De modo geral, poucos são os intelectuais, hoje, que apresentam um projeto de estudos e pesquisas coerente e coeso, movido por inquietações teóricas e éticas, como é o caso do professor e sociólogo José de Souza Martins, que há pouco publicou A aparição do demônio na fábrica, que reúne artigos que apresentam os resultados de algumas de suas investigações empíricas(1). O livro traz aquela que é uma das preocupações fundamentais do autor: a vida do homem simples e cotidiano, o trabalhador e morador da cidade grande, no caso, São Paulo, e do seu subúrbio. A importância da sociologia, para o autor, é revelar o mundo social e histórico do e ao homem comum, para que este se torne protagonista de seu próprio destino numa sociedade de modernidade frágil, capenga e incompleta, dividida de muitos modos e marcada por uma diversidade de tempos históricos caracterizada por uma modernização capitalista vertiginosa e as persistências de um passado tradicionalista e colonial que insiste em se fazer presente. Interpretar um cotidiano assim, tão eivado de contradições de toda ordem, exige um tremendo esforço investigativo; um desafio que o professor Martins enfrenta de modo criativo ao costurar coerentemente metodologias aparentemente excludentes, a saber, um marxismo de ar heterodoxo inspirado por Henri Lefebvre e uma sociologia fenomenológica de origem vária. A conjugação de micro e macro-sociologias permite ao sociólogo descobrir a relação do homem com aquilo que nasce dos seus atos, atos que criam suas obras ao mesmo tempo em que os homens se perdem nelas e delas.
Diante de tantas peculiaridades e adversidades, se pergunta o autor, como irrompe a História na vida cotidiana? Para responder essa e outras questões, Martins volta-se para a “periferia da realidade social”, pois: “O relevante também está no ínfimo”(2). A postura teórico-metodológica do professor-sociólogo interpreta e denuncia uma certa ideologia da modernização que faz questão de empurrar para as bordas aquilo que a nega, mas a acompanha, como as tradições, a cultura popular e a pobreza. Martins deixa claro que, primeiro, muitas são as misérias que fazem parte do desenvolvimento dependente, e, segundo, uma modernidade periférica, como a nossa, ainda nos dias que correm, é composta de temporalidades que não são as suas, tornando-se desconfortável porque faz colidir, acomodando, as sobrevivências de uma história pretérita, deixando o homem comum como que abandonado, sem saber como atribuir significados a um mundo social e histórico tão complexo.
O tempo social, portanto, não é dividido de forma estanque entre passado, presente e futuro, como se a uma das dimensões sucedesse mecanicamente a outra, num movimento uniforme e unilinear. Lefebvre, segundo leitura de Martins, tenta abarcar toda essa confusa e rica trama de temporalidades históricas a partir da noção de “formação”, que carregaria consigo “a indicação de que as relações sociais não são uniformes nem têm a mesma idade”(3), isto é, coexistem relações sociais com datas diferentes, em descompasso, configurando um espesso tecido social esgarçado por clivagens, mediações e contradições. Inspirado por tal perspectiva, Martins assume como uma das principais vigas mestras de seu projeto intelectual desvendar as razões da falta de prumo entre modernização e modernidade no Brasil a partir da hipótese lefebvreriana da convivência (sempre tensa) de tempos históricos divergentes.
