Artesanato revisitado
Julio Roberto Katinsky
Em janeiro de 2008, a primeira edição de Agitprop publicou o texto Artesanato Moderno, de Julio Roberto Katinsky, de 1991. Oito meses depois, o autor retoma o tema em novo ensaio.
Entre a redação do texto Artesanato Moderno, para Eunice Ribeiro da Costa, em 1980, e a sua publicação em Agitprop, decorreram quase trinta anos, intervalo grande o bastante para que esse texto receba algumas considerações complementares. Modernas formas de trabalho não diretamente mensuráveis economicamente multiplicaram-se de tal forma nesse período, que agora muitas inteligências agudas têm-se dedicado a elas. Claro que persiste ainda, e é muito vigorosa, uma atitude marcada pela filantropia em relação ao artesanato moderno. Sem desmerecê-la, entretanto, preferimos outras explorações conceituais, que nos parecem mais promissoras para entendermos o atual quadro das atividades produtivas.
Retomemos então, uma observação feita no texto anterior, qual seja, de que o artesanato moderno não recusa o uso de máquinas. Hoje podemos dizer que não só não recusa, como mesmo propicia o aparecimento de máquinas cujo objetivo é exclusivamente facilitar o trabalho artesanal, como furadeiras, serras circulares, lixadeiras, dotadas de pequenos motores de ¼ a ½ cavalo. Elas constituem um não desprezível setor do mercado, e são chamadas de “máquinas domésticas” pela propaganda comercial. Mas não têm nada tipicamente de domésticas, se nós atentarmos para seu fim especifico: o que há de doméstico em laminadoras, ou trefiladoras, fieiras portáteis, sejam manuais, sejam motorizadas? Não só as empresas especializadas em fabricar laminadoras e “fieiras”, como trefiladoras, mas outras firmas fabricam instrumentos novos ou para atender a manipulação de materiais recentes (como isopor por exemplo), ou para simplificar operações complexas como cortar vidro ou ladrilhos, também como exemplo.
Observe-se que a palavra “trefilar” parece ter sido dicionarizada em nossa língua há pouco tempo, pois o dicionário Caldas Aulete (edição Delta 1958) e o Dicionário Escolar do Professor edição do Ministério da Educação e Cultura – Brasília 1963, não registram essa palavra nem suas derivadas. O dicionário Aurélio, edição de 1986, e o dicionário Houaiss de 2001 registram o ato, mas não registram a máquina “trefiladora”.
O comércio desses equipamentos deve, só no Brasil, movimentar milhões de reais e em alguns casos, eles são produzidos por empresas multinacionais, empresas freqüentemente produtoras de máquinas operatrizes, (“bens de capital”), que atendem com essas máquinas pequenas, antes de tudo, podemos supor, a um setor altamente lucrativo do mercado. Este setor ainda não é reconhecido pelos estudos acadêmicos específicos e exige planejamento e recursos vultuosos para sua pesquisa.
