Ano: III Número: 36
ISSN: 1983-005X
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Adélia na cozinha

Ethel Leon

Adélia na cozinha é o primeiro título de coleção de livros dirigidos a crianças com deficiência visual, lançado pela editora WG Produto. Com projeto gráfico de Wanda Gomes, texto de Lia Zatz e ilustrações de Luise Weiss, o volume tem escrita alfabética e em braille BR.

O sistema do braille tem novo processo que não fura o papel, permitindo a edição de grandes tiragens e, em conjunto com a impressão offset, garante ao material maior durabilidade e a possibilidade de unir o braille a cores e texturas, explica o texto da assessoria de imprensa. O braille BR é patente da designer Wanda Gomes.

Assim, é possível ler a escrita alfabética (fonte Scala Sans) e a braille BR  sem que uma interfira na outra. A durabilidade é indeterminada e os pontos não cedem à pressão dos dedos como na impressão convencional. Além disso, a qualidade visual não é prejudicada, já que o novo sistema de impressão não rompe o papel e não causa baixo relevo no verso da folha.

Não bastasse esse grande avanço para a produção de livros igualmente destinados a crianças com ou sem deficiência visual, Adélia na cozinha apresenta diferentes acabamentos gráficos que fazem da leitura uma sofisticada experiência tátil.

Cada página ímpar apresenta um objeto. A cesta de frutas tem textura rugosa, o abacaxi também, as uvas são lisas e escorregadias, como se tivessem sido recém lavadas. O detalhe do bordado em tela de uma toalha é impressionante. Revirei o livro em todas as direções, tentando ver se era colado artesanalmente não era – tal o realismo da imagem fotografada e impressa. 

A banana se apresenta com a casca lisinha e seu conteúdo parece segurar o gesto da mão que a percorre. É como se as fatias de pão, saídas da torradeira elétrica, tivessem migalhas secas, prestes a saltar da superfície da página, e a vontade de tirar partes delas, arranhando-as com as unhas, faz parte da leitura do livro.

Algumas páginas exalam fragrâncias, muito sutis. Mas é a experiência tátil que predomina, sublinhada pelo uso do braille, como na imagem do relógio, na qual a escrita por relevos se aplica dentro do objeto, designando os números.

As ilustrações em aquarela, de Luise Weiss, têm algo das naturezas mortas de Matisse, não pelos aspectos decorativos, mas por uma espécie de simplificação das formas e por uma ordem planar dos elementos. São para serem mostradas, uma a uma, tocadas, percebidas nos detalhes. O conjunto não se perde, pois as cores de fundo são vigorosas e mantém a unidade de todas as figuras, deixando ver as pinceladas, as manchas da aquarela.

Páginas ímpares são ocupadas por ilustrações, enquanto as pares se destinam à área do texto. As letras são impressas em branco ou em preto, a depender da tonalidade de fundo, cores vivas chapadas. Só nas últimas páginas do livro, a ilustração ocupa a direita e a esquerda. Nela se encontram todos os elementos que os leitores conheceram nas páginas precedentes, frutas, torradas flores, suco, toalha.

É possível, aí, fazer um reconhecimento das partes – as representações anteriores – e o todo,  a conclusão da história de Lia Zatz: um café da manhã inteiramente preparado pela protagonista, Adélia nome escolhido em homenagem a Adélia Sigaud, cega, filha de Xavier Sigaud, médico francês que esteve a serviço da corte de D.Pedro II, e que foi a primeira mulher brasileira a dominar o sistema braille.

Ao longo da história, a menina – cuja imagem nunca nos é mostrada, nem parcialmente –   abandona sua postura passiva das primeiras páginas, quando tenta acordar a mãe para pedir o café, e se transforma numa descobridora das coisas e, sobretudo, de sua própria capacidade de organizar a refeição, não apenas para si própria, mas para outros.

O fato de o livro não apresentá-la com qualquer imagem faz a ênfase recair sobre suas atividades e os objetos implicados nelas. Somos levados a entender uma organização, um projeto, sim, pois preparar um café da manhã é realizar um projeto.

Esse é um livro que nos faz ver como somos deficientes. Deficientes no uso de nossos sentidos, cada vez mais dominados pela visão, analfabetos na percepção sensível do mundo. O livro pede para ser tocado, acariciado, arranhado, sentido.

Desafia, portanto, a vida contemporânea em sua mesquinha experiência do tempo escasso e aflito. Pois, apesar de suas frases curtas, de texto conciso, de sua leveza como objeto, esse é um volume que espicaça nossa curiosidade, impossível de ser apreendido em poucos minutos. Fácil de imaginar sendo contado à exaustão para crianças, que se embebedam naquilo que se repete.

 


Comentários

Wanda Gomes
31/01/2011

Aos leitores que perguntam sobre como adquirir o livro, informo que esta primeira edição de Adélia Cozinheira pôde ser realizada graças ao apoio do Ministério da Cultura, através da lei Rouanet, e patrocínio da IBM Brasil, com o compromisso de doação total dos exemplares às bibliotecas, escolas públicas e instituições. Aos interessados e profissionais da área solicito entrar em contato pelo email: wandagomes@wgproduto.com.br Ethel, a sua análise e seus comentários foram um prêmio para toda a nossa equipe. Obrigada! Wanda Gomes

Rosinete Rodrigues CAP/AP
11/01/2011

Como adquirir o livro abrç carinhoso

Rosilene Baietti
08/01/2011

Lindo texto Ethel, você traduziu de forma poética a excência deste projeto. Nós da gráfica Efeito Visual sentimos o maior orgulho em colaborar para tornar este sonho em realidade.

Sergio Madeira
08/01/2011

Ethel A inteligência do seu texto iluminou nossa habitual escuridão! Normalmente temos uma infinidade de estímulos à nossa volta mas a cegueira dos nossos sentidos e emoções nos faz perder o conjunto da vida vibrando ao nosso redor. Parabéns! PS: onde consigo comprar o livro? Sergio

Marta Gil
04/01/2011

Ethel, Seu comentário foi sensível e delicado! Parabéns! Tive o privilégio de acompanhar o processo de gestação desta coleção, que foi looongoo ... felizmente, a persistência da equipe envolvida foi maior. Espero que haja outras tiragens da Adélia na cozinha e que os outros livros da coleção sejam editados. No início, o projeto tinha como público preferencial crianças cegas ou com baixa visão: como desenvolver sua imaginação, fantasia, criatividade? Crianças sem deficiência têm livros até prá ler na banheira...e as que têm deficiência visual? Na maioria das vezes, conheciam livros aos 6, 7 anos, ao aprender braile. Com o tempo, a concepção se ampliou - Adélia interessa a todas as crianças, com ou sem deficiência. E está em sintonia com avisão e a legislação atual! Que venham mais livros!

luise weiss
28/12/2010

Cara Ethel Gostei do seu artigo,uma a álise das imagens e do texto reunidos,além da contribuição gráfica da Wanda.O projeto ficou engavetado muito tempo,antes de ser impresso.A Lia escreveu tres textos,eu realizei as ilustrações...e depois pensei que ficariam engavetadas.Ethel,posso pedir um favor,se der,enviar um exemplar da revista para mim.Abraços,atenciosamente,Luise Weiss

Breno Raigorodsky
28/12/2010

Me orgulho de ser marido da Lia e nem por isso menos apto a fazer um comentário elogioso ao artigo. Parabéns pela sensibilidade, pelo preparo literário, pelo conhecimento do tecido educativo, pelo interesse profundo e verdadeiro no projeto! Parabéns, em suma, do jornalismo que se produziu com esta matéria.

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