No livro fica claro que o caráter artificial de nossa modernidade, com suas incongruências e insuficiências, afetam sobremaneira as cidades, com seus trabalhadores da fábrica e moradores do subúrbio. Talvez na urbe, a oposição e o choque entre valores modernos mercantis (lucro, acumulação de capital, competição etc.) e valores modernos não-capitalistas (liberdade, igualdade, solidariedade mundana etc.) assumam dimensões ainda mais trágicas(4), dado que a sedimentação dos processos de industrialização e urbanização engendrou novas e eficientes formas de controle social, intensificou a exploração do trabalhador, extraindo-lhe mais-valia, autonomia e afogando-o na alienação do trabalho; abrindo as portas do consumo para faixas tímidas das classes médias e fechando-as para o grosso da população, ao mesmo tempo que negava direitos fundamentais para ambas camadas sociais. A cidade parece explicitar despudoradamente o drama de nossa modernidade, pois torna o trabalhador que a habita ainda mais estranho a si mesmo, que não se vê nem se reconhece no produto de seu trabalho, naquilo que faz quase todos os dias. A vida desse homem limita-se a uma reprodução, material e ideológica, que não está circunscrita à esfera econômica e às relações de produção, mas se dá na esfera do vivido cotidiano, nos fatos aparentemente miúdos e sem importância(5). Nesse sentido, toda a sociedade e todos os espaços tornam-se lugares da reprodução capitalista. Entretanto, é igualmente locus da resistência, da imaginação e da invenção. É na dimensão do vivido que Lefebvre reconhece a contradição da práxis, da ação humana, pois se ela reproduz relações sociais, também as produz. Noutros termos: não há repetição sem uma certa inovação. A consciência do homem(6) depende de sua vida real, de sua vida cotidiana, pois é nela que se encontra o seu sentido. Tal consciência é atingida e deformada pelas ideologias, construindo ilusões e aparências que se tornam reais. A ilusão socialmente necessária não separa aparência e realidade, como se a existência de uma excluísse a da outra; ao se cruzarem e se complementarem, paradoxalmente, o mundo das aparências sobrepõe-se à realidade histórica e fornece elementos para seu próprio descortinamento. Para exemplificar o argumento: a idéia de “liberdade” não é, em si, ideológica; ideológica é a crença que tal liberdade já se realizou(7). Estão aí colocadas as ambigüidades da mistificação que permitiriam justamente que as mistificações se voltassem contra os mistificadores. Portanto, para Lefebvre e também para Martins, se é no cotidiano do trabalhador que se dá a mistificação, é onde também pode acontecer a desmistificação; se é esse cotidiano que nos torna inumanos, é aí que se realiza também a nossa humanidade; se é no cotidiano que experimentamos a dominação, é igualmente nele que inventamos formas variadas de resistência. O professor Martins esforça-se por demonstrar que são as próprias contradições do capitalismo que fazem brotar a imaginação e revelar outras possibilidades de existência social. O possível não apanhado pelas tramas do poder permite que a resistência se manifeste sob muitas formas, inclusive naquelas que dificilmente imaginaríamos ser crível a expressão de qualquer modalidade de luta.
A resistência à dominação pode se expressar em vários espaços sociais que preenchem a vida cotidiana, incluso naqueles lugares que são imaginados sem história, como os subúrbios, onde se percebe um modo próprio de viver o processo histórico, como é o ABC, em São Paulo, lugar de vários estudos de caso realizados pelo professor Martins, ele mesmo oriundo dessa região. Boa parte desses trabalhadores é de origem migrante, em geral procedentes da roça, apegados a hábitos, crenças e costumes típicos de uma cultura rústica, com um estilo de vida marcadamente tradicionalista. Essa população, à medida que vai sendo abocanhada por um modo de vida mais urbano, industrial e capitalista, desenvolve esquemas muito próprios e peculiares de percepção e compreensão da vida social.
Uma concepção de mundo pré-capitalista, sinal do encontro conflitivo de lógicas práticas e temporalidades históricas diferentes, forjando a consciência fragmentada a respeito da vida social, é o assunto do artigo A aparição do demônio na fábrica, no meio da produção, que dá título ao livro e, ao meu ver, seu ponto alto. Nele, o professor Martins interpreta um episódio ocorrido na fábrica em que trabalhava, quando ainda jovem, a Cerâmica São Caetano S.A., em São Caetano do Sul, grande São Paulo. Nos idos de 1956, algumas operárias da nova seção de escolha de ladrilhos da empresa presenciaram a “visita” do demônio naquele setor, bem vestido, como um engenheiro, que tudo observava silenciosamente, segundo as lembranças e relatos colhidos pelo pesquisador. Medo e comoção obrigaram a direção da fábrica a realizar uma missa no interior de seus muros a fim erradicar o “mal”. Interessa a Martins entender o pano de fundo social que alimentou aquele imaginário arcaico, compreender quais os elementos do mundo do trabalho balizavam aquela figuração do diabo.