Segundo o press release de uma dessas empresas, a entrada dessas ferramentas elétricas, no mercado inicia-se na década de 20 do século passado. Muitas pequenas máquinas chegaram a público depois de 1980. Entretanto, como se verá mais adiante, esse fenômeno deve ter começado antes. Mesmo tomando como ponto de partida essa data, nós podemos constatar que o mercado dessas mini-máquinas ampliou-se continuamente, a ponto de as unidades se reproduzirem aos milhões e exigirem edifícios industriais de milhares de metros quadrados para sua fabricação em São Paulo. Só esse quadro, aqui esboçado, justifica uma ampla e extensa pesquisa não só econômica, mas também, antropológica e sociológica, pelo menos. Mas esse fato não ocorre só no Brasil, mesmo porque ele surgiu em países altamente industrializados. Apenas como sugestão, sugiro os Estados Unidos como o primeiro local mais sensível a esses novos eventos, pois, tudo indica, a primeira revista destinada a incentivar e amparar essa atividade “marginal” foi a norte-americana Popular Mechanics, ainda atuante nos anos 50 do século XX. Houve na década de 60 a iniciativa de reproduzi-la no Brasil com o nome de Mecânica Popular, nome erradamente traduzido, pois o nome original deveria se referir à classificação de trabalho da velha tradição escolástica, tão presente na língua inglesa (ou seja Artes liberais, Artes mecânicas). Associada a essa mentalidade e postura, penso que nós devemos relacionar as lojas de equipamentos (norte-americanas) sob o titulo do it yourself. Estas lojas foram reproduzidas também no Brasil e em São Paulo, sob o nome de Pegue e faça.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, essas atividades exercidas inicialmente sem objetivos mercantis tomaram o nome de Hobby, estendendo-se muito além de ocupações para produzir objetos ou painéis decorativos, como, por exemplo, qualquer atividade executada por exclusivo prazer, como o registrado em dicionários: hobby an activity which one enjoys doing in one’s free time: One of her hobbies is collecting stamps-see recreation” (Longmans – 1987) em tradução: “uma atividade à qual se aplica por puro prazer em tempo livre: um de seus “hobbies” é colecionar selos – ver recreação.
Ou ainda, mais sintomático, o verbete da palavra no Webster (1969).
Hobby – an interest apart from one’s regular work, as painting or gardening, enjoyed as relaxation : “um interesse distinto de trabalho regular exercido por alguém, como pintura ou jardinagem, com a finalidade de espairecer.” Essas transcrições revelam sempre uma nota de exercício agradável por quem o pratica, para aliviar as tensões do trabalho cotidiano. Assim entendido, o trabalho chamado de hobby, tem poderosas implicações ao nível do conhecimento coletivo e mesmo cientifico: toda a pesquisa da arqueologia industrial, parece ter sido desenvolvida como hobby na Inglaterra nos primeiros anos do século XX, e seus aficionados se reuniram em sociedades recreativas, só lentamente penetrando nas universidades.
A arqueologia industrial, como o nome indica, iniciou-se pelo empenho de pessoas na Inglaterra, no início do século XX, em preservar documentos da chamada revolução industrial dos três séculos precedentes, tais como instalações prediais fabris, máquinas já em desuso, instrumentos ameaçados de desaparecimento. O número desses interessados cresceu tanto e tão rapidamente, que se organizaram sociedades e grupos civis, que, por hobby em grande parte, se dispuseram a salvar do esquecimento esses testemunhos das grandes transformações por que passou o conjunto das ilhas britânicas. Da revolução industrial, passou-se para os seus antecedentes produtivos, chegando rapidamente aos extensos remanescentes da exploração de cobre solicitados pelas necessidades de expansão das civilizações marginais do Mediterrâneo, culminando com a produção de lingotes de bronze nas próprias ilhas, e suas rotas. Esses fenômenos através de associações de amadores foram tão intensos, podendo-se traçar os caminhos e as jazidas que cobriram todo o mapa da Inglaterra pelo menos. Só esse trabalho notável explica o interesse de sediar legiões romanas nessas inóspitas e longínquas regiões, sobrando para nossa língua neolatina pelo menos, depois de tantos milênios, as palavras, mina, minério, mineralogia, pica, picareta, pique, pic da origem celta dos povos que habitavam essas regiões ricas em metais. Só depois desse notável trabalho (gracioso), que a arqueologia industrial penetrou nos centros de pesquisa organizados, revelando uma historia até então enterrada.
Esse aspecto lúdico da ampliação do conhecimento foi registrado, parece, por Leonardo, quando observou: Ogni nostra cognizione principia da sentimenti. (Ler Leonardo – Hucitec ed.bilíngüe – 1997), que pode ser traduzido: Todo nosso conhecimento principia dos sentimentos; o que nos sugere uma possível organização do aprendizado e do ensino.
