Fui apresentada ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds, na Grã-Bretanha, pelo seu livro Identidade (Zahar, 2005). Na época, estava especialmente preocupada em entender o lugar das questões culturais na nossa realidade moderna globalizada, e a leitura desse pequeno livro revelador, custou-me a revisão de algumas noções e vários parágrafos. Além da incômoda confirmação de que a idéia de identidade que anda freqüentando com desenvoltura textos e discursos na atualidade, deixou de fazer sentido ou, pelo menos, de ter um único sentido consensual.
Noções como pertencimento e identidade, quando tratadas pelo autor no contexto de um mundo globalizado, deixam de ser rígidas e compartilháveis, para se liquefazer no individualismo e na incerteza, desgarradas das fronteiras seguras dos Estados-nação.
Idéia que fica mais clara quando Bauman caracteriza "a sociedade aberta", ou "modernidade líquida", ou globalização, como "o enfraquecimento genuíno ou presumido, gradual mas inexorável, da maior parte das delimitações e distinções territorialmente fixadas, e a substituição dos grupos e associações territorialmente definidos pelas redes eletronicamente mediadas, indiferentes ao espaço físico e desprendidas do apego a localidades e soberanias localmente circunscritas".
A abordagem de Bauman, que faz da fluidez dos líquidos a principal metáfora para o estágio presente da era moderna, deve ser entendida através da discussão criada pelo autor sobre os principais fatores que caracterizam a "liquidez" da nossa modernidade, em contraposição à "solidez" de uma modernidade inaugural, racional e operativa, confiante e feliz, livre dos temores e incertezas do destino, os mesmos que voltaram a nos assombrar: a extrema mobilidade e conseqüente perda de referências territoriais e culturais; a incerteza e insegurança; a precariedade de vínculos, inclusive os afetivos, uma vez que as relações e as ambições passam a ser preferencialmente temporárias; a predominância do consumo sobre a produção; troca da segurança representada pela permanência, pela euforia da escolha permanente; o excesso de informação; o desequilíbrio entre a liberdade de direito e as garantias individuais.
Assim, aprendi que mergulhar nas águas abissais do mundo fluido moderno definido por Bauman em suas obras, nunca nos traz para o mesmo lugar na superfície do mundo e de nós mesmos. Entre outras razões, porque desperta a consciência aguda do significado de ser moderno e globalizado, e de viver em um mundo que oferece apenas uma certeza: a de que o "amanhã" não pode, não deve e não será igual ao "hoje" e nem cumprirá qualquer previsão, nem mesmo a meteorológica. Somos mostrados (e nos percebemos) como integrantes de legiões de "revolucionários conectados", politicamente passivos, apegados a fetiches tecnológicos, que gostam de pensar que estão mudando o mundo enquanto gozam da certeza de que nada vai mudar. Isolados e individualistas, ao mesmo tempo em que optamos preferencialmente pela falta de vínculos de qualquer espécie preferindo as relações e relacionamentos sem compromisso, nos ressentimos da falta das redes seguras e verdadeiras de parentesco, de amizade e de irmandade de ideais e destinos. Se é verdade que vivemos a diferença, também é verdade que vivemos mal essa diferença, elogiando uma diversidade cultural que pode até encontrar formas de convivência, mas não parece estar disposta a trocar nem fundir: "Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Mas só o seu vizinho é estrangeiro", afirmava o cartaz recolhido pelo autor em Berlim, em 1994.
Em sua última obra publicada no Brasil, Medo líquido (Zahar, 2008), Bauman aprofunda a discussão sobre mais um dos aspectos da "vida líquida" em "tempos líquidos" de uma "modernidade líquida". Com um certo desconforto, somos lembrados de que as principais técnicas do poder em tempos de modernidade líquida - a fuga, a astúcia, o desvio, a rejeição de qualquer confinamento territorial - geram a insegurança do presente e a incerteza do futuro. Nutrida por um sentimento de impotência generalizada, essa insegurança crônica fortalece e dissemina um tipo de medo que é, dentre todos os medos, o mais apavorante e intolerável, "o mais sinistro dos demônios a se aninhar nas sociedades abertas de nossa época", segundo o autor.
Tradicionalmente, o medo costuma ser associado a três situações de perigo: aquela que ameaça o corpo e a propriedade; aquela que ameaça a continuidade da ordem social, da qual depende a segurança do sustento; aquela que ameaça a posição social e a identidade seja de classe, de gênero, étnica ou religiosa. Hoje, porém, os perigos se apresentam diluídos numa zona cinzenta e imprecisa, onde não é mais possível uma associação racional de causa e efeito entre o medo líquido e o perigo difuso. Ameaçador e intermitente, o perigo pode estar em todo e qualquer lugar, e vir de qualquer direção: da natureza e de suas catástrofes; do outro, desconhecido ou conhecido e até próximo; de epidemias mundializadas; do território vizinho ou de outros planetas; da inflação, da flutuação das moedas e da queda das bolsas de valores; de toda informação veiculada 24 horas em tempo real por rádios, televisões e pela Internet.
A única terapia promissora contra esse medo difuso e generalizado que nos persegue e oprime seria, segundo Bauman, aquela que situasse o medo em escala planetária para em seguida tentar compreendê-lo até o seu âmago, à procura do equilíbrio possível entre liberdade e segurança. A partir desse pressuposto, o autor desenvolve sua reflexão, nos introduzindo à origem, à história, à dinâmica e aos usos do medo, em capítulos que têm nomes tão sugestivos como "o pavor da morte", “o medo e o mal", "o horror do inadmissível", "o terror global" para culminar no capítulo "trazendo os medos à tona", que poderia ter dado nome ao livro.
