam em segundo plano sua autoria. Promovem assim a ilusão de um repertório plástico tão rico quanto anônimo que pode ser aleatoriamente copiado por aprendizes e amadores. Whiting contraria essa tendência ao trazer o ceramista profissional para frente da cena e valorizar sua plena condição de autor.
Os ateliês dos ceramistas são modestos se comparados, por exemplo, aos vastos lofts que associamos ao desenrolar da atividade pictórica desde o pós-guerra. Eles podem ocupar um cômodo doméstico, avançar sobre um pequeno jardim ou partilhar um galpão coletivo na periferia de uma grande cidade, garantindo assim a união persistente entre criação e realização num mundo que privilegia sua distinção.
Na arte contemporânea, a própria idéia de ateliê tem se tornado irrelevante para um número crescente de criadores, que se habituou a delegar a pequenas oficinas ou grandes fábricas a realização de suas obras. No campo industrial, as últimas décadas radicalizaram a distância entre os funcionários de colarinho branco, dentre os quais os designers, e os operários.
Países como a Inglaterra deslocaram para muito longe, principalmente no Extremo-Oriente, parcela considerável de sua produção, inclusive de cerâmica, lançando à deriva os trabalhadores de centros tradicionais como Stoke-on-Trent, berço da pioneira Wedgwood. Incluído no livro, o ceramista Neil Brownsword, descendente de uma família local que trabalhou na indústria por várias gerações, tematiza a decadência do savoir-faire especializado em assemblages que incorporam detritos de uma época de prosperidade não muito distante.
Nesse contexto de retração de oficinas artísticas e industriais, os modestos ateliês de cerâmica ganham significação inédita, pois contam entre os espaços cada vez mais raros a resistir à dissociação entre criação e realização, entre preservação de técnicas tradicionais e experimentação do novo. O projeto gráfico caprichado em formato generoso aproxima o leitor da atmosfera singular dos ateliês. Torcemos para que editores nacionais se aventurem no tema com semelhante disposição.
Modern british potters and their studios, David Whiting, A& C Black, Londres, 2009.
Gilberto Paim é ceramista e escritor. Autor de A beleza sob suspeita, Jorge Zahar Editor, e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Editora Viana & Mosley, Rio de Janeiro.
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