Mas se a revista Mecânica Popular não vingou, outras revistas têm demonstrado uma notável permanência como, por exemplo, as revistas de “modelismo” (aéreo naval, ferroviário ou simplesmente automotivo). Em São Paulo, a mais antiga, Esporte Modelismo conta já vinte anos. A revista Hobby News em 2007, completava nove anos de existência.
Também a loja Aerobras que se iniciou em 1943 e ainda oferece seus serviços na Rua Major Sertório, centro de São Paulo, não é mais a única: há mais duas lojas na cidade, uma no Tatuapé e outra nos Jardins. A revista Hobby News, veicula anúncio de uma loja em Belém do Pará. Também nas revistas consideradas, outras lojas anunciam remessa e aquisição de “kits” via internet.O aeromodelismo multiplicou-se de tal maneira que se organizam competições nacionais e internacionais de projetistas e seus protótipos comandados geralmente por sistemas sofisticados de rádio monitoramento, não custando hoje (os kits de rádio) mais do que dois salários mínimos. Em meu tempo de criança, um motor a gasolina para aeromodelo deveria custar cerca de dez salários mínimos. A casa Aerobras exibe, além de motores elétricos (a bateria), motores a gasolina ao custo de meio salário mínimo, o mais barato fabricado em Taiwan. O que nos faz pensar em indústrias que atendem o mundo inteiro. Revistas sobre “design” há pelo menos três: Agitprop, Arc Design e AU (Arquitetura e Urbanismo) esta última reconhecendo implicitamente projeto seja de mercadorias (desenho industrial), seja de Arquitetura ou Urbanismo, como atividades artesanais.
Uma faixa de atividade que cresceu enormemente no Brasil nesses últimos trintas anos, foi o estilismo de moda havendo um grande número de empresas que exploram essa atividade e que organizam semanas de moda em São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais se investem milhões de reais. Outra faixa de atividade que cresceu muito foi o projeto e execução de jóias,ou seja, adereços como anéis, colares, brincos etc. que, iniciado no Brasil, modestamente com Caio Mourão, há pouco mais de cinqüenta anos, hoje congrega milhares de artesãos, reunidos em sociedades específicas, e com uma revista especifica: BReJ – Brasil relógios e jóias. (Em 2005 afirmava ter 46 anos). Também o artesanato artístico desenvolveu-se em muitas especialidades, como cerâmica (como observou Ethel Leon), e em faixa intermediária com funções utilitárias, a execução de patchwork, que segundo Rita Gonçalves, não só mobiliza muitas artesãs, como mesmo se organizam festivais competitivos regularmente nos Estados Unidos. Por outro lado, o trabalho com agulhas, característico de décadas atrás, parece ter perdido impulso. Também modelos tridimensionais de arquitetura exigiram novos equipamentos como politrizes, furadeiras de precisão ou equipamentos de pintura como mini-compressores dignos do reino de Liliput.
Mas talvez uma área não abordada no primeiro estudo, apesar de haver leve referência, é um artesanato que associa as pesquisas da ciência e da tecnologia e apropria-se das chamadas pesquisas de ponta. Refiro-me às peças de prótese humana, seja na área de ortodontia ou simplesmente prótese dentária, para a qual não há uma revista específica, e na construção de órgãos humanos, nas quais a habilidade humana em sua execução ainda é insubstituível. Há trinta anos atrás, o médico dr. Nelson Pigossi, livre docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, construía válvulas para o coração, graciosamente, pois me falou que não havia técnicos para esse setor. Hoje caminha-se para braços e pernas artificiais comandados pelo sistema nervoso do próprio paciente, que exige pesquisa não só de novos materiais, altamente resistentes, elásticos e flexíveis, mas toda uma pesquisa neurológica que está, neste momento, acontecendo. Que distância dos membros de madeira e metal de antigamente, que reproduziam o membro perdido somente para efeito estético!