No início, a indispensável leitura dessa seqüência assombra e preocupa. Mas no final ela nos tranqüiliza, na medida em que revela a dimensão oculta da modernidade líquida, expondo e dissipando o território preferido do desenvolvimento do medo liquido. Somos levados a rever, por exemplo, as estratégias que temos desenvolvido para conseguir levar a vida sabendo da iminência da morte: construir pontes entre a vida mortal e a eternidade; mudar o foco de atenção da própria morte para as suas causas que devem ser neutralizadas; montar ensaios metafóricos diários para relativizar o absoluto inevitável da morte, repetindo situações de rejeição, extinção e perda, sucedidas de ressurreições recorrentes e reencarnações perpétuas.
Também somos lembrados pelo autor de que o medo e o mal são irmãos siameses, e é o mal - identificado com o crime, o pecado, ou com a violação de regras de sociabilidade - que de fato nos aterroriza. Porém, por outro lado, essas regras vão sendo criticadas e esquecidas, e o mal, relativizado, passa a ser identificado com o inexplicável, com o inatingível, com o inevitável; o mal está em toda parte e não pode mais ser percebido claramente. Desarmados moralmente para enfrentar essa nova modalidade do mal, optamos por investir nossa esperança nas "redes" e não mais nas parcerias, e nos armamos com celulares para enviar e receber mensagens de lealdade virtual. Nesse campo de laços partidos, de expectativas frustradas e de relacionamentos frágeis e superficiais, a fronteira entre "amigos e amores para toda a vida" de um lado, e "inimigos eternos" do outro, a fronteira entre o "bem" e o "mal", antes tão claramente traçada e tão estreitamente vigiada, se tornou praticamente invisível. Mais uma certeza diluída nessa região sombria e impenetrável de neblina opaca, o esconderijo preferido do mal como bem sabem as fadas, as bruxas e as crianças: "formada pelos vapores do medo, a neblina exala o mal".
Tememos o que não podemos controlar, este é o "horror do inadmissível" que, segundo Bauman, nos condena à eterna vigilância. A incapacidade de controlar é chamada de "incompreensão", por oposição à "compreensão" que nasce da capacidade de manejo das ferramentas que permitem lidar com as coisas. Assim, aquilo que não somos capazes de administrar nos é desconhecido e o desconhecido é sempre assustador. Medo, no limite, é o apelido que damos à nossa fragilidade e à nossa incapacidade de nos defender seja das catástrofes naturais, seja dos ataques terroristas e dos exércitos das potências econômicas, seja das epidemias, seja das flutuações do mercado global, seja das ondas de noticias e boatos que congestionam o ar até ele se tornar irrespirável; definitivamente, as raízes da nossa vulnerabilidade são de natureza ética e política.
Se a globalização é inevitável, ela não é neutra. Para que as coisas se expliquem melhor, Bauman define a "globalização negativa", aquela do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime e do terrorismo, aquela que age desdenhando as soberanias nacionais e desrespeitando as fronteiras entre os Estados, aquela identificada com o "terror global". Para o autor, essa rede mundializada de interdependência, globaliza também danos e prejuízos: mesmo que não queiramos admitir, ou mesmo que isso nos desespere ou deprima, é fato que nos tornamos responsáveis pela miséria de todos. A idéia de um mercado sem fronteiras, receita certa para a injustiça e para uma nova desordem mundial, resulta ainda na globalização do ressentimento e da vingança, quando a desordem global e a violência armada passam a se alimentar e se reforçar mutuamente. Bauman nos mostra muito claramente que em nosso planeta globalizado, a tendência à "regionalização" da política, dos ressentimentos sociais, e das batalhas por identidade e reconhecimento, têm conduzido a impasses e até mesmo a confrontos sérios. Eles são o resultado da insistência em não reconhecer que, em um planeta globalizado negativamente, também os problemas fundamentais passam a ser globais, não admitindo mais soluções locais, pelo menos não soluções efetivas.
Aprendi de pequena que a melhor maneira de afugentar o medo é acender a luz. Acender a luz, para Bauman, quer dizer entender profundamente os mecanismos do medo líquido para em seguida pensar construtivamente contra ele, e, sobretudo, "ter a coragem de ter esperança". Para o autor, é preciso mudar os parâmetros de unidade produzidos pela globalização, fazendo-a sinônimo de: "não existe um lugar para onde possamos fugir". A construção da comunidade do futuro - entendida como a unidade resultante da negociação e da reconciliação, e não da supressão das diferenças - é a promessa possível de um porto seguro para os navegantes perdidos no mar turbulento das mudanças constantes, confusas e imprevisíveis, da modernidade líquida. A má notícia é que, se as verdadeiras parcerias não se fortalecerem, os medos não se dissiparão.
PS: Não posso deixar de registrar o meu protesto pela forma como esse texto foi maltratado por uma péssima tradução, tão ruim que compromete seriamente o original e, em alguns momentos, chega quase a inviabilizar a leitura. Difícil compreender como uma editora possa comprometer uma obra, um autor e até seu próprio nome e seu dinheiro, com uma tradução tão incompetente e descuidada.
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BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2008. 239 p.
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