De acordo com o professor, o aparecimento do demônio só pode ser entendido levando-se em consideração as inovações tecnológicas introduzidas na produção, que implicaram a transformação do ritmo de trabalho dos operários de vários setores. Ritmo e disciplina tornaram-se as palavras de ordem que pautavam as relações e o processo de trabalho, cujo elemento ordenador eram as novas máquinas utilizadas na prensa dos ladrilhos, mais modernas e mais rápidas.
A relação dos trabalhadores com os novos meios de produção foi se tornando cada vez mais complexa e difícil, compreendida pelos primeiros em termos místicos. Principalmente os mestres viam-nas com desconfiança, pois a cultura do trabalho dos mestres de ofício, diante das medidas modernizantes adotadas, estava sendo colocada em risco, pois seus princípios mais básicos estavam sendo diluídos: os segredos de ofício, aos poucos, iam cedendo perante o avanço tecnológico e o saber profissional e científico dos engenheiros; a vigilância instalada na fábrica abalou as relações pessoais de confiança, típicas das formações pré-capitalistas que subsistiam no interior da firma e moldavam um tipo de organização social quase clânica e familiar. A gerência científica e os imperativos da eficiência e da produtividade minavam os laços de sociabilidade e os conhecimentos mais tradicionais, contrapondo-os à impessoalidade e ao saber técnico e científico. Para além dos mestres, todo o cotidiano da fábrica era transformado por um conjunto de medidas de cunho capitalista que não tinham sido devidamente assimiladas.
É justamente nesse momento de mudança no processo e relações de trabalho que o demônio aparece, denunciando o conservadorismo dos setores colocados à margem das transformações, mas expressando certa consciência sobre sua própria cultura profissional, que servia de contraponto crítico ao processo de trabalho capitalista. Nesse sentido, as tradições pré-capitalistas, o “imaginário arcaico” dos trabalhadores, funcionava como instrumento de resistência ao avanço do capitalismo. O diabo, manifestação máxima desse imaginário, mostra a riqueza como pagã, negação da própria humanidade do homem que a produz. Apresenta-se aí, em tal episódio, uma “alienada manifestação de resistência”, que não chegava a constituir um projeto político explícito ou um programa consciente de ação, mas constituía reação contra os modernos meios de produção que ameaçavam o trabalho artesanal e instituíam um processo de trabalho linear, repetitivo, ágil e lucrativo. O demônio, ao se apresentar como humano sem humano ser, revelava a desumanização do trabalho em moldes capitalistas. A sociologia de Martins constrói, assim, a possibilidade de (re)ver a história da classe operária não apenas como “classe teórica”, mas como classe real, “viva e ativa” nas experiências cotidianas, compreendendo-a na sua práxis diária, contraditória, por isso autêntica e cheia de possibilidades.
O livro sintetiza o projeto intelectual de Martins, percurso que vai desde a primeira respiração até a maturidade: dar voz aos vencidos e aos anônimos sem qualquer paternalismo ou condescendência, mostrando que é por entre as frestas da história que escorre o essencial da vida. Não por acaso permanece referência obrigatória de nossa sociologia.
(1)
Há, além dos artigos científicos acima citados – todos eles anteriormente publicados em revistas especializadas ou como capítulos de livros -, uma entrevista concedida pelo autor consoante com as questões e temas desenvolvidos na respectiva obra.
(2)
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2008. p. 12.
(3)
MARTINS, José de Souza. As temporalidades da História na dialética de Lefebvre. In: _____ (Org.). Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 15. Esse ensaio também pode ser encontrado em MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2008.
(4)
MELLO, João Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 148 e ss.
(5)
Cf. LEFEBVRE, Henri. Estrutura social: a reprodução das relações sociais. In: FORACCHI, Marialice & MARTINS, José de Souza (Orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1980.
(6)
Ver LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. v. 1. Paris: L’ Arche, 1958. p. 148-182.
(7)
Sobre uma discussão da noção de “ideologia” nos termos ora apresentados: COHN, Gabriel. Adorno e a teoria crítica da sociedade. In: COHN, Gabriel (Org.). Adorno. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1986.
Ênio Passiani é doutor em sociologia pela USP, professor das Faculdades de Campinas (FACAMP).
|