O instrumento científico mais caro até hoje construído é o acelerador de partículas europeu, do qual participam até cientistas brasileiros. Esperam-se comprovações experimentais de teorias (ou hipóteses) científicas elaboradas nos últimos anos, ou suas refutações. Esse acelerador é emblemático das condições de trabalho no mundo atual, pois seria impensável e irrealizável, há cem anos atrás, e sem o aporte extraordinário da produção tecnológica moderna.
Há um fenômeno intermediário entre o artesão moderno e o produtor industrial que merece entretanto ser investigado, em relação à passagem do trabalho corporativo (pré-capitalista) e o trabalho na grande indústria mecanizada característica do capitalismo.
Podemos estabelecer uma correlação ativa entre a disseminação das práticas manufatureiras quando se universaliza a atividade manufatureira na França e Inglaterra, provavelmente nos séculos XVI e XVII, e a invenção de dois instrumentos matemáticos: as séries e os logaritmos. Como é sabido, as séries são entes matemáticos caracterizados pela soma de termos definidos pelo sinal ∑, de termos com a configuração an xn sendo essa soma representada assim:
Ideal para representar as rígidas operações de uma manufatura. Igualmente o logaritmo foi inventado estabelecendo-se uma correspondência entre a série de números naturais e série binária, ou decimal. É claro que as atividades artesanais também exigiram e exigem seqüências de operações próximas àquelas realizadas pelas manufaturas. Entretanto, as seqüências das atividades artesanais suportam alterações, sem caracterizar mesmo uma ordem feroz e inalterável como ocorria nas manufaturas. Podemos dizer que se quantificássemos todas as operações nos dois casos, as seqüências de operações artesanais seriam grandezas escalares enquanto as operações manufatureiras seriam grandezas que já tenderiam a ser vetoriais, isto é obedecendo a uma direção e sentido inalterável. A primeira manifestação de uma reação às seqüências obrigatórias da organização do trabalho no interior da manufatura, talvez seja o exercício do nonsense inglês desde o século XVIII. A invenção do nonsense foi tão absorvida pela vida inglesa, que muitas pessoas acreditavam que ela seria uma característica intrínseca da natureza do ser inglês. Mas se fosse assim porque essa essência só vai aparecer durante o século XVIII? Não deveria ter aparecido antes? Do rompimento dessa ordem, também os surrealistas exploraram, em suas obras, a expressão de um mundo absurdo e questionável, sem sentido. Dentre esses artistas, talvez René Clair, em sua filmografia desde Entr’acte até o ultimo Les Grandes Manouevres foi o que mais explorou essa ruptura. Não deixa de ser emblemático do século XX, que o grande artista tenha sido recebido na Academia Francesa de Literatura apoiado tão somente em sua filmografia.
Também não se pode pensar que a manufatura foi inventada pelo sistema capitalista: ele só a generalizou para atividades que até então eram impensáveis como possíveis de transformar em trabalho manufatureiro, de produto manufaturado. Porque já nas mais remotas sociedades urbanas surgiram manufaturas: tijolos de adobe, ou ladrilhos de barro cozido. Tambores de colunas. Tijolos de barro especiais para colunas.
Provavelmente as primeiras manufaturas provocadas pelo capitalismo nascente foram as produtoras de materiais naturais como a produção de sal, e produtoras de tecido, quando o comércio mundial (trocas entre pequenas vilas e campo circundante), dava seus primeiros passos na Europa com o fim do modo escravista e ocaso do Império Romano. O comércio, inicialmente restrito às trocas entre vila e campo logo após a constituição do reinado Godo na Itália, lentamente passou a ser inter local e depois intra europeu.
O estudo da planta da cidade de Florença nos ensina essa situação nova: o Borgo di San Lorenzo, tem sua localização fora das muralhas do Castro romano, no início do século V (c. 405d.c.) e a paróquia de Santa Civita, do outro lado do Arno, teve sua primeira consagração no século IV (A.D.300). O crescimento de Florença do outro lado do Arno obrigou a construção da primeira ponte (Ponte Vecchio) já no século XII.
