Ano: I Número: 10
ISSN: 1983-005X
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Fazendo bem feito
Gilberto Paim

Livro: The Craftsman Autor(a): Richard Sennett Editora: Yale University Press

Postado: 15/10/2008

   

Em The Craftsman*, o livro mais recente de Richard Sennett, professor de sociologia da Universidade de Nova York e Escola de Economia de Londres, o artesão não é a figura anacrônica, lançada à margem pela Revolução Industrial, mas o profissional cujas especificidades e preocupações servem de parâmetro não apenas para outros profissionais, mas também para empresas de grande porte. Uma premissa surpreendente, mesmo para os leitores de seus livros anteriores, Respeito e A Cultura do Novo Capitalismo, que apontavam um grave déficit de artesania no mundo contemporâneo, gerado pela aceleração da produção e do comércio, e que se manifesta, por exemplo, na prática de empresas de alta tecnologia de lançar apressadamente no mercado produtos com muitas falhas contando com as reclamações dos usuários para aprimoramentos futuros. Ao entrevistar os técnicos e engenheiros responsáveis pelo desenvolvimento desses produtos, Sennet identificou a sua frustração por não poder imprimir qualidade ao próprio trabalho.

O novo livro confirma a abrangência da sua noção de artesania, compreendida como a vontade e a capacidade de fazer algo bem feito. Ela não se restringe aos ofícios artesanais como a marcenaria, a tecelagem ou a cerâmica, que prosseguem sendo praticados em pequenas oficinas em todo o mundo, mas está presente no exercício de diferentes profissões como a medicina, a música ou arquitetura. Embora a artesania seja vital para a auto-estima pessoal e profissional, ela é raramente valorizada no interior de empresas e organizações contemporâneas.  

Sennett identifica o cerne da artesania na sintonia entre a mão e a mente, no aprendizado e experiência de longo prazo, na ligação forte com a realidade material, e na ênfase sobre a qualidade. Ele combate o hábito enraizado na cultura ocidental de dissociar as atividades mentais e manuais, enfatizando o diálogo especial que o artesão -- seja ele joalheiro, cirurgião ou violoncelista -- é capaz de estabelecer, no seu próprio ritmo, entre a reflexão e a prática concreta, entre a identificação dos problemas e a sua solução. A intensa curiosidade do artesão pelos materiais que utiliza, é uma dimensão essencial do seu trabalho, assim como a busca incessante, senão obsessiva pela qualidade, segundo critérios socialmente partilhados, e por isso mesmo sempre em renovação.

O texto muito rico flui sinuosamente, com inúmeras idas e vindas no tempo, analogias, comparações e digressões. Embora o seu tema principal seja a vulnerabilidade moderna da artesania, algumas incursões à história dos ofícios artesanais valem por si mesmas. A erudição de Sennett lhe permite abordar temas diversos como a evolução das técnicas de modelagem e decoração da cerâmica, com ênfase na Grécia antiga; a autoridade baseada na experiência do mestre-artesão nas oficinas medievais; a descontinuidade na transferência de conhecimento artesanal quando a ênfase se desloca da qualidade para a originalidade a partir do Renascimento, o conhecimento tácito extraordinariamente minucioso e, portanto, intransferível de Stradivarius; o destaque aos ofícios artesanais na Enciclopédia de Diderot, emblemático da mentalidade revolucionária; a uniformização e a perda da “naturalidade” dos tijolos na industrialização inglesa do século dezenove; o elogio à experimentação e às qualidades táteis na prosa “hipnótica” de John Ruskin.    

Sennett identifica na descrição detalhada da artesã-vidreira Erin O´Connor sobre o seu esforço para estabelecer a sintonia entre a mão e o olhar ao soprar um determinado tipo de copo, os limites do verbal na apreensão da complexidade do conhecimento tácito. Recorrente em todo o livro é a importância atribuída à prática da repetição na conquista da artesania. O sociólogo lamenta que a pedagogia moderna tenha menosprezado a repetição, em prol da noção romântica de criatividade. Cita como exemplo a importância essencial da repetição no domínio de um instrumento musical, experimentada de modo sempre diferente pelo músico ou aprendiz.

No mundo contemporâneo, a artesania resiste à aceleração e ao avanço da virtualidade. Sennett admira o método do arquiteto Renzo Piano, que inicia os projetos desenhando a lápis sobre o papel branco. Ele faz o esboço, depois o desenho, em seguida o modelo, visita o terreno, volta ao desenho, corrige o modelo, e assim tantas vezes quanto necessário. Tem consciência da dimensão artesanal do seu ofício. Diz ele: “Isso é típico da abordagem do próprio artesão. Você pensa e faz ao mesmo tempo. Você desenha e faz. O desenho....é revisitado. Você faz, refaz, e refaz mais uma vez”. Sennett desconfia do uso irrestrito do CAD pelos estudantes e profissionais inexperientes. Segundo ele, o programa soluciona velozmente problemas insuficientemente compreendidos pelos designers e os afasta da realidade material. 

À abstração do design, o sociólogo privilegia a artesania, no entanto progressivamente menosprezada ao longo do século vinte. A argumentação em seu favor fica muita clara na longa e saborosa comparação entre duas casas construídas em Viena no final dos anos 1920: a casa do arquiteto Adolf Loos para a família Moller e a casa do jovem filósofo Ludwig Wittgenstein para a sua irmã, o seu único projeto arquitetônico, inspirado nas premissas ascéticas de Loos.

A casa Moller foi uma realização bem sucedida graças à longa experiência profissional do arquiteto, cuja sensibilidade aos materiais era notória. Loos soube encontrar soluções interessantes para alguns erros de construção que não puderam ser corrigidos devido às restrições orçamentárias. Ele fez o projeto original evoluir para melhor e de modo lúdico, explica Sennett.

Wittgenstein, por sua vez, almejou em sua primeira e única edificação nada menos do que “a exposição para si mesmo dos fundamentos de todos os prédios possíveis”. A imensa fortuna familiar lhe permitiu não poupar esforços para cumprir à perfeição o projeto em todos os seus detalhes. O filósofo, no entanto, admitiu não ter ficado satisfeito com o resultado. À casa, segundo ele, faltou “vida primordial” e “saúde”. Sendo assim, não é pouco o que perdemos, ou arriscamos perder, quando o design prescinde da artesania.   

O livro é o primeiro de uma ambiciosa trilogia do autor sobre a cultura material. São aguardados Warriors and Priests e The Foreigner.

The Craftsman, Richard Sennett, Yale University Press, 2008.

* Traduzido em 2009 como O Artífice, Editora Record, Rio de Janeiro.

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Gilberto Paim é ceramista, pesquisador em design e arte aplicada, autor de A beleza sob suspeita, o ornamento em Ruskin, Loos, Lloyd-Wright, Le Corbusier e outros, Jorge Zahar Editores, 2000 e Elizabeth Fonseca e Gilberto Paim, Viana & Mosley, 2006. Editor da seção Repertório, de Agitprop.

 


Comentários

Sérgio Ramos
05/11/2008

Olá Gilberto, boa tarde! Quero parabenizá-lo sobre o seu texto do livro de Richard Sennett, me identifiquei muito (já vou comprar o livro!), pois o meu trabalho tem muito com o que você comentou. Se tiver um tempinho visite o meu site: www.atelierdoarquiteto.com.br obrigado e abraços, sérgio ramos

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