Não devemos esquecer que o grande santo João Batista Bernardone é conhecido pela atividade de seu pai na pequena cidade de Assis, comerciante de panos de França daí seu apelido de Francesco. E qual edifício sobrestante do Império Romano, pode se comparar em delicadeza espacial e qualidade estrutural às edificações construídas com milhares de tijolos como as que se ergueram por efeito do encolhimento do Império Romano (E não queda) no século IV e V de nossa era, San Vitale, o mausoléu de Gala Placidia, as igrejas de Santo Apolinário in Classe ou Santo Apolinário nuovo. Todas em Ravena constituídas depois do fim do Império Romano de Ocidente.
Henri Pirenne, chamou a atenção, apoiado na história da numismática, para o fato de que a economia européia, mesmo com o fim do Império, continuou a ostentar um caráter dinerário. Ou seja, que uma regressão a uma economia natural de subsistência durante os primeiros séculos da chamada Idade Média, não passa de um mito.
O desenvolvimento econômico dos séculos posteriores ao ano mil de nossa era é que explica o extraordinário desenvolvimento de construções francesas que irão se espalhar pela Europa toda, e Itália, sede privilegiada do comércio mediterrâneo. Esse extraordinário desenvolvimento comercial é que explica a multiplicação das manufaturas para as obras de infra-estrutura por assim dizer, e de semi-manufaturas para produzir alfaias (principalmente das igrejas) e objetos superiores de culto, como cálices, casulas, patenas etc.
Semi-manufaturas porque, apesar de já estabelecer certa divisão do trabalho, dependiam inteiramente do titular por assim dizer. Um modelo dessa semi-manufaturas foi a oficina (bem documentada) do pintor Pedro Paulo Rubens (século XVII). E quando o titular desaparecia, desaparecia junto a oficina.
Essa situação se verifica mesmo nos tempos modernos: com o desaparecimento do arquiteto Le Corbusier, há quarenta e três anos, os colaboradores mais próximos, timidamente, começam a reivindicar sua parcela de contribuição criadora em obras valiosas do mestre, seja o hospital de Veneza, seja a igreja de Firminy. Mas o escritório do mestre não mais existe.O mesmo se pode dizer do escritório do engenheiro suíço Robert Maillart.
Resumindo, o artesanato moderno nasce de um desdobramento do trabalho manufatureiro, ainda que há milênios os homens venham produzindo e conformando objetos, sejam utensílios e ou instrumentos, sejam bens de pura contemplação. E pode ser organizado como trabalho exclusivamente individual (mas os materiais e os instrumentos não são produtos coletivos?) seja ainda hoje através daquilo que eu chamei semi-manufaturas. Se nós concordarmos com esta interpretação, poderemos discutir quais os caminhos adequados para o aprendizado criador. E a criação, segundo o grande arquiteto Filarete, dá tanto prazer quanto o ato de amor.
Podemos retomar também a seqüência dos modos de trabalho contemporâneo proposto inicialmente como:
modo corporativo → manufatura → maquinofatura.
Correndo paralelo, ampliando e diversificando o artesanato à medida que se desenvolvia o capitalismo, suscitado obrigatoriamente pela dissolução progressiva do modo corporativo.
De fato, desde o período escravista urbano, figuras míticas procuravam dar conta dessa nova realidade, como Dédalo, que segundo um comentário irônico de Aristóteles, era capaz de fazer banquinhos autodeslocáveis para servir de assento aos Deuses em suas assembléias. Mais terra-a-terra, os mecânicos alexandrinos descreveram autômatos. Alguns relatos como o de Cícero, senador romano, descrevem alguns instrumentos notáveis, como a esfera de vidro de Arquimedes (astrolábio), capaz de representar o movimento do sol e os outros planetas (astros errantes) da astronomia antiga. Pouco depois, Vitruvio descreveu uma roda de alcatruzes (nora em português), que eleva água pelo próprio movimento da corrente fluvial, e o moinho de grão, que pelo inteligente dispositivo de cadelo e Tremonha, automatiza o movimento da roda d’água. Ainda que se possa por em dúvida a descrição do automatismo do moinho hidráulico romano, como nós publicamos (ver Katinsky 1976 e seg.), não se pode duvidar do poema palatino de Antifilon de Bisâncio do século IV, de nossa era, no qual ele celebra o júbilo das moleiras que podem dormir até tarde, pois o moinho trabalhará sozinho. Também se perde no tempo a invenção do monjolo, trazido ao Brasil da Ásia pelos portugueses, em data incerta. E não menos importante, Vitruvio descreve um equipamento de elevação de água até hoje em funcionamento: o parafuso de Arquimedes, ou um tubo helicoidal, cuja maior diferença em relação ao tubo romano, consiste em substituir a madeira por aço e seu passo desenhado segundo as equações da mecânica dos fluidos.
O elo intermediário entre o produtor na corporação e o produtor industrial merece ser investigado, como elemento da passagem do trabalho corporativo (pré-capitalista) e o trabalho na grande indústria mecanizada característica do capitalismo. Como é sabido, principalmente depois que o filósofo e cientista Karl Marx esboçou a interpretação dessa passagem, do trabalho pré-capitalista para o atual, na seguinte seqüência:
Trabalho corporativo → manufatura → maquinofatura, a própria manufatura apresentou duas etapas. A primeira, em que o artesão tradicional entrava às vezes com suas ferramentas (instrumentos) e com seu saber fazer, especializando-se entretanto no fabrico de uma parcela do objeto. Marx dá como exemplo a manufatura de produção de carruagens: um operário se dedicava à feitura das rodas, outro à feitura de portas. Outro ainda aos arreios para dispor as parelhas de animais, e assim por diante. A segunda etapa é aquela em que o operador isoladamente já não apresenta nenhuma especialização dependente da habilidade pessoal e freqüentemente não é mais proprietário dos instrumentos de trabalho. Como demonstrou Ruy Gama em seu livro Engenho e Tecnologia, esse é o caso da manufatura do açúcar brasileiro. Ninguém individualmente produz açúcar, mas podemos dizer que a soma dos trabalhos individuais produz açúcar. A manufatura do açúcar brasileira explica sozinha, a ocupação holandesa do século XVII, em um tempo suficientemente longo para os batavos se assenhorearem da inovação revolucionária em termos de economia européia. Se houvesse uma relação de causa e efeito entre a adoção da manufatura e a invenção das séries e logaritmos, estes entes matemáticos deveriam ter surgido na Espanha e Portugal. Não foi, entretanto, o que sucedeu: eles surgiram na Inglaterra e nos paises transalpinos. Podemos, pois, reconhecer sua correlação, mas não podemos determinar univocamente nem antes nem agora, seu aparecimento. Também não se pode pensar que a manufatura foi inventada pelo sistema capitalista: ele só generalizou para atividades que até então eram impensáveis como possíveis de se transformar em trabalho manufatureiro e produto manufaturado. Porque já nas mais remotas sociedades urbanas surgiram manufaturas: tijolos de adobe, ou ladrilhos de barro cozido. Tambores de colunas, Tijolos de barro especiais para colunas.
As oficinas de alfaias de igrejas inicialmente, e depois fornecedoras dos grandes palácios europeus, mesmo desaparecendo o titular mantinham-se como memória coletiva consagrando-se como testemunhos superiores de criatividade, principalmente na Itália do norte, nos séculos XIII e XIV, com as figuras de Giotto, Lorenzetti, Simone Martini. Mas é no século XV que se concentram as figuras de Brunelleschi e Alberti na primeira metade, e de Leonardo de Piero na segunda. Brunelleschi pela invenção da perspectiva exata e pelas máquinas para construção da cúpula de Santa Maria Del Fiore, comparece nos registros gráficos e escritos da maioria de artesãos (artistas) contemporâneos do grande arquiteto.
O fato de que a inovação técnica era especialmente valorizada na Itália é visível nas vidas dos artistas ilustres escritas por Vasari no século XVI, nas quais o que se destaca é a inovação, como atributo divino, e mesmo em contraposição aos homens que somente ostentavam um conhecimento acumulado. É o que se nota na polêmica entre Giovanni Acquettini da Prato grande erudito e conhecedor da técnica tradicional medieval, e Brunelleschi, artesão experimental, como ele mesmo propõe no memorial da cúpula, com total vitória do arquiteto, declarado em 1426, inventor da cúpula.
O século XIX pode ser caracterizado como sendo o período de nossa história no qual a máquina (de grande porte) a vapor penetrou todos os campos da atividade produtiva e que se consagrou na primeira exposição industrial de 1851 na Inglaterra: locomotivas, grandes prensas, navios transatlânticos e que suscitaram a admiração de K.Marx registrada em seu livro O Capital. Mas também foi o período em que as máquinas começaram a ser automatizadas começando pelo tear automático de Jacquard, e pelas máquinas Hollerith de endereçamento financeiro. Mas é interessante notar que, apesar de Jacquard ser do começo do século, esse acontecimento revolucionário que realizava o sonho inutilmente perseguido pelos mecânicos alexandrinos, não foi corretamente compreendido pelos contemporâneos.
Por exemplo, nos finais do século o mais destacado estudioso da mecânica das máquinas, Franz Rolleaux, ainda acreditava que o automatismo seria um fenômeno circunscrito à industria têxtil. Não só o século XIX assistiu à crescente automatização de inúmeras maquinas, como surgiram mesmo cadeias de montagem totalmente automáticas, nas quais todo o trabalho humano, nessas cadeias, foi eliminado, exigindo a criação nos finais do século XX de uma nova palavra automação, com esse preciso sentido, como já registra o dicionário Houaiss (O Aurélio de 1986 registra a palavra, mas sugere como mais adequada a forma “automatização”; o Caldas Aulete de 1958, não registra a palavra).
Podemos novamente comparar essa nova condição do trabalho, ao aparecimento de dois novos entes matemáticos: o vetor e o tensor, que tão importante papel desempenharam na evolução da ciência do século XX.
Vale lembrar, que o século XVIII assistiu ao surgimento da primeira “energia artificial”, ou seja o vapor. De fato até então, os homens somente direcionavam uma forma de energia já existente: homens ou animais, ou quedas d’água e o vento (moinhos e veleiros). O século XIX viu surgirem duas novas fontes de energia artificial: o motor de combustão interna e a energia elétrica, propiciando a idéia do vapor já ser uma forma antiquada de energia.
E assim como o século XVIII viu surgirem os “iluministas” que dominaram o teatro intelectual europeu, e suas idéias libertárias, o século XIX viu o aparecimento dos filantropos e pensadores socialistas em oposição à mais brutal e completa exploração humana ocorrida até então. No século XX prosseguiu a automatização dos processos produtivos, sendo que as unidades de processamento de materiais e matérias-primas tornaram-se totalmente automáticas. A automação foi mais bem aplicada nessas áreas, bem como na produção de hidrelétricas.
Todas as pesquisas para transferir programas complexos para máquinas que caracterizaram os “automatismos” anteriores nos séculos precedentes, desde brinquedos, caixas de música ou a máquina de “calcular” de Blaise Pascal, culminaram no século XX, com os grandes computadores e, a partir da década de 70, com o computador pessoal que sofre continuas inovações. O computador pessoal, ao lado das vantagens conhecidas e que se generaliza para vastas parcelas da população mundial apresenta alguns riscos, entre eles a sujeição das inteligências resultante do adestramento necessário em operações cuja rígida seqüência exige uma lógica linear, que tende a atenuar o exercício crítico dos operadores. Ou seja, a sujeição à lógica seqüencial das operações do computador, conjunto de seqüências tão impositivas, que a sujeição às cadeias de montagem das primitivas manufaturas ou das maquinofaturas, parece-nos hoje amenas perto da lavagem cerebral, produzida pelo computador. Percebe-se, mesmo em muitos intelectuais mais velhos, uma certa resistência temerosa ao uso dessa maquininha infernal. Um fenômeno que já ocorria nos finais do século XIX com as cadeias de montagem tradicionais e que se acentuou no inicio do século XX, favorecendo quem sabe, a ascensão de demagogos bem falantes, dominadores de populações anestesiadas e reduzidas a meras “massas de manobra”. Dois filmes da época denunciaram esse perigo: A nous la liberte, de René Clair na França, e Tempos Modernos de Charlie Chaplin nos Estados Unidos. Dos dois, a crítica mais contundente foi a americana que se completa com o filme O grande ditador do mesmo autor.
Poder-se-ia perguntar por que esse perigo não foi denunciado quando ele estava se formando? Porque Marx e Engels tão atentos ao momento que viviam, não escreveram nada a respeito? É um problema a ser investigado. Mas não podemos deixar de supor que se os dois filósofos talvez acreditassem que pela pura ação política os proletários associados em partidos políticos poderiam, fora da fábrica, iniciar sua libertação, e que outras etapas seriam cumpridas depois. Nós também temos de lembrar que qualquer dialogo criador em relação aos dois filósofos foi totalmente anulado e os intelectuais que aderiram às suas idéias ou foram deliberadamente ignorados pelos professores universitários, em sua maioria, quando não eliminados fisicamente. Deu no que deu.
Atualmente, apoiadas ainda na crítica do século XIX, surgiram as alternativas ao pensamento lógico clássico, como as geometrias não euclidianas e não arquimedianas, as críticas aos fundamentos da lógica tradicional, com grupos matemáticos que não obedecem ao princípio da identidade e unicidade, as teorias que dominam a biologia e as ciências físicas. Diante desse quadro, podemos retornar aos verbetes de dicionários anglo-saxões que insistem no caráter não necessário do hobby. E podemos formular a hipótese de que cultivar um hobby é uma das maneiras de optar pela sanidade mental. Diga-se de passagem, que o próprio computador pessoal parece ter surgido de um hobby de professores universitários. Ou, em outras palavras, o relacionamento entre o artesanato moderno e a indústria atual se dá como uma iteração recíproca.
Podemos então supor que ao contrário daqueles pesquisadores que se preocupam e propõem a feitura de uma inteligência artificial, todo nosso esforço de cidadãos deve ser dirigido para contrariar a robotização das inteligências. Será a saída para garantir a sanidade da família humana que nesse caso se confunde com a liberdade dos indivíduos. Mas também não podemos deixar de reconhecer que a liberdade é uma ação compartilhada. Como diz o velho provérbio: Ninguém é livre em uma terra de escravos. Ou seja, minha liberdade se exerce em meu ambiente. E meu ambiente hoje, é todo o planeta.
Nota explicativa do autor
Este texto escrito por sugestão do arquiteto Abílio Guerra responsável pelo portal Vitruvius não foi feito nos moldes acadêmicos, antes como ensaio marginal a atividades mais impositivas, no espírito de ensaios dos intelectuais latinos. Este texto foi lido por Ethel Leon e Rita Gonçalves e Thereza Katinsky que apresentaram sugestões, sempre que possível incorporadas ao texto.
Nazareth Baños redigiu todas as versões Obviamente a responsabilidade pelas afirmações é inteiramente minha. Não cabe, a meu ver bibliografia como se faz normalmente. Mesmo porque os fatos aqui reunidos não foram colhidos em publicações acadêmicas, salvo aquelas inseridas no corpo do texto. Pode-se apresentar, entretanto, sua filiação: ele se relaciona ao texto O Artista e o artesão de Mario de Andrade e ao meu ensaio O mestre-aprendiz escrito por solicitação de Martha Rossetti Batista, para o número 30 da Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (2002) dedicado ao poeta paulista. (JRK)
São Paulo 08 de agosto de 2008.
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